…Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados. Nos que ficaram e nos que foram. Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega ainda mandam, e o Zé não consegue reverter a situação.
Olha lá “Caladinho”, o que estás para aí a dizer que eu bem ouvi mas não percebi patavina?
Eh pá! Nem te senti chegar Coutinho que és Bernardino. Estava a falar com os meus botões…
Botões? Então soldados, navios, Angola, botas, pide, isso é lá conversa de botões? Antes de mais nada, e para ver se te entendo, vou pedir uma charrete. Oh Ramos!
Já vai! (Grita o Ramos)
Chega lá uma charrete, não, não! É melhor só um de “três-tinto”, depois logo se vê como é que fica a secura.
Oh Caladinho, não está aqui mais ninguém, explica-me o que é essa coisa dos botões e soldados e botas e pide.
O Caladinho, olhando sempre à volta e para a porta, lá foi dizendo:
O Chico era um deles. Não sei se o vou voltar a ver. A minha Irmã criou aquele menino com tanto amor, tanto carinho, e agora o “botas” manda-o para a guerra e ainda por cima no dia 19 de Julho que é quando faz anos. O que tem ele a ver com a guerra? Bem que ele queria ir era para a França, a salto, em vez de ir para Angola. O Delgado é que devia ter posto mãos a isto. O “botas” ia logo tratar da horta para Stª Comba Dão e a Gertrudes não tinha chegado a ter um marido Contra-Almirante e Presidente da República.
Reforçando a intervenção do narrador e em jeito de “bucha” – não do pedaço de pau, metal ou outro material para vedar qualquer buraco ou um bocado de pão para tapar a fome, mas aquela palavra ou frase imprevista que se encaixa numa fala de espetáculo de teatro – é importante dar a ideia do tempo que passa porque na verdade ele passa mesmo, não pára, e também lembrar que o “Caladinho” é personagem intemporal e um de muitos gémeos, mas mesmo muitos, assim como se fossem clones metidos numa conversa em dois mil e onze, ano primeiro do protocolo com a Troika que nos “troikou” a todos. Posta a bucha, voltamos à conversa daquele… tempo.
Os dias lá correm e cada vez há menos sementeira nos campos à volta da Abrunheira. Alguns vão dizendo e outros vão ouvindo, sempre com muito cuidado porque “bufos”, os há, em todo o lado, mesmo aqui à beira do Rio das Sesmarias. É subversivo reconhecer e, ainda mais, dizer, que o grémio paga o trigo barato. É “bufado” como “conspiração” perigosa, e passível de boleia até à António Maria Cardoso (Rua), uma conversa a três ou mais, em que o primeiro, muito baixinho em surdina, diz que o trigo é barato, o segundo, colocando a mão em forma de funil atrás da orelha, ouve, e o terceiro, porque entendeu que um disse e o outro ouviu, gesticula a cabeça na vertical em sinal de concordância.
No meio de 1962, a caminho do segundo ano de tiros em Angola e sete ou oito meses depois do indiano Nehru ter feito o “manguito” ao Salazar e, da noite para o dia, ter invadido Goa Damão e Diu, o Coutinho que era Bernardino, ouvia com toda a atenção o Caladinho. Desta vez lia um aerograma que tinha acabado de receber do Chico. Depois de se certificar que estava sozinho com o Cabouqueiro, começou a leitura;
«O meu plantão foi até às duas da manhã. Esteve tudo calmo, não aconteceu nada. Quando fui rendido no posto cinco, que dá para nascente, já se notava o céu menos escuro e não tardava a claridade da madrugada. A G3 hoje pesava aí uns cinquenta quilos e eu estava muito cansado. Adormeci rapidamente. Não teria passado um quarto de hora, abri os olhos sobressaltado, e vi clarões como se fosse o fogo-de-artifício lá da aldeia. Não era na aldeia, era no norte de Angola, numa terra que não era minha. O quartel estava mais uma vez a ser atacado e, como de costume, ao romper a madrugada. Os de Angola não querem que eu cá esteja. Até estamos de acordo, eu também não quero cá estar. Os de Angola, usam como podem as suas armas para correrem connosco e o “botas” continua a dizer que “Angola é nossa!”.»
