Ainda os guinchos e uivos da pesarosa viúva não se ouviam e
já no Largo do Chafariz, pronta para, em chamas, devorar o “bacalhau-morto”,
estava a lenha trazida de propósito para o derradeiro momento do “enterro” – reduzir
tudo a cinzas – enquanto o Ti Álvaro preparava o petisco bem regado a contento
da chorosa viúva e acompanhantes.
Desde a “Sociedade”, onde o Rafael Coxo se encarregou de
enchumaçar de palha as sacas transformadas em “bacalhau-morto”, mas muito bem
aparelhado, devidamente encaixado no fundo da padiola virada caixão andante ou
encavalitado aos ombros dos que lá para a noite haviam de ser comensais à conta
do pecúlio angariado na, agora iniciada, interpelação coletiva dos vizinhos
abrunhenses ou brasileiros, gostando ou não do Carnaval, lá iam, duma banda
para outra, percorrendo as poucas ruas e travessas da Abrunheira daquela época.
Eles iam desconhecidos ou conhecidos, conforme cara tapada ou não, e berravam
dando uso aos chocalhos barulhentos. Cada porta que se abria, “bacalhau” que se
mostrava com aquele trio das “Caldas” sempre em destaque. A viúva guinchava à
moda do Rafael Coxo e não se calava enquanto o Jorge Farpela não recolhia os
trocos da praxe e as goelas não eram lubrificadas. E duma porta passavam para
outra e, no meio do chinfrim desalmado da viúva, lá destapava ela o trio bem
aviado das “Caldas”, recolhendo, o Farpela, a parte financeira da questão. Sim,
porque o Ti Álvaro lá punha a pinga mas; amigos, amigos, negócios à parte!
A noite avançava e o enterro continuava. Portas se abriam e
outras nem por isso. Na Abrunheira também havia os; “Carnaval todos levam a
mal” em vez dos; “É Carnaval e ninguém leva a mal”. Pelo Santo António passaram
e, ainda antes o Ti J’aquim Cagachuva se preparava para desfiar uma das suas intermináveis
aventuras de bailes, garotas, garinas, zaragatas com e sem pau, que se jogava e
que partia muitas cabeças e costelas. A Margarida Cagachuva, que viúva do
Entrudo havia de ficar bem, digo eu, pelava-se para desafiar o Rafael Coxo que
na resposta lhe atirava o tão habitual “tá por’í tá!”, e abrandando a marcha e
a gritaria da viúva e as chocalhadas e os acompanhantes.
Que as fronhas, cuecas,
ceroulas e lençóis ainda vão ao lavadouro e as vizinhas faladeiras, tagarelas e
alcoviteiras esfregam e batem e ensaboam. Ao sol da manhã que à tarde pouco
tem, estendem na erva à volta a corar e a secar. Que as ovelhas, cabras, vacas
e burros ainda afogam a sede na água corrente. Que as bilhas de barro, cântaros,
ferrados ou bilhas de alumínio ainda se atestam à sombra do nicho do Santo
António casamenteiro.
Dos edificantes do abrigo da imagem do Santo não reza a
história no sítio nem fora dele. Com o visto da Junta de Freguesia de São Pedro
de Penaferrim de mandatário Mário Lage, e obra do Ti Zé da Virgínia que em boa
hora trocou o tinto pelo branquinho do leite da “Estrela” cuidada pela minha
Tia Silvéria e, mais tarde, pela “Bonita” ou “Marcina” da Ti Augusta, minha Mãe, e
do Ti Manel da Virgínia mais vezes amparado pela Ti Maximina por causa do peso
líquido do tintol bem bebido, do que sozinho na direção de casa, ajudado por
muito povo com destaque na serventia do Albano Faneca.
O Santo que veio da
Colónia diligenciado pelo Vicente, pai da Cidália, iria dar sentido à nova
devoção popular da Abrunheira. Tantas rodas e quermesses se fariam a pretexto
do popular, e tantos beijos roubados seriam à sombra do Santo, que da fama não
se livra ainda hoje, depois de tanto tempo contado em anos. Guardiãs, não
retenho lembradura por obrigação mas da Ti Maria do Florindo e o acendimento da
lamparina, seria voluntária ainda muitas Luas antes de terem descoberto as
virtudes do “voluntariado” moderno.
Na praceta que ainda não era revolucionária, virtude, ou nem
sempre, da sabedoria e inteligência do toponímico trabalho de homenagear
coisas, homens ou mulheres importantes. Ali, bem no fundo, junto às cancelas do
Ti Zé da Cruz e do Artur da Maria Ferreira e perto do Adelino Baleia que de
acordeonista se ajeitava, lá se armava o velório. A viúva, agora já bem
aquecida dos bagaços escorregados, ainda se esmerava mais; chorava e guinchava
que nem uma desalmada. O Jorge Farpela e acompanhantes iam fazendo as incursões
pelos quintais adentro e, mesmo que não quisessem sair para observar o
aparelhamento do “bacalhau-morto” e consolar a viúva, pelo menos se descaíam
com cinco coroas, cinco paus, com um copo de três ou um bagaço.
Mas todos
vinham e “enquanto o diabo esfregava o olho”, toda a gente estava em roda da
padiola funerária que nem andor santificado, para acompanharem a viúva nos
“tristes” momentos e para apreciarem o triunvirato, porque naquela época ainda
não tinham inventado a troika, da aparelhagem do morto que a viúva havia de
descobrir debaixo da manta que lhe cobria “as partes”. Risota e chacota
mulheres de cara virada mas com o olho bem aberto. No mealheiro já começava a
sentir-se o peso. Ala que se faz tarde, de arrecuas às vezes se faz bem.
