sexta-feira, 24 de junho de 2011

O MANCEBO E A FESTA!

Foi a dois, porque a três de Março assentei praça na Figueira da Foz. Estava zonzo da “tola” porque se tivesse em perfeito juízo, tinha dado parte de doente.
E agora? Pergunta quem lê… Foi a dois, o quê?
Responde quem escreve… É claro (para quem tecla) que na véspera de me apresentar no quartel, mesmo sem ter feito mal a ninguém e os outros (“os”, porque naquele tempo “as”, não iam à tropa) terem ficado todos numa boa na Abrunheira, foi a festa de despedida da condição de “mancebo” para ingressar na de “militar” (salvo seja).
Sendo portador crónico (a não ser que ultrapasse os 100 de tempo contado e passado em anos de viajem) daquela “síndrome” conhecida por “entas” como me esclareceu há dias o Rui, adquiri o bom (péssimo para alguns) hábito de inventar algumas coisas, de esticar outras e de meter nomes e alcunhas, mesmo sem bucha, em diálogos que às vezes nunca existiram. Por isso, que não se incomodem os citados e não me chamem nomes os bem memorizados. Não temos que nos chatear porque a maior parte das coisas que por nós passam, são todas inventadas ou, como agora se diz, virtuais. Em qualquer dos casos, para mim, quando se toca em nomes, o registo é, quase sempre, “lacrado”. Ontem, questionava-me o Simplício que, para os meus escritos, basta Rui e toda a gente sabe quem é, como era o nome daquele fulano…tal…que lhe parece filho do Sigamó? Pois claro, é o Lucrécio! E o Lucrécio tem duas irmãs que bem me lembro, a mais velha, casada com o António da “Russa” e a mais nova que bem me lembro do primeiro marido. Vamos lá perceber: Porquê “Sigamó”? Acham que tem alguma coisa a ver com: simplesmente – siga a mó – será isto? Seguir a mó, aquela de moer das azenhas ou dos antigos moinhos de vento?
Bem, quem para aí estiver virado que esclareça, vamos mas é voltar ao que me fez, neste dia de 40º à sombra, por estas terras mouriscas do Sul, ouvindo nuestros hermanos por tudo quanto é sítio e esplanadas, até no Chico, calculem? E teclar desenfreadamente com o São João à espreita e com o gosto da sardinha assada e do robalo escalado, como não consigo, tão bem saborear em mais nenhum lado.
Uma semana antes, quando já se adivinhava um verão quente e bem entrado já no PREC, os preparativos começaram a andar. A grande preocupação era garantir convivas de ambos os sexos de forma a tornar a festança mais alegre. Não era fácil mas, considerando a reputada compostura da rapaziada em questão, que da citação de alguns me responsabilizo sem recorrer a truques de invenção: Eu, o Rui, o Zé Carmo Silva, o Zé e o Fernando Marques, o Mário e muitos outros.
Para compor e garantir o emparelhamento, chegamos a promover um “porta-a-porta” na Abrunheira e arredores, como se de angariamento partidário ou religioso se tratasse. Duma forma geral os progenitores das donzelas eleitas, principalmente as mães, acreditaram nas nossas “boas intenções”, aliás, nunca lhes demos razões para não acreditarem, e o resultado dessa jornada a abarrotar de charme, foi pleno de sucesso como se comprovou no tal dia dois, véspera de três de Março do ano do PREC.
Ainda não perdi a esperança de, com a ajuda de máquina parecida com esta onde botamos letras, formamos palavras, construímos frases e completamos textos, conseguir regredir em trinta e seis de tempo em anos contados, mostrar o desfile de abrunhenses e não só, desde o “Cabaço”, dando a volta pelo Ramos, depois pela esquerda até ao fim do alcatrão (mais ou menos onde mora o Casaca), seguindo à direita pelo caminho de terra e pedra pouco batida até ao Caracol, assim se chamava aquela zona, desde a URCA para baixo.
A adega do Zé estava a abarrotar. Muito se petiscou, muito se dançou e muito se bebeu. Desde as três da tarde daquele dia dois de Março até… não sei, perdi a conta… só me lembro que às seis e meia da manhã do dia seguinte ainda estava bêbado. Quando a minha Mãe me chamou e levantei a cabeça, tive que ir a correr para a casa de banho porque o estômago ainda rejeitava tudo, até a saliva. Foram muitas horas de “adega”. O termo está literalmente correto. Muita bebida se levou mas, também, do líquido corrido pelas goelas abaixo, muito de boleia chegou com o Ti Azevino de mares muitas vezes navegados.
Falando em navegados e navegadores, em idas e vindas, muitos amores também iam e vinham. Naquela véspera de três de Março, ano do PREC e a nove dias do célebre onze em que se proclamou – eles andem aí – algumas paixões despertaram, outras se consolidaram e também uma, pelo menos, se findou. Sem paixão, mas só por uma questão de traços e caminhos da vida, alguns se desencontraram de vez depois de ali terem estado juntos.
De decente tudo aconteceu e nem é preciso disfarçar ou negar a alegria de toda a gente menos eu, que, de inventar também me apetece. O “Custódio”, que linguado nunca tinha visto e muito menos o sabor conhecia, na minha despedida de «mancebo» alguma coisa prendeu. Depois de ter metido umas cervejolas e no meio do vinil da Jane Birkin, descobriu os lábios rosados e carnudos da carinha laroca que com ele dançava, ou melhor, fazia que dançava, e, sem pedir licença, aplacou-lhe as beiçolas selando um prazer nunca antes experimentado. Como o “Custódio”, outros e outras se aplacaram com a mesma dose porque o Zé repetiu o mesmo vinil, e, para “capitalizar” a onda, lá desencantou outros da mesma “lenga-lenga”.
Ai que festa! Saudade bem sentida naquelas noites de Março do ano do PREC e da fundação da URCA, na preparação do corpo para a “Ordem-Unida” do dia seguinte. Não foi só a celebração do último dia antes da tropa, foi também o final de algumas outras coisas. Nos dias seguintes, de farda me vestiram, o cabelo me cortaram, de espingarda me armaram e em “cego” obediente me transformaram. Obediência estratégica, pensei eu!
Silvestre Félix
24 de Junho de 2011

quarta-feira, 15 de junho de 2011

AS NOSSAS MÃES!

Oh filho, quando fores por esses caminhos acima tens de olhar bem lá para a frente e, ao mesmo tempo, deves ter sempre muito cuidado com quem pode vir atrás… Primeiro atravessava o das Sesmarias e depois, lá mais acima, a regueira da mulata. As vaquitas e, na maior parte das vezes a Carocha que de burra tinha pouco, tinham a dianteira que bem sabiam o destino largo dos Celões. Entravam sem engano na ponta de baixo à esquerda e nunca tiveram a ousadia de seguir em frente em direção ao Linhó.
Por esses caminhos acima… os degraus da vida, de que a Minha Mãe sempre me falava. As Mães da Abrunheira eram iguais às outras. Todas eram as melhores para cada um dos putos abrunhenses e eu não era exceção – Não havia Mãe melhor, que a Minha! Estava sempre disponível para me ensinar mais um degrau e, muitas das vezes, com exemplos da sua vida cheia e rica de labuta pela família e futuro dos filhos. Tanto tempo contado em anos passados, não são poucas as vezes que uso e pratico os seus ensinamentos.
No tempo que passo em horas, dias e anos, teclando escritos fluidos da parte arrumada da memória, e sendo Abrunheira a temática, é certo e sabido que nas subidas e descidas das mais variadas personagens pelo palco, nas falas e deixas que compõem o nosso teatro, lá está sempre com o seu papel bem estudado, a Minha Mãe! Algumas das perguntas e respostas, frases soltas e coladas dos nossos diálogos, aparecem de quando em vez nas minhas postagens ou, simplesmente, em manuscritos que por aqui vão ficando…


Oh Mãe, os Índios são todos maus e os cowboys são os bons? Não filho! Há bons e maus nos dois lados! Oh Mãe, mas nos “quadradinhos”, escrevem que os Índios é que são os maus… Eu sei filho, mas os que escrevem também podem estar enganados… Mas naquele filme que eu vi na “sociedade” à noite com a Felicidade e o Alfredo, eles também diziam que os bons eram os tropas e os maus, os Índios… Está bem filho, mas quem faz os filmes também se pode enganar. Quando fores maior vais perceber melhor…
Oh Mãe, quando eu for grande também vou para a tropa? Vais, todos os homens vão à tropa! Mas oh Mãe, eu não gosto da tropa nem da guerra… quando for para a tropa também tenho que ir para a guerra? Não filho! Ainda faltam muitos anos para ires para a tropa e, quando fores, a guerra já acabou! Oh Mãe, na Guerra das Áfricas os “Magalas” também morrem como naqueles livros aos “quadradinhos” da Guerra dos alemães e do Major Alvega?
Oh Filho, tens de ter muito cuidado para ninguém ouvir esta conversa. Vê lá se está aí alguém desse lado.
Não Mãe, aqui não está ninguém!
A Mãe também não gosta da tropa nem da guerra, mas não digas isto a ninguém porque os que dizem que são os bons, podem vir fazer mal à gente…


A "Ti Augusta" desfazia-se em lágrimas, cada vez que tinha, por qualquer razão, de desfazer-se de alguma das suas bichinhas – ajudava-as a nascer, criava-as, aliviava-as da pressão do primeiro úbere cheio festejando a transformação em leite, acompanhava o primeiro cio com o cuidado que a situação requeria e, para fecho de ciclo, tratava-as e preparava-as para a função de mães, recomeçando tudo outra vez.


A Minha Mãe fazia anos a 12 de Junho, véspera de Santo António.


Silvestre Félix
12 de Junho de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

URCA – RANCHO FOLCLÓRICO

As tarefas eram mais que muitas e todos os dias apareciam ideias novas como se fossem rebentos de feijões. O levantamento das paredes do pavilhão ia andando, não com a velocidade que queríamos mas suficiente para quebrar a nossa ansiedade. Passado algum tempo, estabelecemos o dia da inauguração do pavilhão para dia 18 de Abril de 1976, data do primeiro aniversário da instalação da URCA no local onde ainda hoje permanece.
O programa começou a ser preparado e, entre as várias vertentes da área cultural, surgiu a ideia de se formar um Rancho Folclórico. Logo à partida a coisa não se apresentou muito fácil de levar a cabo mas, a vontade e força da Celeste, da família Irra e de toda a gente, materializaram-na e, passado pouco tempo, estavam a formar um grupo adulto e outro infantil. Coordenaram a criação dos trajes, recolheram as músicas e as danças e, por fim, ensaiaram os dois grupos.
A Abrunheira estava em festa nesse dia e o pavilhão da URCA, ainda sem janelas e portas, ia finalmente receber toda a população abrunhense para assistir a um espetáculo variado, autêntico e caseiro. O Rancho Folclórico, que envolvia muitos participantes adultos e infantis, maravilhou toda a gente e marcou, não só uma data e a URCA, mas uma época em que muita coisa boa se fez, viu e ouviu na Abrunheira.
Depois de Abril de 1976 muito se questionou a paragem e o consequente desaparecimento do Rancho Folclórico que envolveu tanto trabalho e tantos abrunhenses. Razões houve com certeza e todas elas atendíveis na altura, o que pretendo é recordar e homenagear quem teve a ideia, quem criou, quem organizou, quem ensaiou e, duma forma geral, quem participou.
Remexer em baús de recordações tem este efeito – regressarmos ao passado e saudarmos os que connosco viveram os melhores momentos.

