—
Desnorteado estou eu, com a ventania que por aí anda! Diz que não, diz que não
te tira o sono e depois queixa-te!
— Oh
Coutinho, mas então, o que me interessa a mim, o que vai acontecer daqui a cinquenta
ou sessenta anos?
— Ai não te
interessa, não?
— A mim,
não! Nessa altura já sou tijolo bem ressequido.
— Pois a mim
interessa-me, e muito. Estão a meter-se com o nosso amigo Rio-das-Sesmarias. Eu
cá, já estou habituado às “trocas e baldrocas”; tanto me chamam Bernardino que
não sou Coutinho, como Coutinho que sou Bernardino e outros nomes e alcunhas
que agora não vem ao caso, mas, com o Rio-das-Sesmarias, “fia mais fino”. Nortadas
à parte, não posso “levar à paciência” que lhe troquem o nome.
— Concordo
contigo mas …
— Mas o quê??!!
Não me digas que não te importas que, passando muito tempo lá para a frente;
contado em anos pr’aí uns cinquenta ou sessenta, venham uns gajos de gravata
dizer que não eras Artista-Sapateiro, que ignoravas a “geografia-ao-pé-de casa”,
que não usavas boné, que te chamavas Manel e que cagavas ao sol em vez de o
fazeres à chuva?
— Tens
razão, Coutinho! Mesmo já não andando por cá, sabendo duma aldrabice dessas,
não ficava nada satisfeito. Estou disposto, contigo e com quem mais tu achares
de valia, a lutar pela verdade, eliminando, com quantas cajadadas for preciso,
a ignorância e o desnorte que por aí abunda.
E os dois “Abrunhenses”
lá foram andando, do “Lugar de Baixo”, a sul, para o “Lugar de Cima”, a norte.
Passaram o Santo António, o “Espanhol”, o “Silvestre-Velho” que, como
comandante à proa do navio, do alto da varanda, olhava os trabalhos a decorrer
nas terras abaixo da Colónia e até ao Linhó, pela esquerda e, à direita, até
aos “barros” — sessenta, contados em anos de tempo para a frente, os
“inteligentes”, chamar-lhe-ão: Norte da Abrunheira-Norte — mesmo à beirinha da
estrada, do lado de cá da “chancuda” que, para além da nascente, ainda recebia muita
água da regueira, desde o “penedo”, rentinha ao fundo do “Casal-Novo”. Tão
absorvido estava que nem respondeu à saudação dos dois passantes. Aproveitando
bem o tempo solarengo, em conluio com o São Martinho, o “Silvestre-Velho” mobilizava
as suas duas juntas-de-bois e todo o pessoal disponível, acelerando o amanho
para que, antes do Natal, grande parte das sementes estivessem na terra. Da
varanda, e como se todos o ouvissem e vissem, bracejava e gritava os
impropérios do costume — Ah, “almas do diabo”; “raios-os-partam”; “filhos duma
égua”; etc., etc.,.
Caminhavam
pela “principal”, com o amigo Rio-das-Sesmarias à esquerda, correndo no sentido
inverso ao deles; de norte para sul. Podiam ter metido pela “Azinhaga do Rio”,
à esquerda, a seguir ao quintal do Rafael Coxo e junto à escolha da fruta do “Pechincha”,
mas não o fizeram. Sob o olhar e cumprimento do Ti Mendes, que muito fumo pelas
beiças e ventas deitava, por cada forte puxada no bocal do cachimbo de cana
feito, rumaram na direção do Chafariz e o destino era a taberna da “Menina
Emília”. O Coutinho que era Bernardino estava com ganas de emborcar uma “charrete”
e, o “Artista-Sapateiro”, também.
