terça-feira, 22 de julho de 2014

CALCORREANDO

Muito calcorreávamos as ruas da nossa Terra porque de máquinas andantes ainda nem o inferno estava cheio, quanto mais o céu. Mesmo as bicicletas só chegavam a bolsos mais aconchegados. O alcatrão ainda era pouco porque as ruas, a principal e as outras, «nos dedos duma mão, bem cabiam»! O caminho era negro desde a entrada, à padaria, em direção ao Chafariz e um pouco mais “ralo” (via-se mais pedras que alcatrão) no largo até à menina Emília, pelo Sigamó até ao Olival. Daí para cima até à estrada na curva, era calçada à portuguesa um bocado mal- amanhada. Para baixo do Chafariz, pela principal, o alcatrão era melhor até acabar a seguir à curva do Ti Faneca. Até onde vai a lembradura desta descrição, o “Curronquinho” ainda não tinha alcatrão e muito menos vivendas. Era o caminho mais apetitoso para calcorrear. Tinha sempre uma erva muito rentinha, parecia relva plantada. Da curva até ao nosso castelo em ruinas era sempre relvinha fofa. Esta fortaleza, onde espadeirávamos horas a fio, estava um bocadinho a seguir, onde muito tempo depois, com a construção do bairro, havia de ser plantado o “nosso” café – primeiro do Ramos e depois do Cabaço.

Também de relvinha fofa calcorreava, com o Zé Fernando, Zé Augusto, Rui, Fernando Pedroso, Filomeno e, se calhar, com mais outros que a minha memória negligenciou no ficheiro do tempo, aquela que era azinhaga desde a esquina da casa da fruta do “Pechincha”, junto ao Rio das Sesmarias, até ao passadouro para o lado da pedreira do Ti Miguel. Onde agora, na segunda década deste desgraçado século XXI, existe uma ponte, O das Sesmarias autorizava que o atravessássemos colocando os andantes nas pedras altas que, uma-a-uma, nos levada à outra margem. Muitas vezes, pela relvinha, calcorreávamos com os nossos “carrinhos-de-arame”, para desembocar, não no Rio, mas subindo à direita até à oficina (dos carrinhos-de-arame) do Zé Fernando. Aí, reparávamos todas as avarias endireitando as rodas e reforçando as ligações ao eixo de direção que era uma cana bem comprida que levava o volante até à altura do condutor. Também na oficina preparávamos os atrelados que, quase sempre, derivavam de “dignas” e, antes, nutritivas latas de conservas nacionais. Naquela época, já de arreliados dias bélicos pelas colónias e onde, irmãos ou primos mais velhos, por obrigação, guerreavam a mando do salazarento regime, as conservas eram sempre nacionais. Não carecia de verificarmos a origem do atum, da sardinha ou das enchovas. Não corríamos o risco de utilizarmos atrelados que tivessem vindo dos “nuestros hermanos”, como agora, neste desgraçado século XXI que já vai na segunda década e onde, cada vez mais, sinto inglórias as grandes batalhas nos céus da Europa em guerra, protagonizadas (do lado dos que aprendi a serem os bons nos muitos “quadradinhos” que devorei) pelo Major Alvega. 

Muito andávamos a pé e, alguns de nós, “dos putos”, literalmente. Nem todos tinham o “privilégio” de poder usar, nos pés; botas, sapatos ou, simplesmente, chinelos. Calçados ou descalços lá calcorreávamos os caminhos da Abrunheira, juntos ou sozinhos, com a maior das naturalidades. Os calçados, para trabalho dos sapateiros que, cá na Terra, eram verdadeiros artistas. Não contando com outros também famosos que já não eram, que deles se dizia e eu ouvia «tivessem a alma em descanso» como o “Sapateiro de Manique” porque era de Manique, claro está! Muitos contos (de histórias, não de dinheiro) me narraram deste sapateiro que por companhia tinha o “Cabeço de Manique” e que, para além de amanhar botas e outro calçado, também tinha rebanho de ovelhas que lhe completava o rendimento no leite, lã e na feitura de eiras para debulha de cereais durante o verão. Por isso mesmo, o Silvestre Velho não prescindia da sua vinda. “Velho” no meu avô não era nome, era da idade e dos cabelos e bigode brancos. Os filhos homens que com ele andavam na lida do campo e os que por outras bandas se governavam, eram conhecidos pelo nome próprio mais o do pai que, assim, funcionava como alcunha, sendo que, quando se referiam ao verdadeiro Silvestre, acrescentavam o “Velho” para não se confundir com os filhos.

Ainda na onda dos sapateiros, outros havia que a alcunha não tinha nada a ver com o nome do pai ou avô, como o Ti J’aquim (Cagachuva), mas decerto com outras circunstâncias nada simpáticas para o simples olfato de qualquer abrunhense. Bom artista de calçado e muito bom contador de histórias. Sempre as ouvia com gosto mesmo sendo uma segunda, terceira ou décima vez contada. É assim como aqueles filmes que vemos vezes sem conta, e sempre gostamos como se, de primeira, sempre seja. Outro artista sapateiro havia, que se foi deste mundo há bem pouco tempo já neste desgraçado século vinte e um. O Zé Celorico, como a minha Mãe lhe chamava porque veio de Celorico da Beira. Com o Ti Zé partilhei labuta – a minha primeira na condição de assalariado. Na Atil, que já não é, eu e muitos rapazes da minha idade, na dita, com catorze de tempo contado em anos – um puto, aprendíamos a disciplina e as agruras do operariado. Não é do meu “ser”, nem teria razões para me queixar. Era bem tratado e por lá, na secção de pintura, o Ti Zé Celorico pintava tudo o que de embelezamento precisava.