Silvestre Félix

(Foto: Rancho Folclórico Infantil - Baú de Silvestre Félix)
PS: Muitos sócios da URCA e habitantes da Abrunheira participaram nesta e noutras realizações. Era importante ser possível consultar o primeiro livro de atas da Direção e as primeiras pastas de arquivo da URCA para referir nos meus escritos, com certezas, muitos outros nomes.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

UMA QUARTA DE MANTEIGA…

Muito longe do manual de adivinhação perdido em qualquer pobre prateleira de livros, do poder “hipnótico” do Rui, da visão perspicaz e penetrante do Caravaca, da “elétrica” inteligência do Fernando Pedroso, da singular engenhoquice do Zé Fernando, das certezas e pontarias do Zé Augusto, do magnetismo enigmático do Julinho … e, mais alguns, que a minha prodigiosa (já agora) memória não consegue creditar, muito longe… dizia, que duma só estalada, e uns quase cinquenta de tempo em anos contados, abrissem quase trezentas lojas mesmo aqui às portas da Abrunheira. O sonho de qualquer esposa ou Mãe consumidora passava pela taberna ou mercearia do Ti Álvaro, da Menina Emília e do Ramos, materializada num restrito cabaz que incluía: Uma quarta de manteiga, uma quarta de café de cevada, uma quarta de sal, meio – quilo de arroz do mais barato, meio – quilo de açúcar amarelo, meio – quilo de massa cotovelo, duas postas de bacalhau da parte do rabo que pesa menos e meio – quilo de atum de barrica. Na hora do pagamento; «É para “assentar” se faz favor».


E o dinheiro?
Será que todas essas lojas vão ter livro de “assentar”?
O “sonho” só ia comandar a vida lá muito mais para a frente.


Nessa época, em que o Francisco “Frouxo” e o Ti Sabino ainda vestiam camisas aos quadradinhos, calças com o cós subido por cima da barriga de cor cinzenta, colete com fio do relógio de bolso pendurado, botas cardadas com polainas, barrete preto bem enterrado na cabeça e acompanhavam com o respetivo pau, em que o João de Leião passava bem sentado no seu carro, geringonça quase única na Abrunheira mais o carocha do Peixoto lá para o Caracol, quando o Silvestre” Velho” ainda pagava “jorna” para lavrar, desterruar, gradar, semear, mondar e ceifar, quando a Ferreira de Castro era “Curronquinho” e a “Arroteia” dava a melhor cevada, nos “Quatro-Donos” a ceara de trigo sempre se deixava dominar pelo verde, quando os “Celões” mostravam a sua grandeza nas várias colorações e inclinações ao sabor do vento, quando a Beloura era o Casal da Beloura do Chico da Beloura, quando a Escola era na futura Rua da Escola, quando a Ti Natália corrigia a tendência vitivinícola do Ti Hilário, do Zé e do João todos ditos – da Natália, quando o Coutinho que era Bernardino abria as valas da água canalizada que aí vinha a correr cheia de pressa porque já era tarde, quando ainda se comemorava a chegada da eletricidade, ainda uma criança com dois ou três anos, com festanças largas e foguetório até ser noite no sítio que era largo em frente à Quinta do Olival, quando eu já começava a conseguir ler as crónicas da Guerra do Vietname no jornal “O Século” naquela grande mesa de mármore da taberna do Ti Álvaro, quando os camions começaram a trazer os tijolos, o cimento, o ferro para armar e pôr de pé a que viria ser a “Lixa”, quando os gansos do Ti Veríssimo e do “Tavinho”, imitando bem nos gestos e na vontade os atuais A320, faziam do largo do Chafariz, no sentido descendente, a grande pista de descolagem, quando os putos com botas cardadas calçadas, praticando aquela coisa que, no reinado da Angela Merkel estará em desuso e que se chama solidariedade, se descalçavam para estarem iguais aos que não tinham botas nem chinelos, quando, aí em tempo doze ou treze a contar em anos de distância, eu perguntava: Mãe, quando for grande ainda há guerra? Se ainda houver Guerra eu tenho de ir? Os putos da Abrunheira, depois Homens, também foram à Guerra. Eu já não fui! Foram muitos e o meu litígio permanente com a lembradura dos nomes não me aconselha a arriscar. Mas, quando lia e escrevia os “aerogramas” do meu primo Chico, e o “Pézinhos”? e o Fernando? Os Putos da Abrunheira também lá estiveram ..., nessa época, quem havia de imaginar que a negra para Lisboa ia ter três faixas para cada lado com entrada direta para a Abrunheira com destaque na sinalética principal? E que mesmo com tanta faixa, a certas horas todas entupiam de andantes nos dois sentidos? Nenhum destes prosados da Abrunheira daquele tempo, acreditariam que os andantes da negra numa ida até Lisboa, iriam consumir em gasolina mais dinheiro do que quatro semanas de “jorna”.


E o dinheiro?
Onde iam ganhar dinheiro que chagasse para toda a gasolina?
E como iam conseguir construir as negras?


Quando o Julinho se atirava à lata de sebo do pai, o Zé da Natália, e esfregava com jeito único a ponta da melhor cana que escolheu no canal da Horta do Manel da Colónia, acompanhando a função com emissão de sons e assobios assim como se fosse uma folha de serrote a abanar (iong! iong! iong!) criando aquele ambiente de mistério para interiorizar a superior capacidade de atrair os morcegos à ponta da cana, não lhe passava pela cabeça nem aos outros que, alguma vez, os “putos” não precisassem mais de atrair morcegos por brincadeira, nem de construir os carrinhos de arame na “oficina” do Zé Fernando, nem de fazer telefones inventados pelo Fernando Pedroso com tampas das caixas de graxa dos sapatos…, pois teriam milhares de brinquedos à distância dum cartão de plástico que serve de dinheiro nas dezenas de lojas existentes à volta da Abrunheira.


E o dinheiro?
Como iam ter dinheiro para todas essas coisas?
E os Putos? Como iam aprender a fazer os brinquedos?


Mesmo que em vez de cinquenta sejam mais ou menos quarenta contados em anos, muito longe continuávamos de imaginar, considerando mesmo a sabedoria das barbas do Zé, a capacidade inventiva do Zé Alentejano ou o imparável drible do “Pele-e-Osso”, a indefensável “cagadinha” do Rui nos matraquilhos que, para assistirmos, olhando para uma tela de cinema, às pantominices dum qualquer “Trinitá” que era um “Cowboy” insolente, ou uma lição de história gastando a tarde de Domingo soalheiro para ver os “Canhões de Navarone” ou o “Ben-Hur” ou até o moderno musical “Jesus Cristo Superstar”, depois de muito penar até conseguir poupar o suficiente para comprar o bilhete, e em vez de calcorrearmos deste a Abrunheira até ao “Cinema Chaby” em Mem Martins ou até ao “Carlos Manuel” em Sintra, caminhos que no ano da Troika e dos troikados se iriam fazer, de cajado na mão, por prazer e a conselho médico para promover o gasto das gorduranças e o desentupimento das artérias com vista a um transporte adequado e sem constrangimentos do nosso precioso sangue, em vez disso dizia …, bastaria estacionarmos o indispensável carro no parque subterrâneo de quase dois mil lugares, esticar o pé que logo a escada rolante ou o elevador nos leva até sete ou oito salas com outras tantas “fitas” a correr. É só escolher… e se calhar até acabamos por ver o que não queremos.


E o dinheiro?
Como vai ser possível poupar dinheiro para os carros e para os cinemas?
Será só para os ricos?


No universo da Abrunheira daquele tempo muitas perguntas se fizeram e muitas continuam sem resposta. O sonho continua a ter o mesmo significado, raramente passou a “comandar a vida” como se chegou a acreditar.


Silvestre Félix

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA - CAPÍTULO II

…Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados. Nos que ficaram e nos que foram. Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega ainda mandam, e o Zé não consegue reverter a situação.
Olha lá “Caladinho”, o que estás para aí a dizer que eu bem ouvi mas não percebi patavina?
Eh pá! Nem te senti chegar Coutinho que és Bernardino. Estava a falar com os meus botões…
Botões? Então soldados, navios, Angola, botas, pide, isso é lá conversa de botões? Antes de mais nada, e para ver se te entendo, vou pedir uma charrete. Oh Ramos!
Já vai! (Grita o Ramos)
Chega lá uma charrete, não, não! É melhor só um de “três-tinto”, depois logo se vê como é que fica a secura.
Oh Caladinho, não está aqui mais ninguém, explica-me o que é essa coisa dos botões e soldados e botas e pide.
O Caladinho, olhando sempre à volta e para a porta, lá foi dizendo:
O Chico era um deles. Não sei se o vou voltar a ver. A minha Irmã criou aquele menino com tanto amor, tanto carinho, e agora o “botas” manda-o para a guerra e ainda por cima no dia 19 de Julho que é quando faz anos. O que tem ele a ver com a guerra? Bem que ele queria ir era para a França, a salto, em vez de ir para Angola. O Delgado é que devia ter posto mãos a isto. O “botas” ia logo tratar da horta para Stª Comba Dão e a Gertrudes não tinha chegado a ter um marido Contra-Almirante e Presidente da República.
Reforçando a intervenção do narrador e em jeito de “bucha” – não do pedaço de pau, metal ou outro material para vedar qualquer buraco ou um bocado de pão para tapar a fome, mas aquela palavra ou frase imprevista que se encaixa numa fala de espetáculo de teatro – é importante dar a ideia do tempo que passa porque na verdade ele passa mesmo, não pára, e também lembrar que o “Caladinho” é personagem intemporal e um de muitos gémeos, mas mesmo muitos, assim como se fossem clones metidos numa conversa em dois mil e onze, ano primeiro do protocolo com a Troika que nos “troikou” a todos. Posta a bucha, voltamos à conversa daquele… tempo.
Os dias lá correm e cada vez há menos sementeira nos campos à volta da Abrunheira. Alguns vão dizendo e outros vão ouvindo, sempre com muito cuidado porque “bufos”, os há, em todo o lado, mesmo aqui à beira do Rio das Sesmarias. É subversivo reconhecer e, ainda mais, dizer, que o grémio paga o trigo barato. É “bufado” como “conspiração” perigosa, e passível de boleia até à António Maria Cardoso (Rua), uma conversa a três ou mais, em que o primeiro, muito baixinho em surdina, diz que o trigo é barato, o segundo, colocando a mão em forma de funil atrás da orelha, ouve, e o terceiro, porque entendeu que um disse e o outro ouviu, gesticula a cabeça na vertical em sinal de concordância.
No meio de 1962, a caminho do segundo ano de tiros em Angola e sete ou oito meses depois do indiano Nehru ter feito o “manguito” ao Salazar e, da noite para o dia, ter invadido Goa Damão e Diu, o Coutinho que era Bernardino, ouvia com toda a atenção o Caladinho. Desta vez lia um aerograma que tinha acabado de receber do Chico. Depois de se certificar que estava sozinho com o Cabouqueiro, começou a leitura;

