Pelo Largo do Chafariz, menina Emília, Cipriano, atravessando o
das Sesmarias e ao lado da pedreira do Ti
Miguel, lá agarrávamos os “caminhos por aí acima” até ao Mercado passando antes pelo Fetal no caloroso abraço de saudades de
primas rodeadas das flores descidas da Tapada
do Roma onde, por aí acima, ainda na mesma manhã chegaríamos. A olhadela
pelo Mercado era rápida que de
compradora a minha Mãe raramente estava. Gostava de ver o gado, dos viveiros, o
cebolo, couve – galega e portuguesa. O destino era mesmo a Serra e, descendo até à Vila e
voltando a subir, lá vinha o cheirinho do café da Ti Franquelina. A Serra dos
Brandões marcou a minha geração e sugere ainda hoje, viajar sem descanso
pelos tempos.
Antes dos “caminhos por aí acima”,
fiquemos do lado de cá da Serra e
olhemos para os “caminhos por aí abaixo”.
Às vezes lembro-me do Cipriano. Era mais ou menos pedreiro
ou mestre de obras e também trabalhava a pedra e negociava cal que cozia no forno.
Lá, no tempo de trás, o Cipriano ainda sente o braseiro das
pedras recebendo o fogo da lenha atirada para o forno. As pedras irão
caldear para ajudar a subir as paredes das moradias e até do caminho que levará
a placa “Rua do Forno”. Era do Cipriano, o forno e, vendo agora para
o futuro, embasbacado ficará, como se já não chegasse a rua, dar de caras com
um “Jardim
do Forno”.
– Jardim? E do forno? Será o
meu ou o outro ao pé da “rigueira” do sogro do João de Leião?
(eu sei que “rigueira”, mesmo sem acordo ortográfico é “regueira” mas, se sempre disse e sempre ouvi dizer “ri”, porque hei de escrever “re”? Para mim é “Rigueira”, pronto!)
– A quarenta e tal anos em
tempo contado para o futuro, não vou conseguir descobrir, de certeza. Bom, vou
dar como certo que se referem ao meu “Forno”.
Assim, como assim, eles só têm lá escrito “Jardim
do Forno”! Não têm “Jardim do Forno do Cipriano”
ou “Jardim do João de Leião”. Mesmo assim, tive que virar o desenho ao
contrário porque a placa do jardim está do lado do “Corronquinho”.
Saltando para o outro lado da Abrunheira e antes dos “caminhos
por aí acima”, na pedreira do Ti
Miguel, labuta o Homem que tinha
a “Ciência
da Pedra”. Tanto nas pedreiras como no forno do Cipriano ou, de outros,
que lhe pagassem o suficiente de comida e, principalmente, bebida. Já algumas
vezes tinha prometido à Mãe, Ti Mariana Soleta, que “queria acabar com o vinho mas, que não
conseguia porque era sozinho a trabalhar para isso”. A rotina habitual do Coutinho que era Bernardino incluía uma
conversa com o Rio das Sesmarias
quando por lá passava e, se o das
Sesmarias não o retivesse muito tempo ou não o desafiasse para meter uma “charreta” na menina Emília, enfiava-se na pedreira e demorava tempo até de lá
sair.
– Oh Coutinho que és
Bernardino, ouvi dizer que ontem à noitinha na taberna do Osvaldo quiseste
levantar um barril de 50 litros de tinto só com os dentes, é verdade? (perguntou
o martelo de corte)
– E então?
Pensas que não sou capaz? Ontem é que já tinha muitas “charretes” bebidas e a
coisa não correu lá muito bem mas, um destes dias, levo-te comigo e vais ver se
levanto ou não! (respondeu o Coutinho que era Bernardino)
O homem que tinha a “Ciência da Pedra” não era de muita
conversa e, como toda a gente, também olhava, pensava e sonhava no tempo lá
para a frente. E, mesmo nas profundezas da pedreira do Ti Miguel, tinha dificuldade em ver que o Largo do Chafariz já não
era o sítio onde todos os abrunhenses iam.
– Mas como é que pode ser?
A antiga casa do Caracol Velho onde, daqui a uns anos
contados em tempo e depois da Ti Mariana
Solena e do Ti Vitro se finarem,
iria morar e dormir na mesma cama com a Judite
Caracola, já lá não está!
– Homessa? Olha, olha…um prédio
dos grandes? Então e as galinhas e os coelhos? E o caminho do caracol agora tem
alcatrão, não tem silvas e estão a soprar-me ao ouvido que é uma rua e se chama
Humberto Delgado. É o tal que vai dizer aos jornais que «não tem medo» e, ao “botas”,
que «se ganhar, o demite».