A adesão à classe trabalhadora naquela altura foi por vontade própria, porque, acreditava, a alternativa estudantina, para mim, era bem mais dura. A Ti Augusta fez tudo o que lhe estava ao alcance para me convencer do contrário, mesmo sofrendo todos os dias com o meu começo de jornada desde a Abrunheira até ao Cacém…

“Escuro, mas muito escuro e a chuva caía às dez para as seis da manhã como já caía às dez da noite de ontem.
— Não filho, assim não! Descalça lá os botins primeiro! Isso! Põe o pé aqui no banco. A Mãe vai enrolar o jornal nas tuas pernas para não ficares com frio. Já podes calçar este botim. Agora a outra perna, põe aqui o pé! Isso! Assim ficas mais quentinho!
— Oh Mãe! Deixo ficar assim, todo o dia?
— Sim! Não tires antes de chegares a casa!
— Com a saca bem presa à cintura, não molhas as pernas! Segura bem o chapéu-de- chuva junto à cabeça. Quando vires a camioneta a chegar, desatas o cordel e deitas a saca fora!
— Tá bem Mãe, até logo!  
— Tem cuidado, vai sempre p’la beirinha e olha bem quando atravessares para os “plásticos”. Dá cá um beijinho!

A chuva caía sempre! Gostava mais de ir pelos eucaliptos até à Charneca, embora mais longe e descampado, porque pela quinta “Lavi” até aos “plásticos” era muito escuro e no pinhal parecia que estava sempre lá alguém escondido…tinha medo! Os botins pesavam e chapinhavam na água acumulada. A camioneta do “Eduardo Jorge”, muito amarelinha, passava às seis e vinte da manhã. Quando entrava às oito no Cacém, não tinha outra hipótese. E os botins frios e pesados. E a professora de Matemática… que raio de lembrança. Corredores, escola velha, escola nova, oficinas, recreio e sandes de mortadela no Ti Rodrigues com sobremesa de cigarrito a dois, cinco tostões. O fulano da “Mocidade Portuguesa”, o “chefe de castelo” ou lá o que era, não nos largava. Insistia comigo e com outros para não faltarmos no sábado. Desde que o tipo me obrigou a marchar sozinho, nunca mais lá pus os pés. Andavam sempre a dizer que contava para a “nota” mas era mentira.”

Calcorreando uma vida inteira por esses caminhos. Chegados ao largo, que pode ter “Chafariz” ou não, que deveria ter todas as saídas embelezadas e de piso direitinho sem pretextos para tropeções, deparamo-nos com um muro fechado a toda a volta e, na maior parte das vezes, a azinhaga donde viemos também se fecha atrás. 

É urgente encontrar uma brecha no muro para continuarmos o “calcorreamento”. Tem de haver uma falha!

— O que achas oh Bernardino que não és Coutinho? Consegues guiar-me para esburacar a parede? (pergunta de picareta – ferramenta da caixa do Coutinho que era Bernardino)
— Acho que sim! (diz o Coutinho que era Bernardino). Com a minha força delegada em competência, pelo povo da nossa “Terra”, e com toda a “ciência da pedra”, arte minha aperfeiçoada em muito tempo de anos contado, e com a tua rijeza de bom ferro fundido em forja bem quentinha, vou conseguir enfiar-te pelo muro dentro e encontrar uma saída, mesmo que seja muito estreita!

Silvestre Félix

(Factos e outros não, ficcionados na minha onda incluindo alguns nomes reais e outros inventados.)


22 de Julho de 2014  

sábado, 18 de janeiro de 2014

IGREJA DA ABRUNHEIRA

Depois de tantas décadas de esperança, tornada, muitas vezes, conformismo e descrença para uma população despida de qualidade de vida e sempre ouvindo, ao correr dos ciclos políticos, promessas que nunca serão alcançadas, a verdade e a realidade não é facilmente digerível.

No caso da Igreja da Abrunheira, como se pode constatar, a verdade venceu e a construção já vai em bom ritmo.

Pelo que se sabe, esta primeira fase inclui, entre outras valências, a “capela” mortuária que tanta falta faz à população da Abrunheira em geral.

Para que a Igreja de Santo António possa ser concluída é preciso muito dinheiro e a campanha de angariação de fundos, continua. Fez saber, a Comissão Pró-construção da Igreja da Abrunheira, que este domingo, dia 19 pelas 13h, vai haver mais um almoço no pavilhão da URCA com o fim de juntar mais uns trocos e nas mesmas condições dos anteriores.