«O meu plantão foi até às duas da manhã. Esteve tudo calmo, não aconteceu nada. Quando fui rendido no posto cinco, que dá para nascente, já se notava o céu menos escuro e não tardava a claridade da madrugada. A G3 hoje pesava aí uns cinquenta quilos e eu estava muito cansado. Adormeci rapidamente. Não teria passado um quarto de hora, abri os olhos sobressaltado, e vi clarões como se fosse o fogo-de-artifício lá da aldeia. Não era na aldeia, era no norte de Angola, numa terra que não era minha. O quartel estava mais uma vez a ser atacado e, como de costume, ao romper a madrugada. Os de Angola não querem que eu cá esteja. Até estamos de acordo, eu também não quero cá estar. Os de Angola, usam como podem as suas armas para correrem connosco e o “botas” continua a dizer que “Angola é nossa!”.»
Pois é Coutinho que és Bernardino, o meu sobrinho sofre lá (na Guerra em Angola) e nós sofremos cá com a ausência dele, mas quem tem a culpa deste sofrimento todo, são os que mandam, mas ainda as vão pagar todas juntas. O tempo vai passar e voltar-se a nosso favor, já estou a ver o que vai acontecer…
Oh Caladinho, não me digas que também és bruxo? Como é que sabes o que vai acontecer lá p’ra diante?
Meu amigo Coutinho que és Bernardino (olhando na direcção do balcão e da porta e falando ainda mais baixinho), podemos continuar a conversa mas não aqui, é que as paredes têm ouvidos…
O quê, as paredes ouvem?
É isso mesmo… faz de conta, mas às vezes parece mesmo verdade.
Tá bem Caladinho, vens comigo até à pedreira do Ti Miguel, e contas tudo o que sabes para mim, e para os meus amigos que são de confiança.
Saindo pela esquerda, muito juntinhos à regueira da curva e de passo apressado porque, pelo barulho, lá vinha do lado da charneca, um andante com motor a botar fumo por tudo quanto é sítio, e, já no começo da rua para o olival, o Caladinho pára e espera pelo andante. O Caladinho era pessoa informada, sabia o passado e adivinhava tudo lá para o futuro (diz o narrador) e, por isso, era natural que quisesse ver o veículo motorizado.
Oh Caladinho, deixa lá o andante… já se faz tarde e os meus amigos devem estar admirados com a minha demora, na certa, contarão que chegue com um grão na asa ou, sei lá, com uma saca de grão às costas… ah! ah! ah! (rindo)
Espera Coutinho que és Bernardino. Passam tão poucos carros, que é uma pena a gente não os ver.
O barulho foi aumentando e, ao cimo do quintal do Rafael Miranda, já se via o andante.
Estás a ver Coutinho que és Bernardino, uma “arrastadeira” de duas portas preta… Olha, afinal são dois, e o outro também é preto e é um Ford. Ummm! Estes dois pretos e a estas horas? Não cheira a boa coisa…
E os carros lá continuaram em direcção a Albarraque.



(Continua qualquer dia)
(Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)



19 de Maio de 2011
Silvestre Félix

sábado, 14 de maio de 2011

INAUGURAÇÃO DO NOVO QUARTEL DOS BOMBEIROS DE SÃO PEDRO

Muitos sonharam!
Neste caso, o sonho tornou-se realidade. Os Bombeiros de São Pedro têm um novo Quartel. Neste dia 15 de Maio é a inauguração oficial.


A Associação e os Bombeiros estão gratos a todos que, duma forma ou doutra, colaboraram nesta grande aventura.
Os cidadãos de toda a Freguesia de São Pedro de Penaferrim e do Concelho de Sintra, também agradecem aos Bombeiros de São Pedro todo o empenho e dedicação na sua missão humanitária.


Silvestre Félix


(Imagem: Do site dos Bombeiros de São Pedro)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PREÇO DO VINHO

Mesmo debaixo dos cobertores dava para ouvir o barulho do vento e, assim que pôs a cabeça fora da porta, levou com o sopro do lado de Manique e confirmou o canavial da horta em frente toda dobrada para o lado da serra. Ainda era escuro e alguma claridade já se via lá do lado do Alto Forte mas, o céu estava escuro, não se via uma estrela e era certo e sabido que ia dar chuva. Lá vinham as preocupações do costume, estava o caldo entornado para a Ti Mariana Soleta e dia de festa para o filho.
O Coutinho que era Bernardino tinha acabado de sair de casa para pegar na picareta e continuar a entrar pelas entranhas da terra até chegar à água, que deverá encher até acima, e que logo se vai chamar poço. É esta a sina do Coutinho que era Bernardino. Cabouqueiro era assim que se chamava a arte do homem que tinha “a Ciência da Pedra”. Na verdade, tinha saído de casa como de costume, mas, o destino daquele dia estava traçado, o tempo tinha virado e o trabalho da arte do Cabouqueiro não se dá quando ele, o tempo, entende deitar chuva, até parece que é de propósito, porque já se passaram uns dias que o Coutinho que era Bernardino, não metia umas “charretes” na taberna da “Menina Emília”, e, como o hábito faz o Monge, era bom que de vez em quando o tempo virasse de Manique e deitasse água de chuva, para que o Coutinho que era Bernardino pudesse também deitar vinho pela goela abaixo. E assim foi, neste dia de Janeiro de há muitos anos passados, mais dos que eu já contei nesta vida.
O personagem principal da prosa, Coutinho que era Bernardino ou Bernardino que não era Coutinho, não carece de apresentação, porque por aqui já mereceu essa deferência. Nesta altura da vida do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”, embora ainda solteiro, já tinha dado à estampa da “gazeta” do “boca-a-boca” e do “diz-que-disse” dos Abrunhenses, aquela cena de, em parceria com o Francisco Borrego, quererem imitar o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral voando até ao Brasil num aeroplano construído em cima de um zambujeiro. Por essa e por outras, muitos achaques a Ti Mariana Soleta sofria e rezava terços e mais terços para que lhe calhasse em sorte uma mulher que lhe pusesse tanto juízo na cabeça, como tonéis de vinho ele bebia.
A Ti Mariana Soleta continua na história porque o Coutinho que era Bernardino já casou tarde, e, nesta altura, ainda era a Mãe que tomava conta dele naquilo que naquela época estava destinado às mulheres. Como acontecia noutros sítios, também na Abrunheira, a mulher nunca podia ir chamar o marido à taberna, mas se fosse a Mãe, havia uma certa tolerância e era isso que acontecia com o Coutinho que era Bernardino. Os caminhos das tabernas da Abrunheira eram tão percorridos pelo filho, que por lá enchia o “bandulho”, como pela Mãe que pelos mesmos caminhos se arrastava para o levar de volta a casa a cair de bêbado.
Tal como já acontecera tantas outras vezes, também neste dia, já lusco-fusco, o Coutinho que era Bernardino, nada de chegar a casa. A Ti Mariana Soleta, mete uma saca vazia à cabeça, que ainda chuviscava, e lá vai para o circuito do costume. Começa pelo Osvaldo/Faial, espreita com jeito, e Coutinho que era Bernardino nem vê-lo, vem descendo e chega à “Menina Emília”. Ainda estava a meia dúzia de passos e já ouvia a voz arrastada pelas “charretes” e ”ciganas”, que o Coutinho que era Bernardino tinha metido no “bucho” durante toda a tarde. A Ti Mariana Soleta, espreita à porta e começa com as pragas do costume que, o Coutinho que era Bernardino, mesmo empaturrado de tintol, já as sabia de cor e respondia com a sapiência do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”.


(Dizia a Ti Mariana); “Ai filhe! Quizera Deus que o vinhe acabe…”
“Oh Mãe…… Eu faço o possível., mas o quer…, sou sozinho!”
(
E lá continuava a Ti Mariana Soleta); “Ai valha-me Deus... Porque é que o vinhe nã aumenta para um conte de réis o litre?”
(
Responde o Coutinho que era Bernardino); “ Oh Mãe, até que eu não me importava…”
(
E a Mãe); “ Nã te importavas Filhe?”
Eu cá não… desde que o litro fosse do tamanho da água da Lagoa Azul!”


Este dia de Janeiro de há muito tempo contado em anos, nesta Abrunheira; Que de superfícies ditas comerciais tinha, com muita honra e prestação social, as suas tabernas e mercearias, que de luz, só a petróleo, água só do chafariz, do Santo António e de outros poços, fogão ou forno só a lenha, estrada só de pedregulhos, bosta de vaca e caganitas de ovelha, notícias só do jornal “O século” e visado pela comissão de censura e trabalho/emprego só na agricultura e sazonal… Como dizia, este dia, como tantos outros, “passou à História” porque por cá passaram e vão continuar a passar personagens Abrunhenses como a que foi o Coutinho que era Bernardino, o homem que tinha a “Ciência da Pedra”.


Silvestre Félix
11 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

EU, O PATO E O JOÃO BARRIGA

Por artes mágicas com pozinhos perlim-pim-pim e tudo, o que antes se chamava “Vale de Porcas” ou “Vale Porcas” sem “de”, virou “Vale Flores”. A origem do primeiro nome tem a ver com a existência de muitas cortes suínas de que até a realeza se recorria para abastecer as despensas e as salgadeiras dos Palácios da Vila e da Pena e, também, o de Queluz, desde a época dos desvarios de Carlota Joaquina que consorte rainha se tornou quando o regente D. João foi Rei com o número VI.