O escopro, ouvindo a
faladura sozinha do Coutinho que era
Bernardino, estava danadinho para entrar naquele exercício do futuro e,
antes que se iniciasse outro monólogo, desferiu, com a mesma subtileza com que
torneava a cantaria:
– Deixa lá o “botas” e o que
“não tem medo” e ouve o que eu consigo ver com a lâmina voltada para cima,
muito mais para a frente em tempo contado em anos: A rua principal desde o
Osvaldo até ao caminho do Caracol, passando pelo Largo do Chafariz, com o nome de avenida do “Movimento das Forças
Armadas”. Pelo reflexo, consigo ver que foram milhares, “os que não tiveram
medo”.
O Coutinho que era Bernardino, entretanto calado, fechou os olhos e,
com “futuro” à sua frente, só queria
saber mais e mais. Com esforço de concentração, lá começaram a correr mais
imagens da nossa Terra:
O tempo saltou, pulou e deixou-se
ficar uns instantes naqueles anos redondos e de classe operária feita. Com
muita pintura e cartazes nas paredes já nem o Largo do Chafariz se
livrava. Abrunhenses mobilizados pelos partidos e movimentos cívicos, já muitos
havia e nas listas à Junta de Freguesia de São Pedro, eram incluídos. Ah, mas
lutavam pela eleição e transpiravam a camisola pelo que acreditavam. Nesses
tempos, que, vistos do futuro para o passado até parecem meio estranhos,
porque, toda a pirâmide democrática a nível local era graciosa para quem a
praticava. Muitos cadernos eleitorais se descarregavam e muitos votos se
contavam com “mata – bicho”, almoço e
lanche dos votantes. Voluntários sempre sobravam e a alegria não tinha nada a
ver com vitória ou derrota eleitoral.
O caminho do tempo não para.
Continua sempre “por aí acima”. Até o Alto
da Bonita é “por aí acima” e, quando à frente do Coutinho que era Bernardino passou Ranholas com a padaria do Ti
Américo e o Pocinhas, a barbearia do Ti
Guilherme e, uns contados em anos mais adiante, mesmo na curva em frente à Quinta do Ramalhete, no Lanterna Vermelha, o fio da história
passou a ser mais concreto e pormenorizado:
Imperador era o bacalhau, bom de
gosto e farto em quantidade. Simpático e amigo era o Conde com
responsabilidade republicana e o dia, melhora fora o de 1º de Dezembro, mas não, logo tinha de ser o 5 de Outubro que, no salto dos setenta para os oitenta do século
XX, não nos passava pela cabeça que lá mais para a frente no tempo contado em
trinta e tal anos, acontecesse roubo à cidadania republicana com a supressão do
feriado popular e nacional. Era vida complicada mas de muita esperança e o Conde que de
Saborosa tinha o nome e com a guitarra portuguesa seguia na fadistagem
a voz única da esposa Maria Teresa de
Noronha. No Lanterna Vermelha, eu,
o Peniche e o Conde – Presidente de Penaferrim. Naquele dia de comemorar a implantação
da República, degustamos e
trabalhamos sem senha de presença ou aposentação garantida.
Não sei se alguma vez o Conde que de
Saborosa tinha o nome, provou o néctar único que na Abrunheira se fazia e consumia bem perto
do Cipriano.
O Coutinho que era Bernardino bem lhe
tinha o gosto e o proveito porque, na altura certa do ano, na ida, passando
pelo Largo
do Chafariz, Menina Emília,
Abílio e, antes do Cipriano,
engatilhava para o Pena na onda do São Martinho e até ao Natal. Era a melhor água-pé da Abrunheira e arredores. Não era para
putos mas, rapaz que se prezasse, tinha de saber que o Pena era o maior (em altura)
em água-pé!
Petisco se organizava e de lá só saiam a cambalear ou mesmo de gatas. O Coutinho que era Bernardino não! O
bandulho era a preceito e não havia bebida que o deitasse abaixo. Quando pesado
já estava, metia a espinhela a três quartos e lá comandava os andantes a
direito até ao fundo do alcatrão.
Pelo Largo do Chafariz e por “alguns desses tempos”, vivíamos o azedo
do medo e ansiedade que apertava os nossos peitos.
Pior nunca podia, e melhor sempre seria!
Muitos anos em tempo contado lá
para frente, esta máxima mudou! O Largo do Chafariz continua no sítio,
a Abrunheira já tem um Jardim
do Forno que era o do Cipriano e que se chama só – Forno,
mas os abrunhenses e todos os portugueses estão a ficar mais pobres, passam muito
mal e estão tristes.
Melhor nunca será, pior sempre estará!
Silvestre Félix
25.10.2012
Editado em 26 outubro de 2017 com a colocação da gravura de um forno de cal
25.10.2012
Editado em 26 outubro de 2017 com a colocação da gravura de um forno de cal