Ambos sabiam
que “o norte” era o caminho daquele dia e daquele tempo. Por aquela que, vinte,
mais tarde, contados em anos, seria a “Travessa do Norte”, e a desembocar na
“Rua das Sesmarias” filha adotiva do nosso RIO que, pelo menos, lá pelos tempos
de D. Fernando “o primeiro”; se passou a chamar, aqui, na Abrunheira; “Rio-das-Sesmarias”.
Que não se contem os anos, desde o princípio do último quartel do século XIV, que
são muitos e tempo suficiente para que, para lá da profecia; “a dois mil chegarás,
de dois mil não passarás”, não se admita tamanha ofensa ao nosso RIO;
chamar-lhe “Caparide” e, ainda-por-cima, “ribeira”??!!
Vagarosos,
como se queria naquele verão emprestado de novembro, lá foram, com a “charrete”
da Menina Emília e mais — porque assim que meteram ao “Cipriano”, viraram no
beco para a adega do Pena — duas ou três canecas da melhor água-pé deste
planeta e de todos os outros que o universo tenha, em direção à passagem de
pé-posto, do nosso querido Rio-das-Sesmarias. Ele estava no seu sítio, corria
bem direitinho, de norte para sul e sem solavancos, que o chovido não era assim
tanto mas, muito acabrunhado.
Chegou
primeiro o Coutinho, pois a perna aleijada do “Artista-Sapateiro” — e mais o
que lhe passou pela goela, a caminho dum estômago bem atestado de acidez e
ávido de matéria para desfazer, e mandar rapidamente para o “delgado”, ganhando
velocidade no trânsito, mesmo sem mesinhas e outras artimanhas, para que não
estacione muito tempo no “grosso” — fizeram com que viesse mais atrás.
— Então,
amigo Rio-das-Sesmarias? Como vais correndo?
— Vou levando
a minha água, dando passagem de ida e volta, com direito a recreio, às enguias
do poço da nora, na horta e pomar dos pêssegos-rosa que o “Zé Silvestre”, trás.
Levo água para que os “girinos” nasçam, cresçam e, lá para março, despontem
lindas e coloridas rãs, que coaxam sem parar; para que os animais dos
Abrunhenses se satisfaçam do líquido precioso; para que os agriões que crescem
nas minhas margens, completem saborosas saladas verdes, enfim; da encosta de
Ouressa, engrossando com o “fio” nascido no Penedo, irmanado com a da Chancuda,
que pelos “Barros” vêm a mim: “Rio-das-Sesmarias”, antes e depois da Abrunheira
até à “Azenha” do Ti Sebastião, na Capa-Rota. Depois, já não me importo, porque
pelos “Bernardos” vou tomando outros nomes que, de mim, só a água levam. E
vocês? Como vão encarando as notícias que, do norte, nos trazem?
Cada pé em
sua pedra, com a anuência do “acabrunhado” RIO, passaram, como sempre faziam,
para o lado da pedreira que, do Ti Miguel, ainda seria, por muito tempo contado
em anos. O Bernardino, que Coutinho não era, tomou como assento a, que dizia
sua; pedra. Pegou no bornal, que se quedava no ombro esquerdo, e posou-o no
chão, com muito cuidado. Num dos alforges, trazia ferramentas de trabalhar a
pedra, como se fossem tubos de ensaio do mais moderno laboratório. A
“Ciência-da-Pedra”, que era a sua, só podia ser “manobrada” pelos mais
delicados instrumentos. No segundo alforge, que balançava à frente, o Coutinho
que era Bernardino, trazia o seu farnel que a Ti Mariana Soleta lhe tinha
preparado antes de sair de casa, ao mesmo tempo que lhe recomendava — Ai
“Be’nardine filhe, nã me vás pa’taberne embo’car vinhe” (aqui não entra a
”história” do Coutinho, por razões óbvias. Se, para quem lê, não for assim tão
óbvio, espere por outro escrito ou vá ver os antigos) e que tinha; Uma “cigana”
cheínha, um quarto de pão-escuro e um bom naco de toucinho-entremeado que, logo
chegado à pedreira, lhes daria o devido tratamento que, mesmo correndo o risco
do “Artista” me acusar de desvio do tema ou matéria, como lá muito para a
frente, no longínquo século XXI (se, a dois mil passarem) os políticos velhos e
os aprendizes, vão gostar de dizer muitas vezes; não resisto a “mostrar”, por
antecipação, aquele que, sempre era, um laudo banquete!