Este “Vale”, agora “Flores” e antes “Porcas”, corresponde à parte antiga com entrada por Ranholas ou Chão de Meninos, na banda de cima do A 16. Do lado de Mem Martins, fica então a parte nova de “Vale Flores” que nunca chegou a ser “Vale Porcas” e, antes, “Chancuda” e “Casal da Charneca” do Ti Zé da Charneca e mulher, pais da Lucinda, viúva do Ramos com o café dos quatro onde nasceu a antiga mercearia que me estreou no trabalho fora de casa, armado em ajudante do Ti Ramos. A Lucinda tem uma irmã que no Casal da Charneca também nasceu, esposa do Comandante Gaspar dos Bombeiros de São Pedro. Ainda de mercearia falando. Arrumado no sítio certo ainda tenho a lembrança duma tarde do Verão de 1966. Não tinha costume, mas, naquela tarde, o Ti Ramos ligou a telefonia quando os “magriços” já perdiam por dois a zero. De alegrias carenciados com tal resultado e, com o fôlego ainda meio entupido, os coreanos do norte marcam mais um, encolhendo rapidamente a esperança de virarmos o resultado. Na pele de marçano ajudante, muito contente fiquei, com os cinco espetados à Coreia do Norte.


Deixando a mercearia e o futebol, matérias intrometidas na sequência do escrito que de “Vales” e seus limites falava, esta dualidade na designação do “Vale” diz respeito ao que quero contar. Agora é “Flores” mas a época que vou reportar era “Porcas” de forma que, para o escrito, vai ser Vale Porcas” e ponto final.


Depois de eu ter nascido mesmo em frente do Rio das Sesmarias, decerto de seco leito que o estio já ia forte, a família decidiu ir tratar da vida para outras paragens e eu, que comer e sujar fraldas mais não faria nem entendia, lá fui. E para onde? Para “Vale Porcas”. Os meus pais tomaram de renda o “Casal Novo” que de fruta e horta não pedia meças. A estadia por lá muitas histórias tem que alguma vez poderão ser contadas mas, o fio do meu escrito vai direitinho para o nosso regresso à Abrunheira passados 4 anos e meio.


Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959 e o dia a acabar, quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Ainda meio atordoado com a viagem que me pareceu maior que o costume e porque com os balanços da carroçaria me embalaram para mais um sono…ouvi atrás de mim:


Olha o “pato bravo”!


Gritou o João Barriga quando se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Minha Mãe ou com a minha irmã Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. Mas, o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? E o que era isso de pato e ainda por cima bravo??


A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a vermelho e verde, com as pegas atadas para o animal não fugir. Eu, a Minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.


Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssimaResiquímica, ou, naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem a minha família e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.


O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, não me lembro de ver aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver alguns cães em cerâmica que, decerto, a sua mulher lá colocou para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.


Pois nós tínhamos vindo do dito “Casal Novo” em “Vale Porcas”. Enquanto a casa para onde nós íamos morar esteve indisponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi aí que chegamos de carroça cheia. Outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da Minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.


Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e, o João Barriga, está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."


Silvestre Félix
4 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

ARTES E OFÍCIOS

Naquela época, a profissão – substantivo quase desconhecido ao tempo usando-se na fala a designação de arte ou ofício – servia de “apelido” ao chefe de família e, por sua vez, aos filhos e enteados. Era assim que os Abrunhenses se referiam entre si, sendo hábito tão entranhado que, muitas vezes, os descendentes assumiam outros ofícios tão ou mais dignos e destacadas que os dos progenitores mas nem por isso mudavam de alcunha. Só era lícito acontecer um novo apelido condizente com a nova arte quando, por abençoado casamento, fosse constituída nova família com morada fora da Abrunheira.


Também havia outras formas de identificar os Abrunhenses com nomes mais comuns, acrescentando-lhe o nome da Mãe, do Pai, da mulher ou do marido, por exemplo: “Zé ou João da Natália” (sendo Natália Mãe) e “Ti Maria do Florindo” (sendo Florindo marido). Ainda um outro acrescento ao nome para lhe dar diferença de outros, por exemplo: Silvestre “Velho” (sendo o mais velho, Pai ou Avô).


Desde esse tempo passado e contado em anos, lembro-me de um “Zé”, “Manel”, “Chico”, António ou mais uma dúzia de nomes, seguido de: Sapateiro, Padeiro, Serralheiro, Carpinteiro, Pedreiro, Calceteiro, electricista, leiteiro, peixeiro, etc, etc.


Muito quero contrariar esta tendência de acrescentar ao já muito comprido mas, palavras são como as cerejas que eu lhas gosto, e, por isso, nunca consigo deixar de teclar no ponto previsto, largando-me à vontade dos dedos que não param de andarilhar dum lado para o outro. Na Abrunheira nasci, cresci e fiquei homem, sem nunca ter cumprido em mínimo, as introduções ou os prefácios. Assim sendo, vamos lá às lembranças que se faz tarde e porque o leitor baralhado fica, se não lhe disser rapidamente sobre que Abrunhense hoje prosarei.


Vamos lá. Muito ligado a este costume de chamar pela forma de labuta, levada todos os dias, porque ainda hoje é difícil arranjar outras maneiras honestas de trazer dinheiro suficiente para pôr comidinha na mesa, está também o abreviado do “apelido”, no caso quero destacar como se chamava “peixeira (o)”. Assim, a primeira sílaba ficava só com “pi” e o “i” muito sumido, em vez de “pei”, logo, em vez de “Peixeira” seria “Pixeira” e quase “P’xeira”.


Vem isto a propósito, não do novo acordo ortográfico, mas da nossa querida Ti Aurélia “P’xeira”. Com morada no primeiro andar da mesma casa onde vivia o Manel da Colónia, entrando pelas escadas exteriores nas traseiras. Daí saía, todos os dias de peixe fresco, sempre com a sua Filha Lucinda ou Lucília na fralda do seu avental, empurrando o carrinho de madeira e rodas de bicicleta e travessão, caminhando pelas poucas ruas da Abrunheira daquele tempo, vendendo os seus chicharros, pescadinhas de rabo na boca, J’aquinzinhos, sardinha, chocos, fanecas, cachuchos e outros sempre fresquinhos que todas as noites viajavam da Lota de Cascais trazidos pelo Ti João Pinto, para nós Ti João “P’xeiro” e seus Filhos João, Eurico ou Jaime.


A Ti Aurélia P’xeira, que só de boa gente falo eu, era uma jóia de pessoa como dizia a minha Mãe. Era das pessoas que a minha Mãe gostava muito. Desde essa juventude na idade que lá ficou, que tinha muita simpatia por esta Ti Aurélia que todos conheciam por “P’xeira”.


O Ti João, tinha aqui na Abrunheira a sua morada e entreposto, mas vendia em Mem Martins. Todos os dias, com o seu inseparável cigarro e bigodinho à maneira, lá ia na motoreta e atrelado com o seu peixinho fresco para Mem Martins.


Nestes dias de “marca-crise” económica, financeira e também de valores, não podemos comer peixe fresco da Lota de Cascais porque, como outras coisas, acabou. Há 20 ou 25 anos atrás, tivemos políticos que acharam ser melhor para nós, e também para os Abrunhenses, receber dinheiro da antiga CEE para deixar de cultivar, de pescar, de transformar metais, de fazer comboios, de reparar grandes petroleiros, de construir navios, bacalhoeiros e barcos de pesca, etc., etc..


Pois bem, há 25 anos, o peixe que a Ti Aurélia P’xeira vendia na Abrunheira, era pescado por pescadores portugueses com barcos construídos nos nossos estaleiros e revendido na Lota de Cascais todos os dias normais de trabalho. O peixe era fresco e de boa qualidade. Em todos os portos de pesca era assim. Hoje, o peixe consumido na nossa Abrunheira e em todas as outras Terras pelo País fora, é quase todo importado do estrangeiro, pesa muito no deficit da balança de pagamentos é menos fresco e, muitas vezes de qualidade duvidosa.


Já há alguns modernos dicionários onde não consta o substantivo “peixeira (o)”.


Dos Abrunhenses se fez e faz a nossa história. A Ti Aurélia P’xeira lá tem o seu lugar de destaque.


Silvestre Félix
27 de Abril de 2011


(Extraído dos textos "Abrunheira, Terra com História" de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue "Aldeia Viva" durante 2007 e 2008.)

(Correção e atualização do autor em 2011)






quarta-feira, 20 de abril de 2011

O NOSSO RIO DAS SESMARIAS

Muito discurso se constrói hoje partindo do substantivo “parceria” percorrendo caminhos de prosa arrebatadora para plateias entusiasmadas ou, então, para despachar em grande velocidade magotes de jornalistas e repórteres inconvenientes. As parcerias podem ser muitas mas as que estão mais em voga são as famosas “público-privadas”.


Na Abrunheira, e por razões que nada têm a ver com as que são referidas nas linhas passadas, até porque há 60 ou 70 anos ainda não tinham inventado tal forma de ganhar (roubar) dinheiro, para além disso, os Abrunhenses tomavam banho de ”honra” e a parceria tinha o peso substantivo que a gramática lhe atribui; Era reconhecidamente uma "parceria estratégica", ele (O das Sesmarias) precisava de ser limpo e as ruas precisavam da areia para serem transitáveis.


Estou a falar duma parceria ambiental e que, nos dias de hoje, faria muitas bandeiras que as associações de defesa do ambiente não perderiam a oportunidade de usar; Ainda de asfalto vazias, as ruas da Abrunheira recebiam do parceiro Rio das Sesmarias, pelo menos uma vez em cada ano contado em dias duros de trabalho, as suas areias corridas nas correntes de água de invernos e primaveras chuvosos. O das Sesmarias era limpo do leito às margens e as ruas da nossa Terra eram arranjadas.


O começo da ceifa pelos campos cercados da Abrunheira trazia, de outras terras, ranchos de homens e mulheres que, usando foices, gadanhas e outros utensílios do ofício, desbastavam as searas aloiradas e dispostas ao sabor da nortada chegada a partir de Março. Antes da debulha suada em Verão ainda sem aquecimento global acelerado, o desassoreamento do leito do nosso “Amigo”, tinha as funções bem definidas. Areia, terra e restos dos verdes na água corrente criados – Se fosse neste tempo de agora, limpas de produto final de combustíveis fósseis que nos oferecem em super e mini - mercados, para lhes fazermos o fazer de consumir o necessário e o desnecessário – eram (as areias e o resto) distribuídas ao longo das ruas mais utilizadas com destaque para a principal.