Agora subindo a rua principal em direção ao Largo do
Chafariz. Pelo meio, pouca confiança davam o Ti Espanhol porque o palavreado
era trôpego e o Silvestre Velho porque já era velho e havia outros mais novos.
O Rafael Coxo ficava afónico e até parecia enterro interrompido quando o
cortejo passava à frente da casa do sogro. Sempre a subir e lá estavam no sítio
onde tudo acontecia. O Dionísio Frouxo de barrete preto saloio, o João de Leião
do trator que mais me parecia um prédio de dez andares, o Ti Simões da Ti Libânia
que se dobrava sobre si acusando o peso do tempo contado em muitos anos de
labuta, o João P’ixeiro com aquele bigodinho e andar tão característico, o
Simplício, pai do meu amigo Rui ali ao cantinho, o Ti Miguel lá ao cimo com o
cabelinho todo branco e as pernas arqueadas, o Francisco Frouxo também de
barretinho saloio no pátio ao lado e antes do brincalhão e divertido João
Tirapicos da Deolinda, em frente o Manel da Colónia sempre muito sério de
carranca e que cortava as bolas todas aos putos, do outro lado da taberna da
Menina Emília a casa do Guilherme barbeiro, o Ti Hilário com o inconfundível
macaco de ganga azul marcado de massa ou cal do biscate e o cigarrito sempre na
função e a Natália e os filhos.
O meu Tio António e a minha Tia Espírito Santo
do outro lado manobrando o coalho do leite mugido do rebanho de ovelhas pela
madrugada e que eu, com a Gina e o Eduardo, experimentávamos os queijinhos muito
fresquinhos acabados de encher os cinchos. Então e o Tavinho? Isso é que ele
gostava! Era o delírio, ao contrário do pai, o Ti Veríssimo de sacho sempre na
mão. Em frente da casa deles acontecia tudo. Eram as “Cegadas”, o Circo dos
saltimbancos, as Marchas, a fogueira do enterro do bacalhau e até onde o gado
de toda a gente ia beber água ao Chafariz e, claro, arrear a respetiva bosta.
O Chafariz, inventado e feito pelo artista Ti Veríssimo. Lá
está assinalada a autarquia mas quem o esculpiu e montou foi ele. Também tinha
a “ciência da pedra”, embora duma maneira diferente do Coutinho que era
Bernardino. Este, arrancava a pedra das raízes e gastou a maior parte do seu
tempo nos buracos das pedreiras intervalados com o emborcar de muitas ciganas e
charretes nos balcões das tabernas da Menina Emília, do Álvaro ou do Ramos. O
Ti Veríssimo tinha a ciência de esculpir a pedra, era artista escultor. Depois
deste tempo todo contado em anos, tento descobrir a justificação para muitas
das denominações toponímicas das ruas e travessas da Abrunheira sem encontrar
justificação. Certo estaria que as homenagens tivessem sentido. À volta do
Chafariz tudo acontecia que nem pista para levantamento de voo dos ganços do Ti
Veríssimo. A Ti Estrudinhas bem que os tentava controlar mas não lhes chegava
nem às penas do rabo quanto mais à altiva cabeça. O Tavinho orientava as malandrices
do carneiro “Baltasar”. O sacana do carneiro até parece que entendia a faladura
do Tavinho.
A chinfrineira da viúva, à medida que se aproximavam do Largo
do Chafariz, ia perdendo gás. Muita aguardente por aquela goela já passou que
só não provocou mais estragos porque o Rafael Coxo tem um fole roto. Não há
bebida que o faça cambalear. Era difícil perceber quando estava com o “grão na
asa”. Mas dos berros dados fica o estorvo. O que já lhe apetecia era "abancar" e
empanturrar-se de bacalhau e grão cozidos. A justeza de lembrar o meu Tio
Rafael, Pai do Fernando e do António que todos conhecíamos como “pezinhos”,
está no facto de não haver acontecimento recreativo, desportivo ou cultural,
onde não estivesse presente o Rafael Coxo com a sua venda de bebidas com e sem
álcool, aperitivos e petiscos rápidos. No seu tempo ainda não havia secretário
de estado do empreendedorismo, nem incentivos financeiros ou fiscais para se
ser empreendedor, mas ele já o era, e dos bons. As voltas, as gritarias, as
chinfrineiras, as bebedeiras, as cantorias do Vandelino, do Ti Tónho Maltês e a choradeira da viúva, deram sentido à tradição abrunhense.
O som espalhado pela crepitação da fogueira assinalava o fim
do “bacalhau-morto” e o fim do Carnaval. Na taberna, as máquinas digestivas dos
acompanhantes, faziam horas extraordinárias e a quarta-feira de cinzas ia acabar
como todos quiseram; Bem comidos e bem bebidos.
Pela janela, o Ti
Veríssimo, artista escultor do Chafariz, assistiu à ignição da pira, ao subir
das labaredas e, por fim, ao apagamento até ficarem as luzinhas intermitentes
das cinzas.
E as homenagens numa simples placa toponímica duma rua, avenida, largo ou mesmo travessa??Os que mandam nas juntas, nas uniões ou na câmara, não perpetuaram nem perpetuam em registo de memória, os abrunhenses que, duma forma ou doutra, se destacaram na vivência coletiva da nossa Terra.
Silvestre Félix
13 fevereiro de 2013
(Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base verdadeira, mas, são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não.)