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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O MALTÊS, AS VACINAS E A ESPERANÇA

A Esperança é a última a morrer

Algumas vezes perguntei, mas das respostas não me lembro. “Maltês”, naquela época, para quem não sabia sequer da existência de Malta, que hoje é país independente e da União Europeia, só seria o que ainda se lê no dicionário da “Porto Editora” como sinónimo de; vadio, ocioso ou, trabalhador agrícola que anda de terra em terra prestando os seus serviços.

No caso dos abrunheirenses de há cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, excluindo a primeira hipótese de “Malta-país”, teria de ser uma das outras, mas qual? Não sei, mas um, que conheci, era divertido quando tinha uns copitos a mais, lá isso era.

O Silvestre Velho, contratava muitos “malteses”. Eram-no, porque andavam com a “trouxa-às-costas” e não tinham poiso certo. Ainda assim, rigoroso no trabalho como era, não lhe servia qualquer um e gostava que lhe aparecessem os que já conhecia. Só por muita necessidade ficava com desconhecidos.

A grande massa de mão-de-obra naquela época, devido à sazonalidade da atividade agrícola, baseava-se neste género de trabalhadores. Ainda tenho uma vaga ideia de os ver no pátio da casa. Eram bastantes homens e também havia ou outra mulher. A ideia que ainda vagueia por estes circuitos de neurónios acima e abaixo, inclui o meu avô, no meio, dando-lhes indicações para onde deviam ir trabalhar.

Mas de quem quero falar é do Ti António Maltês, sendo que o segundo nome era mesmo alcunha. Nunca percebi porque tinha aquela alcunha. Ele era pedreiro e acho até, mestre do ofício. Ora, esta realidade profissional não se encaixa no deambular dum “maltês”. Será que noutros tempos o teria feito? Não sei!

O Ti António era uma pessoa discreta e, para a época, até reservada. Ou seja, não passava pelas tabernas todos os dias e muito menos por lá fazia serões de “copos”. Mas, de quando em vez, provavelmente com as sobras do almoço, metia um tintol a mais e, ao final do dia, passava pela taberna e, numa fase posterior, pelo café do Manel e também pelo Cabaço, transformando-se completamente.

De reservado, passava a extremamente extrovertido e divertido. Cantava, assobiava, cantava e até tocava “gaita-de-beiços”. Ainda mais brincava quando pelo Carnaval passava. O Ti António embarcava muitas vezes no “Enterro-do-Bacalhau” com o Rafael Coxo e companhia, mas assim que acabava o desfile, nunca mais ninguém o via. Uma ou outra vez, arrastava o irmão Vandelino, também muito engraçado com um copito a mais. Desta participação, contei   num escrito aqui, a propósito do Carnaval daquele ano de 2013 (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2013/02/ ). Para além de cantar, dançar e tocar a gaita, ele escrevia os versos com que animava o pessoal; era um poeta popular!

Tenho pena de não ter decorado algumas dessas quadras. Algumas eram dedicadas à sua mulher Catalina e, a maior parte, à sua filha, genro e neto que estavam em Moçambique, dobrando-lhe as saudades e a angústia pela falta.

Também neste ano de vinte e um a dobrar, e tão estranho que nem de Carnaval nos lembramos, a angústia tomou conta de nós. Invade-nos o medo e domina-nos o pensamento pela recuperação dos nossos doentes, quando a sinistra, ronda de “gadanha” em punho com o malvado propósito de os ceifar desta vida.

E os dias de folguedo vazio e oco, no meio da pandemia, estariam a chegar, que fazemos?

Esperamos pela extinção dum bicharoco que desafia o mundo e todos os poderes a ele associados. Esperamos que as vacinas, que de grande negócio se enchem, consigam fazer o trabalho para que nos “curvemos” à força do capital.

Ainda assim, que a curvatura seja verde, porque “a esperança, é a última a morrer”.

Silvestre Brandão Félix

10 de fevereiro de 2021

Foto: Esperança (Google-Project Draft)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARTA FEIRA DE CINZAS


Ainda os guinchos e uivos da pesarosa viúva não se ouviam e já no Largo do Chafariz, pronta para, em chamas, devorar o “bacalhau-morto”, estava a lenha trazida de propósito para o derradeiro momento do “enterro” – reduzir tudo a cinzas – enquanto o Ti Álvaro preparava o petisco bem regado a contento da chorosa viúva e acompanhantes.

Desde a “Sociedade”, onde o Rafael Coxo se encarregou de enchumaçar de palha as sacas transformadas em “bacalhau-morto”, mas muito bem aparelhado, devidamente encaixado no fundo da padiola virada caixão andante ou encavalitado aos ombros dos que lá para a noite haviam de ser comensais à conta do pecúlio angariado na, agora iniciada, interpelação coletiva dos vizinhos abrunhenses ou brasileiros, gostando ou não do Carnaval, lá iam, duma banda para outra, percorrendo as poucas ruas e travessas da Abrunheira daquela época. 