Tudo ficava preparado para receber o aumento de tráfego que mais parecia o IC dezanove em hora de ponta. Nas boas vindas à debulhadora e máquinas acessórias, corrupio de carros de bois e carroças, a rua principal da Abrunheira Que muitos anos depois contados em tempo de vida difícil, haveria de chamar-se “Av. Movimento das Forças Armadas” em homenagem aos obreiros da libertação porque o Salazar demorou muito tempo a cair da cadeira e porque a Primavera Marcelista já não era e porque a guerra não acabava sozinha e porque a PIDE ou DGS ainda era – poucos buracos devia ter para não ser preciso força braçal a desempenar alguma roda.


Ao longo de grande parte desta vida, o Rio das Sesmarias fez parte da minha rotina visual. Para mim, Abrunheira sem rio, não era. Importa lembrar como de longe vem o nome do nosso Rio – Sesmarias!


Por todo o nosso País, pelo Brasil e em todas as outras Terras que foram colónias deste que já foi império, há referências a este nome, comprovando assim a importância desta lei, promulgada a 28 de Maio de 1375 pelo Rei D. Fernando I em Santarém. Pelo mundo há cidades, vilas e aldeias, rios ou serras que se chamam – Sesmarias! A nossa região não é excepção, e, decerto, o nome dado ao rio aqui na Abrunheira, é uma herança de há 636 anos.


Tal como acontece por todo o lado e com tantas outras coisas, o nosso Rio das Sesmarias, neste início da segunda década do século XXI, já não tem a importância que tinha. Na época em que a “parceria estratégica” era praticada, tratávamo-lo com todo o cuidado, estava sempre limpinho. Era da sua água que se regavam as hortas, que se dava de beber à sede dos nossos animais, na sua água, em sítios bem definidos, as nossas Mães/Avós lavavam a roupa, ainda num ou noutro local, faziam-se pequenas represas para que, quando o calor apertasse, a gente conseguisse disfarçar a distância da praia do mar. Neste mesmo rio, lá pró Carnaval, podiam-se apanhar enguias às dezenas e também os bons agriões porque da outra salada era preciso comprar semente, deitar na terra e esperar que crescesse.


O nosso Rio das Sesmarias, que muito morador da Abrunheira nunca viu e muito menos sabe o nome, tem nascente lá pelas bordas da chamada “Serra de Ouressa”, engrossa nas sobras da “Chancuda”, passa por baixo da estrada velha de Sintra e continua a correr entrando na Abrunheira por detrás da Quinta do Olival e saindo entre a Arroteia e a Beloura. Continua atravessando a estrada na Capa Rota junto à antiga “Casa da Água”, mergulha no vale do “Sebastião Moleiro” fazendo-lhe mover a azenha, roça por Manique de Cima e continua serpenteando, sendo mais respeitado nuns sítios que noutros, até encontrar a foz na Costa de Carcavelos.


Silvestre Félix

segunda-feira, 18 de abril de 2011

OS MARCHANTES DA QUARESMA!

Em casa dos meus Pais, a época em que mais sentia a regra religiosa, era a Semana Santa. De forte tradição e cultura católica, a minha Mãe, embora sendo uma praticante moderada, levava a sério as condicionantes da Quaresma muito acentuadas nestes dias que antecedem a Páscoa. Havia restrições no tipo de comida e a carne só voltava à mesa a partir de Domingo. Desde Quinta-Feira que o ambiente era de enterro e, nestes dias, vi muitas vezes a minha Mãe de “Terço” na mão rezando as correspondentes orações.

Muito mais celebrado do que, por exemplo, o Natal, no Domingo de Páscoa a minha Mãe fazia filhoses, arroz-doce e “fatias-paridas” (rabanadas). As minhas lembranças do Natal são vagas, até porque não havia brinquedos nem qualquer outro tipo de prendas, mas a Páscoa era diferente. Também era neste dia que a minha Mãe me vestia uma peça de roupa “nova” A Tia Alice, (Tia-Avó paterna) tinha um negócio de roupa e calçado em segunda-mão e aqui, o “novo”, já tinha sido usado por qualquer outro menino de família mais endinheirada – e também foi num Domingo de Páscoa que estreei os meus primeiros sapatos da Tia Alice, muito diferente das botas cardadas com protetores atrás e à frente, do mercado de São Pedro.

A Páscoa também tinha outro atrativo para os putos da Abrunheira. Todos sabíamos que no domingo antes da Páscoa, que se dizia de pascoela e que, para efeitos religiosos, lhe chamam o Domingo de Ramos, aí pelas 10 da manhã, no Largo do Chafariz em frente ao Álvaro, chegava uma camioneta de passageiros que hoje se diz auto-carro, despejando umas dezenas de pessoas vestindo trajes coloridos e que, depois de formarem uma grande roda no meio da multidão de Abrunhenses, e com o acompanhamento de alguns instrumentos musicais de sopro, iam progredindo em danças e cantorias bem balanceadas e depois, em postura mais retilínea, a que chamavam – Marchas!

No Domingo a seguir, o da Páscoa, lá vinham eles outra vez de Bicesse, da Galiza ou do Estoril. Os Abrunhenses voltavam a responder à chamada. Eu era dos primeiros a chegar mas, ainda antes, já lá estava o Zé Fernando o Rui e o Vitor do electricista com as irmãs que moravam mesmo ali, o Zé Augusto, se a Maria José deixou, a Manuela se a Tia Alice deixou, o Julhinho, o Filomeno Caravaca, o Fernando Pedroso, o Mário, os irmãos Pardal; O Zé, a Albertina, a Isilda,Venâncio, Filipe, Fernando, Chico, Anabela, Isabel e o Carlos Fadista. O Octavinho, de geração diferente da minha, mas figura admirada na nossa Terra naquela passagem dos anos 50 para os 60, que a ocupação do largo complicava a rotina dos bovinos e ovinos a seu cargo. O Valentim com a irmã Isabel e a mais nova, o Carlos Jorge e a Teresa, a Maria Adelina e o irmão, o Domingos e Teresa do Souto, os meus primos; Rafael, Chico da Ti Ermelinda, Gina e o Zé, o Pézinhos e o irmão Fernando e o Pai Rafael Coxo, o meu irmão Vitor, a minha irmã Felicidade, os irmãos Nascimento; O David, o António, o Zé e a Dulce. O Alfredo do Barroso, o Fernando e o Vitor ginete, o Chico Cruz e a Clara, a Graça e a Elisabete, os Irmãos Balagueiras, o João careca e a Júlia, a Maria Augusta, a Zézinha e o Luís, e Pedro bicanka, a Teresa e a Isabel Maria, o Zé do Florindo e a Irmã, a Maximina e a Graciete, o Urbano, o Adrião, o Lucrécio sigamó e as duas irmãs, o Zé e o João da Natália, a Madalena do Ti Joaquim da fruta e a irmã, o Zé grande, o Miguel Frade e mulher que por cá já andavam, o Eurico, o Jaime e João Pinto, o João Barriga e o António calmeirão. Também sempre lá estavam o Ti Joaquim Cagachuva e a mulher Margarida, o Coutinho que era Bernardino e a Judite Caracol, o Zé de Celorico e a mulher, o Caladinho e o Faladura. Muito mais gente vi mas, o tempo passado contado em anos vai absorvendo os pormenores das lembranças. Que me perdoem todos os que, estando, não foram assinalados de merecida forma.

E então os marchantes que cantaram, dançaram e marcharam, dum momento para o outro, fazem o movimento inverso, assim como um vídeo a andar para trás, entram na camioneta, e ainda antes de estarem todos sentados, o andante começa a rolar em direção ao próximo ano. A Abrunheira volta à calmaria habitual ansiando por outra visita.

Para que o gosto não pare, e a Páscoa seja lembrada durante vários dias, ficava sempre o sabor das “fatias-paridas”, das filhoses e do arroz-doce.

Silvestre Félix

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA - Capítulo Um

Aquela manhã preparava um dia de calor a sério, nem vento a norte, nem véu na Serra com direito a ver a ponta do Palácio da Pena. O Coutinho que era Bernardino já tinha no bandulho as sopas de cavalo cansado que a Judi Caracoleta lhe havia preparado. O descanso da noite tinha passado depressa e, na cabeça ainda zonza, martelava aquela conversa de ontem à noite na taberna. Dizia aquele fulano “bem-posto”, que parece trabalha na fábrica nova de Mem Martins e lhe chamam “o caladinho”, porque nunca diz nada e de vez em quando sai-se com umas que a gente não percebe, que tinha começado uma guerra nas “Áfricas” e que os nossos tropas iam começar a ir para lá combater. O pessoal ficou todo de orelhas em pé e de roda dele, todos quisemos saber mais, mas ele, como era costume, ficou muito assustado a olhar para todos os lados e para a porta, pagou a rodada de “ciganas”, e pôs-se a andar.

Bem, o Coutinho que era Bernardino, com aquelas “marteladas” na cabeça, lá saiu de casa e a passar o Santo António, cruza o caminho com o Chico da Beloura que lhe fez a conversa do tempo… que vai estar muito calor, que as ovelhas estão cada vez mais gulosas, que assim, que assado... - nesta altura a Beloura ainda era só Casal da Beloura e quem lá punha e dispunha era o Chico e família e o seu rebanho de ovelhas. Lá muito mais para a frente o Casal virará Quinta - e, entretanto, o Coutinho que era Bernardino, lá ia arrojando o esqueleto até à pedreira do Ti Miguel, com o peso da picareta e ao dependuro no cinto de couro, aquele que o Joaquim Cagachuva lhe arranjou vai para cinco anos, ainda antes de se ajeitar com a Judi Caracoleta, (tomando o fio) o martelo de corte, o escopro de pedra e a marretinha, tudo que lhe fazia falta naquele dia, para aplicar, com toda a sabedoria, a sua arte. Não havia um único santo dia que o Coutinho que era Bernardino, com mais ou menos charretes e ciganas na pança, não dissesse a alguém que;

«Eu sou cabouqueiro… eu tenho a ciência da pedra!»

(A solidão era rainha e, por isso, muitas vezes tinha que o dizer para a própria pedra ou para as ferramentas)

«Olha lá oh Marretinha …(soluço) eu já te disse que tenho a ciência da pedra? (soluço

«E a Marretinha: Sim, já me disseste!»

«E o Coutinho que era Bernardino continuava; Oh Martelo de Corte… (soluço) Eu já te disse que sou o melhor cabouqueiro da Abrunheira e arredores?»