A este propósito escrevi, lá pelos idos de 2007, o seguinte:

… Sesmarias – O Rio, de sua natureza intemporal, todas as vezes que o leito corria cheio, não se cansava de gritar “aos sete ventos” – para o caso tanto faz que sejam sete, oito ou uma dúzia, que muita gente a Abrunheira tinha – “por quem os sinos haviam de dobrar”! Note-se e escreva-se que o narrador nunca lhe disse que a história titulada “Por quem os sinos dobram”, dito muito parecido com o repetido pelo Sesmarias – O Rio, após cada bátega de chuva, havia sido inventada, publicada em livro e mostrada em cinema por um americano chamado Ernesto – O Hemingway, há largo tempo contado em anos. Os invernos e verões foram correndo até que, numa manhã solarenga de março, Coutinho – O Bernardino de bornal carregado, preparando-se para fazer a travessia para o lado da pedreira do Ti Miguel, mais uma vez, ouviu Sesmarias – O Rio, gemer de tanto prometer que “os sinos haviam de dobrar” na Abrunheira.
Promessas são promessas e, naquela época, a honra comia-se a todas as refeições e até na cama do promitente dormia, sendo que, duma vez por todas, Coutinho – O Bernardino enchendo-se de coragem, perguntou ao Rio:
 – Ouve lá oh Sesmarias. Mas então, como é que “os sinos hão de dobrar”, se nem campanário e muito menos Igreja, cá existe?
 – Pois então oh Coutinho – O Bernardino, nem parece teu, tanta interrogação. Não foste tu e o Sacadura – O Francisco Borrego que juntaram duas dúzias de tábuas e trancos de abrunheiros com chapas de bidons ao meio cortados e se atiraram abaixo do zambujeiro mais alto que na Abrunheira havia? E foi porquê? Porque acreditaram muito, ser possível voar assim, até ao Brasil.
 – Eu, Rio – O Sesmarias, nunca te enganei oh Coutinho que és Bernardino e que tens a “ciência da pedra” – é preciso acreditar muito para que, um dia, na Abrunheira, “os sinos dobrem” num altaneiro campanário de santa igreja construída. …

(parte de texto “Ciência da Pedra” da minha autoria, escrito em 2007)

Neste caso, da Igreja de Santo António na Abrunheira, foi essencial acreditar-se muito e resultou mas, infelizmente, mesmo que Sesmarias – O Rio, o garanta, nem sempre assim acontece.


 Silvestre Félix

domingo, 8 de dezembro de 2013

HINO À VIDA!


 – Oh filho, quando fores por esses caminhos acima tens de olhar bem lá para a frente e, ao mesmo tempo, deves ter sempre muito cuidado com quem pode vir atrás…
Primeiro atravessava o das Sesmarias e depois, lá mais acima, a regueira da mulata. As vaquitas e, na maior parte das vezes a Carocha que de burra tinha pouco, tinham a dianteira que bem sabiam o destino largo dos Celões. Entravam sem engano na ponta de baixo à esquerda e nunca tiveram a ousadia de seguir em frente em direção ao Linhó.
Por esses caminhos acima… os degraus da vida, de que a Minha Mãe sempre me falava. As Mães da Abrunheira eram iguais às outras. Todas eram as melhores para cada um dos putos abrunhenses e eu não era exceção – Não havia Mãe melhor, que a Minha! Estava sempre disponível para me ensinar mais um degrau e, muitas das vezes, com exemplos da sua vida cheia e rica de labuta pela família e futuro dos filhos. Tanto tempo contado em anos passados, não são poucas as vezes que uso e pratico os seus ensinamentos.
No tempo que passo em horas, dias e anos, teclando escritos fluidos da parte arrumada da memória, e sendo Abrunheira a temática, é certo e sabido que nas subidas e descidas das mais variadas personagens pelo palco, nas falas e deixas que compõem o nosso teatro, lá está sempre com o seu papel bem estudado, a Minha Mãe! Algumas das perguntas e respostas, frases soltas e coladas dos nossos diálogos, aparecem, de quando em vez, nas minhas “postagens” ou, simplesmente, em rascunhos que por aqui vão ficando.
 – Oh Mãe, os Índios são todos maus e os cowboys são os bons?
 – Não filho! Há bons e maus nos dois lados!
 – Oh Mãe, mas nos “quadradinhos”, escrevem que os Índios é que são os maus…
 – Eu sei filho, mas os que escrevem também podem estar enganados…
 – Mas naquele filme que eu vi na “sociedade” à noite com a Felicidade e o Alfredo, eles também diziam que os bons eram os tropas e os maus, os Índios…
 – Está bem filho, mas quem faz os filmes também se pode enganar. Quando fores maior vais perceber melhor…
 – Oh Mãe, quando eu for grande também vou para a tropa?
 – Vais, todos os homens vão à tropa!
 – Mas oh Mãe, eu não gosto da tropa nem da guerra… quando for para a tropa também tenho que ir para a guerra?
 – Não filho! Ainda faltam muitos anos para ires para a tropa e, quando fores, a guerra já acabou!
 – Oh Mãe, na Guerra das Áfricas os “Magalas” também morrem como naqueles livros aos “quadradinhos” da Guerra dos alemães e do Major Alvega?
 – Oh Filho, tens de ter muito cuidado para ninguém ouvir esta conversa. Vê lá se está aí alguém desse lado.
 – Não Mãe, aqui não está ninguém!
 – A Mãe também não gosta da tropa nem da guerra, mas não digas isto a ninguém porque os que dizem que são bons, podem vir fazer mal à gente…
A "Ti Augusta" desfazia-se em lágrimas, cada vez que tinha, por qualquer razão, de desfazer-se de alguma das suas bichinhas – ajudava-as a nascer, criava-as, aliviava-as da pressão do primeiro úbere cheio festejando a transformação em leite, acompanhava o primeiro cio com o cuidado que a situação requeria e, para fecho de ciclo, tratava-as e preparava-as para a função de mães, recomeçando tudo outra vez.
A Minha Mãe era um hino à vida. Hoje, a melhor Mãe do mundo, não me sai do pensamento…
Silvestre Félix