Eles iam desconhecidos ou conhecidos, conforme cara tapada ou não, e berravam dando uso aos chocalhos barulhentos. Cada porta que se abria, “bacalhau” que se mostrava com aquele trio das “Caldas” sempre em destaque. A viúva guinchava à moda do Rafael Coxo e não se calava enquanto o Jorge Farpela não recolhia os trocos da praxe e as goelas não eram lubrificadas. E duma porta passavam para outra e, no meio do chinfrim desalmado da viúva, lá destapava ela o trio bem aviado das “Caldas”, recolhendo, o Farpela, a parte financeira da questão. Sim, porque o Ti Álvaro lá punha a pinga mas; amigos, amigos, negócios à parte!

A noite avançava e o enterro continuava. Portas se abriam e outras nem por isso. Na Abrunheira também havia os; “Carnaval todos levam a mal” em vez dos; “É Carnaval e ninguém leva a mal”. Pelo Santo António passaram e, ainda antes o Ti J’aquim Cagachuva se preparava para desfiar uma das suas intermináveis aventuras de bailes, garotas, garinas, zaragatas com e sem pau, que se jogava e que partia muitas cabeças e costelas. A Margarida Cagachuva, que viúva do Entrudo havia de ficar bem, digo eu, pelava-se para desafiar o Rafael Coxo que na resposta lhe atirava o tão habitual “tá por’í tá!”, e abrandando a marcha e a gritaria da viúva e as chocalhadas e os acompanhantes. 

Que as fronhas, cuecas, ceroulas e lençóis ainda vão ao lavadouro e as vizinhas faladeiras, tagarelas e alcoviteiras esfregam e batem e ensaboam. Ao sol da manhã que à tarde pouco tem, estendem na erva à volta a corar e a secar. Que as ovelhas, cabras, vacas e burros ainda afogam a sede na água corrente. Que as bilhas de barro, cântaros, ferrados ou bilhas de alumínio ainda se atestam à sombra do nicho do Santo António casamenteiro. 

Dos edificantes do abrigo da imagem do Santo não reza a história no sítio nem fora dele. Com o visto da Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim de mandatário Mário Lage, e obra do Ti Zé da Virgínia que em boa hora trocou o tinto pelo branquinho do leite da “Estrela” cuidada pela minha Tia Silvéria e, mais tarde, pela “Bonita” ou “Marcina” da Ti Augusta, minha Mãe, e do Ti Manel da Virgínia mais vezes amparado pela Ti Maximina por causa do peso líquido do tintol bem bebido, do que sozinho na direção de casa, ajudado por muito povo com destaque na serventia do Albano Faneca. 

O Santo que veio da Colónia diligenciado pelo Vicente, pai da Cidália, iria dar sentido à nova devoção popular da Abrunheira. Tantas rodas e quermesses se fariam a pretexto do popular, e tantos beijos roubados seriam à sombra do Santo, que da fama não se livra ainda hoje, depois de tanto tempo contado em anos. Guardiãs, não retenho lembradura por obrigação mas da Ti Maria do Florindo e o acendimento da lamparina, seria voluntária ainda muitas Luas antes de terem descoberto as virtudes do “voluntariado” moderno.

Na praceta que ainda não era revolucionária, virtude, ou nem sempre, da sabedoria e inteligência do toponímico trabalho de homenagear coisas, homens ou mulheres importantes. Ali, bem no fundo, junto às cancelas do Ti Zé da Cruz e do Artur da Maria Ferreira e perto do Adelino Baleia que de acordeonista se ajeitava, lá se armava o velório. A viúva, agora já bem aquecida dos bagaços escorregados, ainda se esmerava mais; chorava e guinchava que nem uma desalmada. O Jorge Farpela e acompanhantes iam fazendo as incursões pelos quintais adentro e, mesmo que não quisessem sair para observar o aparelhamento do “bacalhau-morto” e consolar a viúva, pelo menos se descaíam com cinco coroas, cinco paus, com um copo de três ou um bagaço. 

Mas todos vinham e “enquanto o diabo esfregava o olho”, toda a gente estava em roda da padiola funerária que nem andor santificado, para acompanharem a viúva nos “tristes” momentos e para apreciarem o triunvirato, porque naquela época ainda não tinham inventado a troika, da aparelhagem do morto que a viúva havia de descobrir debaixo da manta que lhe cobria “as partes”. Risota e chacota mulheres de cara virada mas com o olho bem aberto. No mealheiro já começava a sentir-se o peso. Ala que se faz tarde, de arrecuas às vezes se faz bem.