«E o Martelo de Corte lhe dizia; Já, e muitas vezes. (continuava o Martelo de Corte) Oh Coutinho que és Bernardino, com o calor que está e porque as pedras não fogem, porque é que não vais à Menina Emília meter mais uma ou duas charretes no bucho? Assim refrescavas e davas descanso à gente.»

«E logo, o Coutinho que era Bernardino; Olha, se calhar até é boa ideia.»

A última palavra ainda não estava dita, (só precisava dum pretexto) e já o Coutinho que era Bernardino, ligava os andantes para atravessar o Rio das Sesmarias e meter pelo caminho do Cipriano acima.

«Oh Amigo Rio das Sesmarias, deixas-me passar outra vez?»

«(Diz o Rio das Sesmarias) Podes oh Coutinho que és Bernardino. Eu quase que cá não estou, só está o sítio. Nesta altura, a menos de um mês do Silvestre Velho começar a debulha, como é que queres que eu cá esteja? Agora só lá para meados de Setembro com as primeiras águas. Mas… ainda falta muito tempo contado em horas, para o sol de esconder por detrás da Penha Longa, onde é que vais?»

«Meu velho Amigo Rio das Sesmarias, vou molhar a goela à Menina Emília. Tem de ser, se não, a ciência da pedra não sai.»

«Olha lá, Coutinho que és Bernardino, vê no que te metes! Não te descuides, porque senão lá vem a Judi Caracoleta à tua procura.»

E o Coutinho que era Bernardino deixando o Rio das Sesmarias para trás, lá vai subindo o caminho e, quando ia mais ou menos a meio, do lado esquerdo o Cipriano e do lado direito o Pena. Quase os dois ao mesmo tempo, mas cada um a seu jeito;

«(O Cipriano) Então Coutinho que és Bernardino, com o sol ainda tão alto, onde é que vais?»

«Vou até à Menina Emília molhar a goela que a secura está a dar cabo de mim.»

«(Diz o Pena) Vai direitinho e não te demores, se não, a Judi Caracoleta vem fazer-te companhia…»

«(O Cipriano) Oh Coutinho que és Bernardino, olha que o Ti Miguel precisa que acabes aquelas cantarias para as janelas da obra.»

«Eu sei, daqui a meia hora já passo para baixo.»

Passou a esquina do Abílio mas… para a Menina Emília, tinha de passar para as bandas da casa do Ti Miguel. Para não haver chatices, nem dum lado nem do outro, decidido logo ali. Em vez da Menina Emília, ia beber uma charrete ao Faial que agora é o Ramos. Metia em frente pela quinta do Santo António, á esquerda pela do Olival e pronto, já lá estava na curva.

Quando estava a chegar à esquina, e de ouvido o Coutinho que era Bernardino continuava melhor que todos, começou a ouvir uma fala assim… como um discurso bem falado. Quem havia de ser, o “Caladinho”. Lá estava ele… mas…

«O fulano está a falar sozinho. Pois claro, se estivesse alguém, como de costume estava calado. Deixa lá ouvir o que este marmanjo diz…»

É verdade, e os soldados lá iam, todos certinhos, em bicha pirilau, a subir a escada do navio, e no cais, uma multidão a dizer adeus…, eram as mães, os pais, as mulheres, os filhos e toda a família. Era um mar de lenços brancos e uma choradeira sem fim. Os soldados, à medida que iam chegando lá acima, voltavam-se, e tentavam corresponder aos acenos. Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados, nos que ficaram e nos que foram e as famílias estão destroçadas. A maldição tinha batido à porta de cada soldado que embarcava – Daqui a 50 anos, depois dos cravos e de hossanas à Liberdade, ainda vai haver um Presidente da República que elogiará o desígnio da Guerra Colonial a que ele vai voltar a chamar “Guerra do Ultramar” – Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e o “inteligente”e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega, ainda mandam, e o Zé, não consegue reverter a situação, ainda…

(Qualquer dia continua)

Extraído do escrito – “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” – de autoria de Silvestre Félix

Dicas: Charrete – Garrafa de mais ou menos 40 cl cheia de vinho tinto do barril; Cigana – A mesma coisa, mas a garrafa é de 33 cl; Marretinha – Marreta pequena para trabalhar pedra.

sábado, 9 de abril de 2011

DIREITO DE SONHAR!

Pelos traços e caminhos da minha juventude, acontecidos dentro do apertado perímetro da Abrunheira que muitos sempre gostavam de lhe chamar – Brasil e encavalitado nos andantes de ferro abarrotados de outros e outras que, depois de concluído o sagrado complemento de descanso noturno, me despejavam na grande cidade louca de andarilhos logo pela manhã.

Nas minhas andanças, fosse pela borda do Tejo com ou sem “Tallon” sempre à vista daquela janela do terceiro andar, fosse na ida e volta dos andantes nos carris de ferro, na romântica beira da nossa serra com cheirinho a sintrenses queijadas e travesseiros ou na tranquilidade da nossa Terra, sempre me acompanhavam o “Faladura” e o “Caladinho”!

“Cuidados e caldo de galinha, nunca fizeram mal a ninguém!”

O Faladura era bem mais descuidado e muitas vezes inconveniente num tempo de domínio pidesco. Muitas vezes o alertávamos para as possíveis consequências, mas ele pouco ligava. O Zé Carmo Silva era o mais sabedor das técnicas de despiste da “bufaria”. Tinha a experiência do sítio universitário onde a pide atuava em permanência. Eu era aprendiz e, a pouco e pouco, ia aplicando, à laia de teste, algumas dessas técnicas. O Faladura abusava, principalmente, quando estávamos no café do “Manel” ou no “Cabaço”. Ainda por cima havia pessoal mais novo que, embora já nos acompanhasse, ainda não estava consciente do mundo salazarento em que vivíamos. O Faladura era aquilo a que costumamos chamar – “Espalha-brasas”. Houve ocasiões em que ficamos com dúvidas que a indiscrição do Faladura não tivesse trabalhado nos tímpanos de algum zeloso servidor da pide. Não foram poucas as vezes que nos sentimos perseguidos nas nossas andanças. Alguns cantos da Abrunheira conheceram bem as nossas tertúlias secretas em que, muito mais tranquilos estávamos, sem a participação do Faladura.

O Caladinho era o contrário. Quando o Zé Carmo Silva chegou ao seu convívio, já ele dominava tudo o que era “resistência” à pide e aos seus “bufos”. De tão cuidadoso, até metia impressão. Não dizia uma palavra que fosse, sem olhar em redor pelo menos duas vezes cruzando o movimento do pescoço para se certificar que não havia mais ninguém num raio de 100 metros. Fazia sempre isto, mesmo que o tema de conversa não tivesse nada susceptível de ser considerado subversivo pela ditadura. O Caladinho conhecia bem a situação e, da Abrunheira, conhecia bem as moradas que deram serventia a opositores do regime. Sabia até quem se tinha escondido em cada uma delas e o tempo que lá estiveram, com datas e horas das entradas e saídas. Na verdade, o Caladinho, como a própria alcunha diz, estava quase sempre calado. Era mais de: Olhar para ver, ouvir, ler e escrever. Andava sempre com um pequeno bloco de notas onde, quando menos se esperava, desatava a escrever. Havia dias em que trazia também um livro debaixo do braço. Era estranho porque o livro tinha sempre a mesma capa – totalmente branca! Claro que não era a capa do livro. O que o Caladinho fazia era forrar com uma folha branca qualquer livro que trouxesse para a rua. Assim, os “bufos” não conseguiam ver que livro era e, no caso do Caladinho, quase sempre se tratava de leitura proibida. Lembrando-me do Rui, do Caravaca, do Fernando Pedroso, do Mário, do Zé Fernando, do Carmo Silva, do Zé Alentejano e dos mais novos Zé e Fernando Marques, Paulo, etc., etc. a quem nem sempre encaixava bem este comportamento. Depois das explicações que o Caladinho – com muito cuidado e olhando bem em redor – lhes dava, toda a gente entendia e, ao mesmo tempo, ficavam com mais uma lição aprendida.

Nas sessões de matraquilos, por exemplo, enquanto o Faladura dava largas à sua capacidade vocal, estivesse a jogar ou na posição de espetador, o Caladinho que jogava bem e preferia a defesa onde, em muitas partidas, metia mais bolas na baliza adversária que o parceiro do ataque, não festejava as bolas a seu favor nem comentava os golos que sofria. Eu, embora na altura visse as diferenças entre um e o outro, só muito mais tarde percebi bem o significado de uma e de outra atitude.

Naqueles anos de crescimento demográfico da Abrunheira em que o pouco alcatrão da (hoje) MFA, só ia até 100 metros antes da delegação da Junta e que a do Forno ainda não era porque o forno do Cipriano ainda lá estava e fumegava, em que a Ferreira de Castro ainda era “curronquinho” e, vinda de cima, parava logo a seguir ao Cabaço, em que URCA era sonho e muito menos a Humberto Delgado que de carrascos e silvas se via farta e batizada de Caracol, em que o “clandestino” Carrascal que toda gente sabia e via, viria a vestir-se de símbolos de LIBERDADE com a rua 25 de Abril, 1º de Maio e da Liberdade. Naqueles anos em que se aproximava rapidamente a minha hora da tropa e, quem havia de saber, da Guerra Colonial, não fora o: E depois do adeus” e a “Grândola Vila morena” com um mar de cravos vermelhos nos canos das espingardas.

Naqueles anos, UM Faladura e UM Caladinho eram meus companheiros inseparáveis.

Tenho a certeza, no entanto, que muitos outros abrunhenses da minha geração tiveram também por companheiros outros tantos “Faladuras” e “Caladinhos”.

Na Abrunheira, em 2011, também há juventude com muitos problemas e, uma boa parte, identificar-se-á com os movimentos contestatários que ensaiam a grande ação de indignação que, mais tarde ou mais cedo, se mostrará.

Em momentos diferentes, com medidas de grandeza muito distantes, a minha juventude e a de 2011 tiveram e têm o direito de sonhar!

Silvestre Félix

9 de Abril de 2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

AGRADECIMENTO

Estamos em Abril – mesmo que este esteja um bocado nublado com a frente negra que se aproxima vinda do fundo europeu de estabilização financeira (FEEF) e doutras siglas menos recomendáveis – e é o tempo adequado para saudar os amigos.


Tenho a obrigação de transmitir o meu agradecimento pela forma como o “Largo do Chafariz” tem sido acompanhado, comentado e partilhado por parte considerável dos membros do grupo de seguidores no FB e também diretamente no blogue.