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARTA FEIRA DE CINZAS


Ainda os guinchos e uivos da pesarosa viúva não se ouviam e já no Largo do Chafariz, pronta para, em chamas, devorar o “bacalhau-morto”, estava a lenha trazida de propósito para o derradeiro momento do “enterro” – reduzir tudo a cinzas – enquanto o Ti Álvaro preparava o petisco bem regado a contento da chorosa viúva e acompanhantes.

Desde a “Sociedade”, onde o Rafael Coxo se encarregou de enchumaçar de palha as sacas transformadas em “bacalhau-morto”, mas muito bem aparelhado, devidamente encaixado no fundo da padiola virada caixão andante ou encavalitado aos ombros dos que lá para a noite haviam de ser comensais à conta do pecúlio angariado na, agora iniciada, interpelação coletiva dos vizinhos abrunhenses ou brasileiros, gostando ou não do Carnaval, lá iam, duma banda para outra, percorrendo as poucas ruas e travessas da Abrunheira daquela época. 

Eles iam desconhecidos ou conhecidos, conforme cara tapada ou não, e berravam dando uso aos chocalhos barulhentos. Cada porta que se abria, “bacalhau” que se mostrava com aquele trio das “Caldas” sempre em destaque. A viúva guinchava à moda do Rafael Coxo e não se calava enquanto o Jorge Farpela não recolhia os trocos da praxe e as goelas não eram lubrificadas. E duma porta passavam para outra e, no meio do chinfrim desalmado da viúva, lá destapava ela o trio bem aviado das “Caldas”, recolhendo, o Farpela, a parte financeira da questão. Sim, porque o Ti Álvaro lá punha a pinga mas; amigos, amigos, negócios à parte!

A noite avançava e o enterro continuava. Portas se abriam e outras nem por isso. Na Abrunheira também havia os; “Carnaval todos levam a mal” em vez dos; “É Carnaval e ninguém leva a mal”. Pelo Santo António passaram e, ainda antes o Ti J’aquim Cagachuva se preparava para desfiar uma das suas intermináveis aventuras de bailes, garotas, garinas, zaragatas com e sem pau, que se jogava e que partia muitas cabeças e costelas. A Margarida Cagachuva, que viúva do Entrudo havia de ficar bem, digo eu, pelava-se para desafiar o Rafael Coxo que na resposta lhe atirava o tão habitual “tá por’í tá!”, e abrandando a marcha e a gritaria da viúva e as chocalhadas e os acompanhantes. 

Que as fronhas, cuecas, ceroulas e lençóis ainda vão ao lavadouro e as vizinhas faladeiras, tagarelas e alcoviteiras esfregam e batem e ensaboam. Ao sol da manhã que à tarde pouco tem, estendem na erva à volta a corar e a secar. Que as ovelhas, cabras, vacas e burros ainda afogam a sede na água corrente. Que as bilhas de barro, cântaros, ferrados ou bilhas de alumínio ainda se atestam à sombra do nicho do Santo António casamenteiro. 

Dos edificantes do abrigo da imagem do Santo não reza a história no sítio nem fora dele. Com o visto da Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim de mandatário Mário Lage, e obra do Ti Zé da Virgínia que em boa hora trocou o tinto pelo branquinho do leite da “Estrela” cuidada pela minha Tia Silvéria e, mais tarde, pela “Bonita” ou “Marcina” da Ti Augusta, minha Mãe, e do Ti Manel da Virgínia mais vezes amparado pela Ti Maximina por causa do peso líquido do tintol bem bebido, do que sozinho na direção de casa, ajudado por muito povo com destaque na serventia do Albano Faneca. 

O Santo que veio da Colónia diligenciado pelo Vicente, pai da Cidália, iria dar sentido à nova devoção popular da Abrunheira. Tantas rodas e quermesses se fariam a pretexto do popular, e tantos beijos roubados seriam à sombra do Santo, que da fama não se livra ainda hoje, depois de tanto tempo contado em anos. Guardiãs, não retenho lembradura por obrigação mas da Ti Maria do Florindo e o acendimento da lamparina, seria voluntária ainda muitas Luas antes de terem descoberto as virtudes do “voluntariado” moderno.