Agora subindo a rua principal em direção ao Largo do Chafariz. Pelo meio, pouca confiança davam o Ti Espanhol porque o palavreado era trôpego e o Silvestre Velho porque já era velho e havia outros mais novos. O Rafael Coxo ficava afónico e até parecia enterro interrompido quando o cortejo passava à frente da casa do sogro. Sempre a subir e lá estavam no sítio onde tudo acontecia. O Dionísio Frouxo de barrete preto saloio, o João de Leião do trator que mais me parecia um prédio de dez andares, o Ti Simões da Ti Libânia que se dobrava sobre si acusando o peso do tempo contado em muitos anos de labuta, o João P’ixeiro com aquele bigodinho e andar tão característico, o Simplício, pai do meu amigo Rui ali ao cantinho, o Ti Miguel lá ao cimo com o cabelinho todo branco e as pernas arqueadas, o Francisco Frouxo também de barretinho saloio no pátio ao lado e antes do brincalhão e divertido João Tirapicos da Deolinda, em frente o Manel da Colónia sempre muito sério de carranca e que cortava as bolas todas aos putos, do outro lado da taberna da Menina Emília a casa do Guilherme barbeiro, o Ti Hilário com o inconfundível macaco de ganga azul marcado de massa ou cal do biscate e o cigarrito sempre na função e a Natália e os filhos. 

O meu Tio António e a minha Tia Espírito Santo do outro lado manobrando o coalho do leite mugido do rebanho de ovelhas pela madrugada e que eu, com a Gina e o Eduardo, experimentávamos os queijinhos muito fresquinhos acabados de encher os cinchos. Então e o Tavinho? Isso é que ele gostava! Era o delírio, ao contrário do pai, o Ti Veríssimo de sacho sempre na mão. Em frente da casa deles acontecia tudo. Eram as “Cegadas”, o Circo dos saltimbancos, as Marchas, a fogueira do enterro do bacalhau e até onde o gado de toda a gente ia beber água ao Chafariz e, claro, arrear a respetiva bosta.

O Chafariz, inventado e feito pelo artista Ti Veríssimo. Lá está assinalada a autarquia mas quem o esculpiu e montou foi ele. Também tinha a “ciência da pedra”, embora duma maneira diferente do Coutinho que era Bernardino. Este, arrancava a pedra das raízes e gastou a maior parte do seu tempo nos buracos das pedreiras intervalados com o emborcar de muitas ciganas e charretes nos balcões das tabernas da Menina Emília, do Álvaro ou do Ramos. O Ti Veríssimo tinha a ciência de esculpir a pedra, era artista escultor. Depois deste tempo todo contado em anos, tento descobrir a justificação para muitas das denominações toponímicas das ruas e travessas da Abrunheira sem encontrar justificação. Certo estaria que as homenagens tivessem sentido. À volta do Chafariz tudo acontecia que nem pista para levantamento de voo dos ganços do Ti Veríssimo. A Ti Estrudinhas bem que os tentava controlar mas não lhes chegava nem às penas do rabo quanto mais à altiva cabeça. O Tavinho orientava as malandrices do carneiro “Baltasar”. O sacana do carneiro até parece que entendia a faladura do Tavinho.

A chinfrineira da viúva, à medida que se aproximavam do Largo do Chafariz, ia perdendo gás. Muita aguardente por aquela goela já passou que só não provocou mais estragos porque o Rafael Coxo tem um fole roto. Não há bebida que o faça cambalear. Era difícil perceber quando estava com o “grão na asa”. Mas dos berros dados fica o estorvo. O que já lhe apetecia era "abancar" e empanturrar-se de bacalhau e grão cozidos. A justeza de lembrar o meu Tio Rafael, Pai do Fernando e do António que todos conhecíamos como “pezinhos”, está no facto de não haver acontecimento recreativo, desportivo ou cultural, onde não estivesse presente o Rafael Coxo com a sua venda de bebidas com e sem álcool, aperitivos e petiscos rápidos. No seu tempo ainda não havia secretário de estado do empreendedorismo, nem incentivos financeiros ou fiscais para se ser empreendedor, mas ele já o era, e dos bons. As voltas, as gritarias, as chinfrineiras, as bebedeiras, as cantorias do Vandelino, do Ti Tónho Maltês e a choradeira da viúva, deram sentido à tradição abrunhense.

O som espalhado pela crepitação da fogueira assinalava o fim do “bacalhau-morto” e o fim do Carnaval. Na taberna, as máquinas digestivas dos acompanhantes, faziam horas extraordinárias e a quarta-feira de cinzas ia acabar como todos quiseram; Bem comidos e bem bebidos.

Pela janela, o Ti Veríssimo, artista escultor do Chafariz, assistiu à ignição da pira, ao subir das labaredas e, por fim, ao apagamento até ficarem as luzinhas intermitentes das cinzas.

E as homenagens numa simples placa toponímica duma rua, avenida, largo ou mesmo travessa??Os que mandam nas juntas, nas uniões ou na câmara, não perpetuaram nem perpetuam em registo de memória, os abrunhenses que, duma forma ou doutra, se destacaram na vivência coletiva da nossa Terra.

Silvestre Félix

13 fevereiro de 2013

(Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base verdadeira, mas, são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não.)