Aproveito para incentivar os membros do grupo de seguidores a sugerirem a adesão de pessoas interessadas e que não seja do meu conhecimento. Sempre que isso aconteça, enviem-me mensagem FB para eu poder adicionar.


Um Abraço

Silvestre Félix

quarta-feira, 6 de abril de 2011

“LINHAS” DE HISTÓRIA!

Do Coutinho que era Bernardino, algumas linhas de histórias já contei porque ouvi, e outras também porque inventei. Para personagem Abrunhense tão cheia de eventos narrados pelos nossos melhores contadores, não há linhas que cheguem, e o tempo já contado em muitos anos produz muitos cordéis de prosa. Dando de barato que o Mário, o Rui ou o Zé Fernando, conheceram e se lembrarão do Bernardino que todos chamavam Coutinho, o mesmo já não dou como certo que conheçam o enredo de cheiro pouco recomendável, que a seguir vou bater neste teclado “Samsung” marcado.

Já agora, convém lembrar que este Bernardino é o mesmo que passou a ser Coutinho quando, com o também já nosso conhecido Francisco Borrego se emparelhou e, juntos, quiseram repetir a façanha de Gago Coutinho e Sacadura Cabral de voarem até ao Brasil, empoleirados numa geringonça que de aeroplano só tinha a imaginação incontida destes dois marmanjos Abrunhenses por adoção. Do dito voo abortado antes de o ser, já aqui dei conta, explicando como de Saloios Abrunhenses, viramos dum dia para o outro, Brasileiros. Este, que viria a ser Coutinho nesse tempo contado em anos lá para a frente, ainda era rapaz com cheiro a cueiros e com o nome bem assente de Bernardino – que, sua Mãe, Ti Mariana Soleto, verbalizava “Benardine” de cada vez que o chamava, que não eram poucas – é a personagem principal das linhas tecladas adiante.

De preâmbulo muito longo para a prosa planeada, que é então protagonizada pelo Bernardino que ainda não era Coutinho, tem a ver com uma alfaia agrícola que deu o nome a um dos famosos restaurantes da nossa Terra – O Trilho!

Os trilhos existiam porque nas eiras funcionavam e, na Abrunheira, muitos houve. Muito perto daquele santuário onde refeições se devoram, havia uma eira que o Francisco Borrego lhe deu uso, sem traições de memória, vejo bem outra em frente à antiga “sociedade” da Abrunheira, outra logo a seguir do mesmo lado onde o meu Avô muita semente separou e, mais abaixo, outra do Espanhol que o “Calmeirão”, seu genro, nunca nada lá trilhou, pelo menos que me lembre.

A “eira” era construída com ciência da época. Normalmente redonda com lajes de pedra e, de preferência, em sítio ventoso. O “trilho” era normalmente puxado por bovino com redondos de madeira passando por cima dos cereais e “trilhando” os invólucros das sementes, fazendo com que estas saíssem. Depois, com uma espécie de forquilha de madeira, levantava-se a palha, começando pela mais grossa, até ficar a semente toda à vista na laje da eira. O vento levava a palha mais fininha. Chegava a hora de recolher as sementes em sacos, e recomeçava outra eira. Entretanto, e como se tratava de operação limpa, era preciso garantir que os animais não sujassem (bostassem) a eira com as pesadonas bostas de merda. Então, o próprio trilho, tinha um acento para uma pessoa se acomodar com uma pá disponível e atenção redobrada, para, quando o boi resolvesse deitar bosta, essa pessoa, de pá em riste, apanhasse ainda no ar e quentinha, a bosta de merda. Bem, é realmente uma conversa de merda, mas é aqui que entra o Bernardino que ainda não era Coutinho, nesta época ainda rapazola, e fazendo este trabalho para o Mané (Manuel) Guilherme, Pai do nosso conhecido, “Pechincha” (António Guilherme).

Ia cumpridor aquele Verão de “calorzito” como manda a regra e mando eu. Sim, porque a circunstância de juntar estas letrinhas todas, dá-me com certeza o privilégio de inventar qualquer coisa, nem que seja o estado meteorológico da Abrunheira naquela época. Sabendo que a tradição já não é o que era, e que em 2011 vamos encarando coisas verdadeiras como autênticas aves raras, acho que ainda consigo fazer crer que naquele Verão, a nortada ventava como ainda hoje, embora o conteúdo esteja mais consistente, lá vem dívida soberana, juros altíssimos, austeridade, enfim, ventos fortes que são prelúdio de tempestade.

No entanto, com mais ou menos calor e de preferência com vento, aquela transição do Julho para o Agosto era o período de ponta de utilização das eiras. E era exatamente por isso que lá estava o Mané Guilherme de volta do Ti Vitor a dar-lhe conta da necessidade do seu filho e rapazola Bernardino, que ainda não era Coutinho, se sentar levezinho na traseira do “trilho” com o aparador de “bosta” para que a semente fosse recolhida e ensacada livre de “merdança”.

O Mané Guilherme, Pai do nosso já referido e conhecido “Pechincha”, que lembro sempre ligado à fruta de época com armazém logo a seguir à antiga “Sociedade” na esquina da azinhaga para o nosso rio das Sesmarias e em frente à horta do “Manel da Colónia”. Naquele armazém se escolhiam as laranjas, as maças, as peras e sei lá mais o quê. Só sei que quando era tempo deste trabalho os “putos” Abrunhenses não largavam a porta e, nunca perdiam o tempo porque o Pechincha era uma boa pessoa e distribuía fruta pelo pessoal. O seu homem permanente na Abrunheira era o Ti Mendes protegido da “Mariazinha” que era mulher do Pechincha. A figura do Ti Mendes era de velhinho com grandes barbas brancas e cachimbo de cana sempre feito pelo próprio. Eu assisti à “construção” do cachimbo mais duma vez, como também já aqui contei.

Bom, voltando ao Pai do Pechincha, o Mané (Manuel) Guilherme e ao nosso conhecido Bernardino que ainda não era Coutinho.

O Mané Guilherme, homem de arca cheia, terra muita e de produção variada, vivia com a família onde é hoje a casa do Eurico Pinto, ou ao lado, na que está ligada à antiga “Sociedade” onde depois conheci de lá morador, o Ti Simões, salvo erro, Avô do Zé Fernando. Seria numa ou noutra e a sua eira era em frente, onde, neste ano de crise “a dar com um pau” e com eleições à porta, existe uma moradia.

Ah rapaz!! Endireita-me esse aparador, olha que o animal vai cagar agora, oh rapaz! Olha-me p’ra frente, ah rapaz isto…, oh rapaz aquilo, e o Bernardino que ainda não era Coutinho que gostava era da arte de “Cabouqueiro” e queria aprender a “Ciência da Pedra” e que naquele tempo ainda não sonhava levantar outros voos, já não tinha paciência para aturar o Mané Guilherme, e, num minuto de desespero, desce do assento do trilho, atira com o aparador da merda e, perante a estupefacção do Mané Guilherme, o Bernardino que ainda não era Coutinho e que a Ti Mariana Soleta dizia Benardine, disparou na sua direcção:

Estou farto de o ouvir falar em merda!

(diz Mané G) Mas oh Bernardino, volta pró assento do trilho senão o “malhado” caga-me a palha toda!

(diz Bernardino) o quê? Vá você! E desata a correr desaparecendo na direcção do Chafariz.

O Mané Guilherme não podia levar à paciência e até espumava p’la boca, considerou uma grande ofensa porque o rapaz o mandou “prá merda”. Para ele, homem de arca cheia, que até nem era homem mau, ir para o assento do trilho era indigno. A função era menor e só cabia na medida dum rapazola e, de preferência, de família serviçal e de arca vazia. Sabemos nós, do Bernardino que ainda não era Coutinho a gente já sabe muita coisa, que não era isso que o rapazola queria dizer, simplesmente que fosse ele (o Mané Guilherme) para o assento, mas o homem estava numa onda diferente e entendeu pelo pior e foi logo desenrolar a fita à mulher:

Então não querem lá ver, o rapaz do Vitor mandou-me à merda!

O quê? (Pergunta a mulher)

Sim, mandou-me à merda, (nisto chega o Ti Vitor). Oh Vitor, sabes o que é que o teu filho fez?

O que foi? (pergunta o Ti Vitor) Mandou-me à merda. (responde o Mané G)

O quê? Não pode ser! (diz o Tio Vitor)

Ai pode, pode! (diz o Mané G)

Logo de seguida chega a Ti Mariana Soleta e diz o Ti Vitor; Então não queres saber?

O que é que foi “Bitro”? (pergunta a Ti Mariana)

O Bernardino mandou o Ti Guilherme à merda.

O quê? (pergunta a Ti Mariana)

Bom, meia - hora depois, toda a gente na Abrunheira já sabia do sucedido.

Moral da “estória” – Dos bons exemplos devemos ter em conta, dos maus também e, aqui, neste caso, uma palavra mal compreendida pode criar grande confusão. Com muito tempo passado e contado em muitos anos, devemos estar atentos e de olfacto bem apurado porque… nunca se sabe o que vem por aí.

Das famílias aqui prosadas só bem se deve reter. Uma, porque de modesta e humilde se tratava mas de honestidade e honradez nos píncaros, a outra de posses bem garantidas mas igualmente honrada e honesta na Abrunheira doutros tempos.

Silvestre Félix

quarta-feira, 30 de março de 2011

DÉCADA DE 70

Para que ninguém colha a ideia de que na década de 70 do século ido, na Abrunheira, a juventude seguia à risca todos os padrões da geração mais velha no que respeita a bom comportamento, tenho de vir aqui dizer a verdade, deixando muitas dicas para que cada um possa fazer o seu juízo.

Havia os que se portavam bem, os que se portavam mal e os assim-assim. Também havia, admito, quem não se enquadrasse em nenhuma destas situações e tudo fizesse para passar despercebido.

Eram tempos de preocupação de trabalho, de tropa e do que fazer com uma guerra no horizonte. Tempos também de namorar a sério e a brincar e de saber como elas iam convencer os Pais na saída dominical para, pelo menos, uma ida ao Cabaço.

Eram tempos de organizar bailaricos em alguma garagem ou na adega do Pai do Zé Carmo Silva e discar vinil quantas vezes necessário fosse para se sentir a proximidade do corpo do par e, com intervalos de semanas, voltar a tocar-lhe, pelo menos, nas mãos. Naquele início da década, a “química” já tinha sido descoberta, embora dando os primeiros passos na investigação. As paixões iam e vinham, passavam ao lado e de lado. Tempos também de petiscos e “pielas” de “caixão à cova”, quase sempre disfarçadas com onda bem humorada e risada incontida à sobremesa.