Pois é Coutinho que és Bernardino, o meu sobrinho sofre lá (na Guerra em Angola) e nós sofremos cá com a ausência dele, mas quem tem a culpa deste sofrimento todo, são os que mandam, mas ainda as vão pagar todas juntas. O tempo vai passar e voltar-se a nosso favor, já estou a ver o que vai acontecer…
Oh Caladinho, não me digas que também és bruxo? Como é que sabes o que vai acontecer lá p’ra diante?
Meu amigo Coutinho que és Bernardino (olhando na direcção do balcão e da porta e falando ainda mais baixinho), podemos continuar a conversa mas não aqui, é que as paredes têm ouvidos…
O quê, as paredes ouvem?
É isso mesmo… faz de conta, mas às vezes parece mesmo verdade.
Tá bem Caladinho, vens comigo até à pedreira do Ti Miguel, e contas tudo o que sabes para mim, e para os meus amigos que são de confiança.
Saindo pela esquerda, muito juntinhos à regueira da curva e de passo apressado porque, pelo barulho, lá vinha do lado da charneca, um andante com motor a botar fumo por tudo quanto é sítio, e, já no começo da rua para o olival, o Caladinho pára e espera pelo andante. O Caladinho era pessoa informada, sabia o passado e adivinhava tudo lá para o futuro (diz o narrador) e, por isso, era natural que quisesse ver o veículo motorizado.
Oh Caladinho, deixa lá o andante… já se faz tarde e os meus amigos devem estar admirados com a minha demora, na certa, contarão que chegue com um grão na asa ou, sei lá, com uma saca de grão às costas… ah! ah! ah! (rindo)
Espera Coutinho que és Bernardino. Passam tão poucos carros, que é uma pena a gente não os ver.
O barulho foi aumentando e, ao cimo do quintal do Rafael Miranda, já se via o andante.
Estás a ver Coutinho que és Bernardino, uma “arrastadeira” de duas portas preta… Olha, afinal são dois, e o outro também é preto e é um Ford. Ummm! Estes dois pretos e a estas horas? Não cheira a boa coisa…
E os carros lá continuaram em direcção a Albarraque.
Olha lá “Caladinho”, o que estás para aí a dizer que eu bem ouvi mas não percebi patavina?
Eh pá! Nem te senti chegar Coutinho que és Bernardino. Estava a falar com os meus botões…
Botões? Então soldados, navios, Angola, botas, pide, isso é lá conversa de botões? Antes de mais nada, e para ver se te entendo, vou pedir uma charrete. Oh Ramos!
Já vai! (Grita o Ramos)
Chega lá uma charrete, não, não! É melhor só um de “três-tinto”, depois logo se vê como é que fica a secura.
Oh Caladinho, não está aqui mais ninguém, explica-me o que é essa coisa dos botões e soldados e botas e pide.
O Caladinho, olhando sempre à volta e para a porta, lá foi dizendo:
O Chico era um deles. Não sei se o vou voltar a ver. A minha Irmã criou aquele menino com tanto amor, tanto carinho, e agora o “botas” manda-o para a guerra e ainda por cima no dia 19 de Julho que é quando faz anos. O que tem ele a ver com a guerra? Bem que ele queria ir era para a França, a salto, em vez de ir para Angola. O Delgado é que devia ter posto mãos a isto. O “botas” ia logo tratar da horta para Stª Comba Dão e a Gertrudes não tinha chegado a ter um marido Contra-Almirante e Presidente da República.
Reforçando a intervenção do narrador e em jeito de “bucha” – não do pedaço de pau, metal ou outro material para vedar qualquer buraco ou um bocado de pão para tapar a fome, mas aquela palavra ou frase imprevista que se encaixa numa fala de espetáculo de teatro – é importante dar a ideia do tempo que passa porque na verdade ele passa mesmo, não pára, e também lembrar que o “Caladinho” é personagem intemporal e um de muitos gémeos, mas mesmo muitos, assim como se fossem clones metidos numa conversa em dois mil e onze, ano primeiro do protocolo com a Troika que nos “troikou” a todos. Posta a bucha, voltamos à conversa daquele… tempo.