Na praceta que ainda não era revolucionária, virtude, ou nem sempre, da sabedoria e inteligência do toponímico trabalho de homenagear coisas, homens ou mulheres importantes. Ali, bem no fundo, junto às cancelas do Ti Zé da Cruz e do Artur da Maria Ferreira e perto do Adelino Baleia que de acordeonista se ajeitava, lá se armava o velório. A viúva, agora já bem aquecida dos bagaços escorregados, ainda se esmerava mais; chorava e guinchava que nem uma desalmada. O Jorge Farpela e acompanhantes iam fazendo as incursões pelos quintais adentro e, mesmo que não quisessem sair para observar o aparelhamento do “bacalhau-morto” e consolar a viúva, pelo menos se descaíam com cinco coroas, cinco paus, com um copo de três ou um bagaço. 

Mas todos vinham e “enquanto o diabo esfregava o olho”, toda a gente estava em roda da padiola funerária que nem andor santificado, para acompanharem a viúva nos “tristes” momentos e para apreciarem o triunvirato, porque naquela época ainda não tinham inventado a troika, da aparelhagem do morto que a viúva havia de descobrir debaixo da manta que lhe cobria “as partes”. Risota e chacota mulheres de cara virada mas com o olho bem aberto. No mealheiro já começava a sentir-se o peso. Ala que se faz tarde, de arrecuas às vezes se faz bem.

Agora subindo a rua principal em direção ao Largo do Chafariz. Pelo meio, pouca confiança davam o Ti Espanhol porque o palavreado era trôpego e o Silvestre Velho porque já era velho e havia outros mais novos. O Rafael Coxo ficava afónico e até parecia enterro interrompido quando o cortejo passava à frente da casa do sogro. Sempre a subir e lá estavam no sítio onde tudo acontecia. O Dionísio Frouxo de barrete preto saloio, o João de Leião do trator que mais me parecia um prédio de dez andares, o Ti Simões da Ti Libânia que se dobrava sobre si acusando o peso do tempo contado em muitos anos de labuta, o João P’ixeiro com aquele bigodinho e andar tão característico, o Simplício, pai do meu amigo Rui ali ao cantinho, o Ti Miguel lá ao cimo com o cabelinho todo branco e as pernas arqueadas, o Francisco Frouxo também de barretinho saloio no pátio ao lado e antes do brincalhão e divertido João Tirapicos da Deolinda, em frente o Manel da Colónia sempre muito sério de carranca e que cortava as bolas todas aos putos, do outro lado da taberna da Menina Emília a casa do Guilherme barbeiro, o Ti Hilário com o inconfundível macaco de ganga azul marcado de massa ou cal do biscate e o cigarrito sempre na função e a Natália e os filhos. 

O meu Tio António e a minha Tia Espírito Santo do outro lado manobrando o coalho do leite mugido do rebanho de ovelhas pela madrugada e que eu, com a Gina e o Eduardo, experimentávamos os queijinhos muito fresquinhos acabados de encher os cinchos. Então e o Tavinho? Isso é que ele gostava! Era o delírio, ao contrário do pai, o Ti Veríssimo de sacho sempre na mão. Em frente da casa deles acontecia tudo. Eram as “Cegadas”, o Circo dos saltimbancos, as Marchas, a fogueira do enterro do bacalhau e até onde o gado de toda a gente ia beber água ao Chafariz e, claro, arrear a respetiva bosta.

O Chafariz, inventado e feito pelo artista Ti Veríssimo. Lá está assinalada a autarquia mas quem o esculpiu e montou foi ele. Também tinha a “ciência da pedra”, embora duma maneira diferente do Coutinho que era Bernardino. Este, arrancava a pedra das raízes e gastou a maior parte do seu tempo nos buracos das pedreiras intervalados com o emborcar de muitas ciganas e charretes nos balcões das tabernas da Menina Emília, do Álvaro ou do Ramos. O Ti Veríssimo tinha a ciência de esculpir a pedra, era artista escultor. Depois deste tempo todo contado em anos, tento descobrir a justificação para muitas das denominações toponímicas das ruas e travessas da Abrunheira sem encontrar justificação. Certo estaria que as homenagens tivessem sentido. À volta do Chafariz tudo acontecia que nem pista para levantamento de voo dos ganços do Ti Veríssimo. A Ti Estrudinhas bem que os tentava controlar mas não lhes chegava nem às penas do rabo quanto mais à altiva cabeça. O Tavinho orientava as malandrices do carneiro “Baltasar”. O sacana do carneiro até parece que entendia a faladura do Tavinho.

A chinfrineira da viúva, à medida que se aproximavam do Largo do Chafariz, ia perdendo gás. Muita aguardente por aquela goela já passou que só não provocou mais estragos porque o Rafael Coxo tem um fole roto. Não há bebida que o faça cambalear. Era difícil perceber quando estava com o “grão na asa”. Mas dos berros dados fica o estorvo. O que já lhe apetecia era "abancar" e empanturrar-se de bacalhau e grão cozidos. A justeza de lembrar o meu Tio Rafael, Pai do Fernando e do António que todos conhecíamos como “pezinhos”, está no facto de não haver acontecimento recreativo, desportivo ou cultural, onde não estivesse presente o Rafael Coxo com a sua venda de bebidas com e sem álcool, aperitivos e petiscos rápidos. No seu tempo ainda não havia secretário de estado do empreendedorismo, nem incentivos financeiros ou fiscais para se ser empreendedor, mas ele já o era, e dos bons. As voltas, as gritarias, as chinfrineiras, as bebedeiras, as cantorias do Vandelino, do Ti Tónho Maltês e a choradeira da viúva, deram sentido à tradição abrunhense.