Eram tempos na Lagoa de Albufeira com longas noitadas de cantoria, petisco bem regado e depois com a aprendida guitarrada do Zé Barros. Nova estação em tempos de namoradas novas, água tépida, boa temperatura e muita areia agarrada ao pêlo.

Eram tempos de muitas horas levadas em torneios de matraquilhos e mesas infindáveis de king. De matraquilhos, na Abrunheira, havia a primeira e a segunda divisão. O terreno da primeira divisão era no café do Manel (café Brasil na Av. Dos Combatentes). Aí se defrontavam os melhores jogadores: Pézinhos, Fernando Martinho, Baptista, Chico Cruz, António e Zé Nascimento, José Duarte, Durães e muitos outros. A segunda divisão jogava no café do Cabaço. Os jogadores eram mais novos e, a grande ambição, era um dia poderem emparceirar ou defrontar os da primeira divisão. Eu fazia parte desse grupo com o Rui Simplício, Zé Marques, Fernando Marques, Zé Carmo Silva, Fernando Matos, Zé Alentejano, Pele e Osso, Mário Martinho, Zé Fernando, Vicente, Fernando Pedroso, Filomeno Caravaca e outros que, por causa deste meu litígio permanente com a lembradura de nomes, não me deixa acrescentar mais.

Também eram tempos de cartas. Mesmo no Cabaço jogávamos ao King. As noitadas eram muitas vezes passadas na adega do e nunca tínhamos limite de tempo para terminar.

Eram tempos de coisas sérias e nunca ajuntamentos suspeitos antes de 74. Eram também tempos de medo. Eles, os da pide, andavam sempre por aí. Aprendíamos cedo a mudar de conversa quando alguém com perfil de “bufo” se chegava perto. Depois dos da pide terem arreado as calças, os espíritos se abriram, começamos a ir mais ao cinema e até podemos finalmente ver “O último tango em Paris” com o Marlon Brando e a Scheneider, o “Garganta Funda” e todos os que apareciam da série “Emmanuel”. Na mesma onda, os bailaricos do começaram a ser mais frequentes, cada vez havia mais vinil e os pares já se tocavam mais. Os tempos eram de ventos fortes com um novo ar e, todos nós tomamos bebedeiras desse novo ar e de tudo o que nos punham à frente – às vezes até demais.

Eram tempos para pôr em prática as ideias boas. Antes o JURA no Algueirão e depois a URCA aqui na Abrunheira passaram a dominar as vidas da nossa juventude que continuava a namorar, a apaixonar-se, a ir para a Lagoa, a jogar aos matraquilhos, a jogar ao king, à lerpa, ao futebol e a portar-se bem, mal ou assim-assim!

Silvestre Félix

sexta-feira, 25 de março de 2011

PORQUE NOS CHAMAVAM BRASILEIROS

Em plena segunda década deste século vinte e um, em dias de terramotos e tsunamis devastadores e crises de dívidas soberanas que já nada têm que ver com soberania, quase não se ouve e, mesmo eu, de certeza não entenderei à primeira, se alguém me chamar “Brasileiro”. Até há tempos, contados em vinte e cinco ou trinta anos, ainda era comum: em Albarraque, no Linhó, em Mem Martins, em Rio de Mouro ou em Ranholas, referirem-se aos Abrunhenses de Brasileiros e à Abrunheira de “Brasil”.

Porquê? O que tinha a Abrunheira a ver com o Brasil? Na verdade existe uma justificação para isso e a história pode ser contada mais ou menos assim:

O feito dos nossos heróis, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, saindo de Lisboa no hidroavião "Lusitânia" em 30 de Março de 1922, fazendo a rota do Atlântico Sul e chegando ao Rio de Janeiro no Hidroavião Santa Cruz a 17 de Junho de 1922, teve um alarido muito grande em todo o País. Era uma época em que os valores e a auto-estima estavam de rastos por cá (em termos de níveis, não andarão muito longe dos de hoje) e, um feito destes, foi festejado como se tivéssemos voltado ao tempo dos descobrimentos. O que é verdade é que esta viagem dos dois Portugueses ficou na história da aviação civil mundial. A primeira travessia do Atlântico Sul aconteceu, fundamentalmente pela tenacidade e coragem dos dois aviadores e são essas qualidades que se destacam no imaginário dos portugueses anónimos, mesmo daqueles que nem sequer faziam ideia aproximada do que era um avião, ou, como à época se dizia, um aeroplano, ou ainda, neste caso, um hidroavião.

Na Abrunheira o acontecimento também foi vivido com o mesmo entusiasmo. Foi de tal forma que houve quem quisesse imitar os Heróis Nacionais. E logo eles que nunca tinham visto um “passarão” daqueles nem nunca tinham falado com alguém que o tivesse feito por eles. Bom, mas coragem não se mede e lá se atiraram à tarefa.

Um dos protagonistas, o Francisco Borrego, morava num casal saloio onde é hoje a Rua da Escola, em frente à Rua de S. José e era familiar do Mário e Paulo Martinho. Tenho ideia de ser só agricultor, não me ocorre que fosse encartado em qualquer outra arte. O outro era o Bernardino, marido da Judite Caracol e tinha a arte (como ao tempo se dizia) de cabouqueiro. Nas horas de retórica alcoolizada, dava-se a conhecer à plateia como sendo o único cabouqueiro possuidor da “Ciência da Pedra”. Passando à frente da retórica, continuemos a identificação dos atores principais; A quinta do Caracol Velho (que fumou cachimbo até morrer muito Velho) era quando se desce a Rua Humberto Delgado, a seguir à Quinta do Azevino do mesmo lado. Pois o Bernardino, genro do Caracol Velho, era homem de músculos, designação incluída no pacote da já dita “Ciência”. Contava-se que, na taberna do Faial, hoje da Viúva Maria do António José e Filha Isabel, este homem, que se chamava Bernardino, levantava com os dentes, barris de vinho de 50 litros e sacas de farinha do mesmo peso. Este Bernardino, ainda me lembro (aqui já era também Coutinho) de o ver de picareta nas unhas (mãos) a abrir valas para a colocação da água canalizada que vinha aí à pressa, pois já estava atrasada, mas, finalmente, a chegar à Abrunheira… Era um homem forte até que, a curvatura em peso do Tempo contado em anos de idade começou a ser grande. Também me lembro de ver este Coutinho que era Bernardino arrastar os pés pesados pelo Tempo que passou.

Quando ainda eram novos, lá por alturas de 1922/23, e como também queriam ser heróis, o Bernardino e o Francisco Borrego construíram como puderam, e com a ciência que a vivência lhes deu, um aeroplano que, para eles, representava o "Lusitânia". Levezinho, menos de um terço do tamanho real, para que fosse possível utilizar como rampa de lançamento um "zambujeiro" (parente pobre da oliveira) aqui por cima das "pateiras". (É preciso que se diga, para que não sirva de argumento palaciano, que o local pode muito bem não ter sido o indicado, mas, que fazer? Nenhum deles pela terra ainda anda de forma que me possam confirmar o sítio. Nesta conformidade fica dito e redito que, para os devidos efeitos, o sítio é mesmo este.) Claro que a rampa de lançamento não foi suficiente para que o Coutinho, ainda Bernardino, e o Francisco Borrego, conseguissem concretizar o seu sonho… voar como faziam os pombos, as rolas, os melros e pintassilgos, sim… porque o “Lusitânia”, ou qualquer outro aeroplano, eles nunca viram, daí acreditarem que bastava construírem uma coisa com asas para poderem levantar voo e irem até ao Brasil, que a vivência e muita imaginação lhes dizia que era já ali. Pois é, o trambolhão foi instantâneo, assim que fizeram peso no "hidroavião" em cima do zambujeiro, caíram com os quatro costados no chão e assim se acabou a viagem até ao Brasil. De plateia convidada e mirones metediços, não seriam muitos abrunhenses mas, ainda assim, mais que suficientes para acudirem às mazelas dos “aviadores” improvisados e propagarem a dececionante aterragem forçada pelos “ouvidores do reino”, dentro e fora de portas.

Mas se aqui acaba a história do voo até ao Brasil para o Bernardino que passa também a responder como Coutinho e para o Francisco Borrego que, a partir deste dia fica colado ao Sacadura, também aqui começa outra história. À conta deles, e porque o Salazar ainda não tinha descido à Capital, sem canga, sem pide nem censura, os vizinhos de Albarraque, Linhó, Mem Martins, Rio de Mouro, Ranholas e doutras terras ainda mais longe, em jeito de chacota, começaram a chamar-nos "Brasileiros" e à Abrunheira "Brasil".

Não é por acaso que o café na Av. Dos Combatentes, em frente ao Trilho, se chama "Brasil”. Exactamente…, por causa da história do Coutinho que era Bernardino e do Sacadura que era Borrego. Na época da inauguração do Café Brasil pelo "Manel do café", lá pelos meados da década de sessenta, ainda era normal nos arredores chamarem"Brasil" à Abrunheira e a nós, os de cá, "Brasileiros". Na ida de manhã ou no regresso à noite, nos andantes da alva como cal “Palhinha” ou da azul celestial “Boa Viagem”, era frequente dizer-se como destino de viagem, “Brasil” em vez de Abrunheira. Esta história de Abrunhenses e Brasileiros não ficava completa sem, a propósito do Café Brasil, dizer que o “Manel do Café” era genro do autêntico Saloio "Sabino", homem grande que fazia dois de mim, e que tinha tanto de grande como de bom. Usava barrete, aquele barrete preto à Saloio, e aquelas calças de cetim que apertavam até por cima da barriga com a devida saliência, e também aquelas camisas que hoje só costumamos ver nos trajes dos ranchos folclóricos.

Também não é por acaso que à rua que vai da esquina do Ti Alexandre pela direita, ficando as “pateiras” à esquerda, lhe foi dado o nome de Gago Coutinho. Tem a ver com a aventura do “Lusitânia” e, por isso, perto do local onde tudo aconteceu.

Em 1975, aquando da fundação da URCA, muito se conversou e muito barro à parede se atirou, sobre que emblema e símbolo devíamos adotar ou criar, para a nossa coletividade. Ainda a propósito da brasilidade da nossa Terra, o emblema criamos, e as cores que lhes juntamos foram, nem mais nem menos, as cores do Brasil – O amarelo e o verde!

A nossa Terra tem passado e os seus filhos tiveram, e têm que continuar a ter futuro. O Coutinho que era Bernardino e o Borrego que não era Sacadura estão na nossa memória e, ficarão, ligados à história da Abrunheira!

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, tendo sido alguns publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)
Silvestre Félix