Os dias lá correm e cada vez há menos sementeira nos campos à volta da Abrunheira. Alguns vão dizendo e outros vão ouvindo, sempre com muito cuidado porque “bufos”, os há, em todo o lado, mesmo aqui à beira do Rio das Sesmarias. É subversivo reconhecer e, ainda mais, dizer, que o grémio paga o trigo barato. É “bufado” como “conspiração” perigosa, e passível de boleia até à António Maria Cardoso (Rua), uma conversa a três ou mais, em que o primeiro, muito baixinho em surdina, diz que o trigo é barato, o segundo, colocando a mão em forma de funil atrás da orelha, ouve, e o terceiro, porque entendeu que um disse e o outro ouviu, gesticula a cabeça na vertical em sinal de concordância.
No meio de 1962, a caminho do segundo ano de tiros em Angola e sete ou oito meses depois do indiano Nehru ter feito o “manguito” ao Salazar e, da noite para o dia, ter invadido Goa Damão e Diu, o Coutinho que era Bernardino, ouvia com toda a atenção o Caladinho. Desta vez lia um aerograma que tinha acabado de receber do Chico. Depois de se certificar que estava sozinho com o Cabouqueiro, começou a leitura;
«O meu plantão foi até às duas da manhã. Esteve tudo calmo, não aconteceu nada. Quando fui rendido no posto cinco, que dá para nascente, já se notava o céu menos escuro e não tardava a claridade da madrugada. A G3 hoje pesava aí uns cinquenta quilos e eu estava muito cansado. Adormeci rapidamente. Não teria passado um quarto de hora, abri os olhos sobressaltado, e vi clarões como se fosse o fogo-de-artifício lá da aldeia. Não era na aldeia, era no norte de Angola, numa terra que não era minha. O quartel estava mais uma vez a ser atacado e, como de costume, ao romper a madrugada. Os de Angola não querem que eu cá esteja. Até estamos de acordo, eu também não quero cá estar. Os de Angola, usam como podem as suas armas para correrem connosco e o “botas” continua a dizer que “Angola é nossa!”.»
Pois é Coutinho que és Bernardino, o meu sobrinho sofre lá (na Guerra em Angola) e nós sofremos cá com a ausência dele, mas quem tem a culpa deste sofrimento todo, são os que mandam, mas ainda as vão pagar todas juntas. O tempo vai passar e voltar-se a nosso favor, já estou a ver o que vai acontecer…
Oh Caladinho, não me digas que também és bruxo? Como é que sabes o que vai acontecer lá p’ra diante?
Meu amigo Coutinho que és Bernardino (olhando na direcção do balcão e da porta e falando ainda mais baixinho), podemos continuar a conversa mas não aqui, é que as paredes têm ouvidos…
O quê, as paredes ouvem?
É isso mesmo… faz de conta, mas às vezes parece mesmo verdade.
Tá bem Caladinho, vens comigo até à pedreira do Ti Miguel, e contas tudo o que sabes para mim, e para os meus amigos que são de confiança.
Saindo pela esquerda, muito juntinhos à regueira da curva e de passo apressado porque, pelo barulho, lá vinha do lado da charneca, um andante com motor a botar fumo por tudo quanto é sítio, e, já no começo da rua para o olival, o Caladinho pára e espera pelo andante. O Caladinho era pessoa informada, sabia o passado e adivinhava tudo lá para o futuro (diz o narrador) e, por isso, era natural que quisesse ver o veículo motorizado.
Oh Caladinho, deixa lá o andante… já se faz tarde e os meus amigos devem estar admirados com a minha demora, na certa, contarão que chegue com um grão na asa ou, sei lá, com uma saca de grão às costas… ah! ah! ah! (rindo)
Espera Coutinho que és Bernardino. Passam tão poucos carros, que é uma pena a gente não os ver.
O barulho foi aumentando e, ao cimo do quintal do Rafael Miranda, já se via o andante.
Estás a ver Coutinho que és Bernardino, uma “arrastadeira” de duas portas preta… Olha, afinal são dois, e o outro também é preto e é um Ford. Ummm! Estes dois pretos e a estas horas? Não cheira a boa coisa…
E os carros lá continuaram em direcção a Albarraque.
(Continua qualquer dia)
(Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)
Silvestre Félix
Sem comentários:
Enviar um comentário