O som espalhado pela crepitação da fogueira assinalava o fim do “bacalhau-morto” e o fim do Carnaval. Na taberna, as máquinas digestivas dos acompanhantes, faziam horas extraordinárias e a quarta-feira de cinzas ia acabar como todos quiseram; Bem comidos e bem bebidos.

Pela janela, o Ti Veríssimo, artista escultor do Chafariz, assistiu à ignição da pira, ao subir das labaredas e, por fim, ao apagamento até ficarem as luzinhas intermitentes das cinzas.

E as homenagens numa simples placa toponímica duma rua, avenida, largo ou mesmo travessa??Os que mandam nas juntas, nas uniões ou na câmara, não perpetuaram nem perpetuam em registo de memória, os abrunhenses que, duma forma ou doutra, se destacaram na vivência coletiva da nossa Terra.

Silvestre Félix

13 fevereiro de 2013

(Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base verdadeira, mas, são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não.)  


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

LEI DA VIDA QUE FAZ DELA MORTE…


Desde o primeiro ar que respiramos nesta vida nascida, o caminho não tem limites mas sempre tem muitas dificuldades. Quando a caminhada é longa, o normal é que a última parte seja sofrida e penosa até ao fim. Aí, empunhando a gadanha, ferramenta sempre à mão quando sai das trevas, a morte cumpre o seu desígnio.

Muitas passadas pelo Largo do Chafariz, muitas ceifas do Silvestre Velho, muitos dias gastos na labuta dos “plásticos”, muitas vigílias pela utilização da, do João da batata, e a URCA que espreitava nos tempos críticos do quente verão do PREC. A Ti Lurdes caminhou, caminhou… e rendeu-se à lei da vida que faz dela morte. Ti Lurdes do Artur da Maria ferreira. Maria Ferreira, figura de físico pequeno e dobrado sobre si que muitos ajudou a nascer, como eu, no quartinho ao cimo das escadas e o Rio das Sesmarias do outro lado da rua e a Serra, Santa Eufémia e a Pena lá mais acima.

E lá vamos, hoje em São Pedro e amanhã para o Alto da Bonita depositando a matéria solta da Alma que esteja em paz e sossego.

Silvestre Félix

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

ANIVERSÁRIO DA URCA

Quero manifestar a minha satisfação pela programada comemoração do 38º aniversário da fundação da URCA. É uma data que deve ser devidamente valorizada e, pelos vistos, a atual Direção assim o entende, e bem.

Clicando, podemos recordar o dia 3 de Janeiro de 1975, dia primeiro da nossa coletividade.

Como sócio fundador fico contente e agradecido.

Silvestre Félix – Sócio número 12.

3 de Janeiro de 2013

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O CIPRIANO E O FORNO!


Pelo Largo do Chafariz, menina Emília, Cipriano, atravessando o das Sesmarias e ao lado da pedreira do Ti Miguel, lá agarrávamos os “caminhos por aí acima” até ao Mercado passando antes pelo Fetal no caloroso abraço de saudades de primas rodeadas das flores descidas da Tapada do Roma onde, por aí acima, ainda na mesma manhã chegaríamos. A olhadela pelo Mercado era rápida que de compradora a minha Mãe raramente estava. Gostava de ver o gado, dos viveiros, o cebolo, couve – galega e portuguesa. O destino era mesmo a Serra e, descendo até à Vila e voltando a subir, lá vinha o cheirinho do café da Ti Franquelina. A Serra dos Brandões marcou a minha geração e sugere ainda hoje, viajar sem descanso pelos tempos.

Antes dos “caminhos por aí acima”, fiquemos do lado de cá da Serra e olhemos para os “caminhos por aí abaixo”. Às vezes lembro-me do Cipriano. Era mais ou menos pedreiro ou mestre de obras e também trabalhava a pedra e negociava cal que cozia no forno. Lá, no tempo de trás, o Cipriano ainda sente o braseiro das pedras recebendo o fogo da lenha atirada para o forno. As pedras irão caldear para ajudar a subir as paredes das moradias e até do caminho que levará a placa “Rua do Forno”. Era do Cipriano, o forno e, vendo agora para o futuro, embasbacado ficará, como se já não chegasse a rua, dar de caras com um “Jardim do Forno”.
  – Jardim? E do forno? Será o meu ou o outro ao pé da “rigueira” do sogro do João de Leião?

 (eu sei que “rigueira”, mesmo sem acordo ortográfico é “regueira” mas, se sempre disse e sempre ouvi dizer “ri”, porque hei de escrever “re”? Para mim é “Rigueira”, pronto!)

  – A quarenta e tal anos em tempo contado para o futuro, não vou conseguir descobrir, de certeza. Bom, vou dar como certo que se referem ao meu “Forno”. Assim, como assim, eles só têm lá escrito “Jardim do Forno”! Não têm “Jardim do Forno do Cipriano” ou “Jardim do João de Leião”. Mesmo assim, tive que virar o desenho ao contrário porque a placa do jardim está do lado do “Corronquinho”.