Na principal bancada do seu
“laboratório”; a pedra que servia de mesa para comer e poiso para as
ferramentas, Bernardino que não era Coutinho, tira do bornal o papel-pardo do
costume, estende-o na “mesa”, e coloca-lhe em cima; o pão-escuro, o naco de
toucinho e a “ciganita”. Como comer e beber, ritual sempre foi e será, respeitando
o cerimonial, saca do bolso a sua indispensável navalha-curva (de enxertar),
com jeito e delicadeza que só mãos e dedos habituados a “tocarem” a ciência,
mesmo que, de pedra seja, abre-a e, com um gesto certeiro de tantas vezes
repetido, passa os dois lados da lâmina da navalha, pela ganga das calças da
perna direita, logo acima do joelho, e inicia o corte preciso dum bocado de
pão. Findo este, idêntico manuseamento faz ao toucinho e, juntando os dois
pedaços, mete-os na boca, iniciando uma função de mastigação que, só viria a
ser completa, com um trago de vinho emborcado diretamente da “cigana”.
Noutra, bem
ao feitio e tamanho da “padaria” do Artista-Sapateiro, lá se sentou ele,
segurando, num repente, a beata presa ao beiço de baixo, que lhe ia caindo. O
único dente que despontava da “cavidade” bocal, bem espetado na gengiva de
baixo, não era suficiente para lhe prender, bem, o cigarrito. E, como que
reagindo ao tropeço, meteu “estopa” e iniciou faladura sapiente sobre viagens
há muito empreendidas; Não fosse, ele, Artista-Sapateiro, dos bons, contador de
histórias e cenas que ele sabia e repetia. Muito ele calcorreou, perseguindo
clientela de meias-solas para patrões das quintas e jornaleiros, desde a(s)
Malveira(s) (dos bois e da Serra) até aos “Estoris”, passando pelas Azenhas e
Janas, subindo para Almoçageme, Penedo, Eugaria até ao outro lado em
Paço-de-Arcos, Quinta da Estribeira, Leião até Belas, pelo outro lado em
Odrinhas, São-João-das-Lampas, Linhó ou Parede, Caparide, Murtal, etc., etc.. O
Artista-Sapateiro conhece o percurso do nosso Rio-das-Sesmarias, até à foz, na
Costa-do-Sol entre São João e São Pedro do Estoril. Por acaso até passa junto a
Caparide, a mais-ou-menos três quilómetros da foz e quinze da Abrunheira mas,
chamarem ao nosso amigo Rio-das-Sesmarias, “ribeira de Caparide”, não lembra a
ninguém que saiba um pouquinho de “geografia”.
— Oh
Coutinho, tive agora uma ideia de “estalo”; vamos teletransportar lá para a
frente, cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, uma “Petição pública”
para reposição da verdade e recuperar os nossos valores históricos, exigindo
que, no âmbito dos estudos e planos “nortenhos” para a Abrunheira, se chamem as
coisas pelos nomes, como é o caso do Rio-das-Sesmarias.
— Oh
Artista-Sapateiro, essa de “teletransportar” não é no gozo comigo, não?
— Não! Estou
mesmo a falar a sério, Coutinho! Não tem nada a ver com a tua tentativa de
travessia do Oceano Atlântico até ao Brasil com o Sacadura que era Borrego.
E o
Rio-das-Sesmarias lá corre com toda a lisura, mas acabrunhado.
Só quer a
verdade!
Silvestre
Félix
4 de
Dezembro de 2014