Saltando para o outro lado da Abrunheira e antes dos “caminhos por aí acima”, na pedreira do Ti Miguel, labuta o Homem que tinha a “Ciência da Pedra”. Tanto nas pedreiras como no forno do Cipriano ou, de outros, que lhe pagassem o suficiente de comida e, principalmente, bebida. Já algumas vezes tinha prometido à Mãe, Ti Mariana Soleta, que “queria acabar com o vinho mas, que não conseguia porque era sozinho a trabalhar para isso”. A rotina habitual do Coutinho que era Bernardino incluía uma conversa com o Rio das Sesmarias quando por lá passava e, se o das Sesmarias não o retivesse muito tempo ou não o desafiasse para meter uma “charreta” na menina Emília, enfiava-se na pedreira e demorava tempo até de lá sair.

    – Oh Coutinho que és Bernardino, ouvi dizer que ontem à noitinha na taberna do Osvaldo quiseste levantar um barril de 50 litros de tinto só com os dentes, é verdade? (perguntou o martelo de corte)

    – E então? Pensas que não sou capaz? Ontem é que já tinha muitas “charretes” bebidas e a coisa não correu lá muito bem mas, um destes dias, levo-te comigo e vais ver se levanto ou não! (respondeu o Coutinho que era Bernardino)

O homem que tinha a “Ciência da Pedra” não era de muita conversa e, como toda a gente, também olhava, pensava e sonhava no tempo lá para a frente. E, mesmo nas profundezas da pedreira do Ti Miguel, tinha dificuldade em ver que o Largo do Chafariz já não era o sítio onde todos os abrunhenses iam.

  – Mas como é que pode ser?

A antiga casa do Caracol Velho onde, daqui a uns anos contados em tempo e depois da Ti Mariana Solena e do Ti Vitro se finarem, iria morar e dormir na mesma cama com a Judite Caracola, já lá não está!

  – Homessa? Olha, olha…um prédio dos grandes? Então e as galinhas e os coelhos? E o caminho do caracol agora tem alcatrão, não tem silvas e estão a soprar-me ao ouvido que é uma rua e se chama Humberto Delgado. É o tal que vai dizer aos jornais que «não tem medo» e, ao “botas”, que «se ganhar, o demite».

O escopro, ouvindo a faladura sozinha do Coutinho que era Bernardino, estava danadinho para entrar naquele exercício do futuro e, antes que se iniciasse outro monólogo, desferiu, com a mesma subtileza com que torneava a cantaria:

  – Deixa lá o “botas” e o que “não tem medo” e ouve o que eu consigo ver com a lâmina voltada para cima, muito mais para a frente em tempo contado em anos: A rua principal desde o Osvaldo até ao caminho do Caracol, passando pelo Largo do Chafariz, com o nome de avenida do “Movimento das Forças Armadas”. Pelo reflexo, consigo ver que foram milhares, “os que não tiveram medo”. 
  
O Coutinho que era Bernardino, entretanto calado, fechou os olhos e, com “futuro” à sua frente, só queria saber mais e mais. Com esforço de concentração, lá começaram a correr mais imagens da nossa Terra:

O tempo saltou, pulou e deixou-se ficar uns instantes naqueles anos redondos e de classe operária feita. Com muita pintura e cartazes nas paredes já nem o Largo do Chafariz se livrava. Abrunhenses mobilizados pelos partidos e movimentos cívicos, já muitos havia e nas listas à Junta de Freguesia de São Pedro, eram incluídos. Ah, mas lutavam pela eleição e transpiravam a camisola pelo que acreditavam. Nesses tempos, que, vistos do futuro para o passado até parecem meio estranhos, porque, toda a pirâmide democrática a nível local era graciosa para quem a praticava. Muitos cadernos eleitorais se descarregavam e muitos votos se contavam com “mata – bicho”, almoço e lanche dos votantes. Voluntários sempre sobravam e a alegria não tinha nada a ver com vitória ou derrota eleitoral.

O caminho do tempo não para. Continua sempre “por aí acima”. Até o Alto da Bonita é “por aí acima” e, quando à frente do Coutinho que era Bernardino passou Ranholas com a padaria do Ti Américo e o Pocinhas, a barbearia do Ti Guilherme e, uns contados em anos mais adiante, mesmo na curva em frente à Quinta do Ramalhete, no Lanterna Vermelha, o fio da história passou a ser mais concreto e pormenorizado:

Imperador era o bacalhau, bom de gosto e farto em quantidade. Simpático e amigo era o Conde com responsabilidade republicana e o dia, melhora fora o de 1º de Dezembro, mas não, logo tinha de ser o 5 de Outubro que, no salto dos setenta para os oitenta do século XX, não nos passava pela cabeça que lá mais para a frente no tempo contado em trinta e tal anos, acontecesse roubo à cidadania republicana com a supressão do feriado popular e nacional. Era vida complicada mas de muita esperança e o Conde que de Saborosa tinha o nome e com a guitarra portuguesa seguia na fadistagem a voz única da esposa Maria Teresa de Noronha. No Lanterna Vermelha, eu, o Peniche e o Conde – Presidente de Penaferrim. Naquele dia de comemorar a implantação da República, degustamos e trabalhamos sem senha de presença ou aposentação garantida.

Não sei se alguma vez o Conde que de Saborosa tinha o nome, provou o néctar único que na Abrunheira se fazia e consumia bem perto do Cipriano. O Coutinho que era Bernardino bem lhe tinha o gosto e o proveito porque, na altura certa do ano, na ida, passando pelo Largo do Chafariz, Menina Emília, Abílio e, antes do Cipriano, engatilhava para o Pena na onda do São Martinho e até ao Natal. Era a melhor água-pé da Abrunheira e arredores. Não era para putos mas, rapaz que se prezasse, tinha de saber que o Pena era o maior (em altura) em água-pé! Petisco se organizava e de lá só saiam a cambalear ou mesmo de gatas. O Coutinho que era Bernardino não! O bandulho era a preceito e não havia bebida que o deitasse abaixo. Quando pesado já estava, metia a espinhela a três quartos e lá comandava os andantes a direito até ao fundo do alcatrão.  

Pelo Largo do Chafariz e por “alguns desses tempos”, vivíamos o azedo do medo e ansiedade que apertava os nossos peitos.

Pior nunca podia, e melhor sempre seria!

Muitos anos em tempo contado lá para frente, esta máxima mudou! O Largo do Chafariz continua no sítio, a Abrunheira já tem um Jardim do Forno que era o do Cipriano e que se chama só – Forno, mas os abrunhenses e todos os portugueses estão a ficar mais pobres, passam muito mal e estão tristes.

Melhor nunca será, pior sempre estará!

Silvestre Félix
25.10.2012
Editado em 26 outubro de 2017 com a colocação da gravura de um forno de cal

terça-feira, 27 de março de 2012

O CARNEIRO BALTAZAR!


Baltazar se chamava, o macho ovino com grandes cornaduras reviradas em caracol nas laterais cranianas que, considerando a lógica linguística e regra gramatical que atribui o género do nome, terminando com a vogal a ou o, e por isso devia ser “ovelho” (masculino de ovelha), mas que, talvez, para realçar a valentia do animal, se conhece por “carneiro”. Este, era constantemente desafiado a investir para quem à frente lhe aparecesse. A designação, aparentemente derivada de “carne”, também se escolheu para signo do Zodíaco e para identificar as pequenas ondas espumosas no alto mar. Também se diz “carneirada” para muitos carneiros juntos ou, aplicado à “raça” humana, de muitos obedientes seguidores de um líder ou de determinada ideia.

Vem esta conversa de “cornos”, “marradas” e “carneiradas”, a propósito (de muita coisa, o que não falta para aí são exemplos) do “carneiro” “marrão” do Tavinho. Antes que o meu irmão venha dizer que não era bem assim, “assado e aquel’outro”, previno já, que me apetece contar as investidas deste vigoroso macho ovino, à minha maneira, impreciso no calendário e com personagens que podem ou não ter a ver com a parte verdadeira da carneirada.
       
Baltazar bem “inteiro” vivia e, por isso, na maior parte dos dias logo pelo nascer o Sol à chegada do Tavinho para a tarefa de mungir as vacas e depois as ovelhas, posicionava-se bem no ângulo de visão do dono, maneava a cabeça bem armada como se estivesse a dizer que sim, berregava alto e arreganhava-lhe o lábio superior mostrando a dentadura ovina envolvida em saliva e espuma da remoedura, em sinal de desejo para montar as fêmeas do rebanho que de cio fossem portadoras. O Tavinho, sempre prevenido para quebrar os “desmandos” sexuais do carneiro, saca de um dos ganchos do penduricalho o avental feito da pele dum antepassado do Baltazar e, devagar, pela lateral traseira à esquerda e com a mão direita na cornadura do outro lado, aplica-lhe a correia da barriga ao lombo, bem justa ficando a pala pela frente da ferramenta reprodutora, impedindo-o de concretizar, em oportuna fugida ao rebanho, qualquer penetração estupradora, indesejada e fora de tempo.

O Tavinho, surdo aos avisos do pai Ti Veríssimo e aos conselhos da mãe Ti “Estrudinhas”, dobrava-se a rir quando o Baltazar investia no traseiro de algum distraído Abrunhense. Nos dias em que o macho ovino arreganhava a dentuça para o Tavinho, era “trigo limpo, farinha amparo”, havia marrada na certa. Os “habituês” já sabiam e nem perto do Chafariz passavam. Já não bastavam os ganços, quanto mais as marradas do carneiro. Ainda assim, muitos Abrunhenses tinham que passar mesmo pelo Largo do Chafariz; para ir ao Álvaro, ir buscar água ou levar o gado a beber ou, simplesmente, passar para o lado da Menina Emília. Ora bem, o Tavinho, com a marotice toda, tinha o pessoal bem marcado e, quando qualquer da lista passava perto, assobiava ao Baltazar e não era preciso mais nada; a vítima enfrentava e arriscava ou então tinha que se pôr ao fresco rapidamente.

O Baltazar portava-se como se cão fosse. Obedecia ao dono e guardava o seu território com as armas (cornos) que tinha. O Tavinho divertia-se com o comportamento do carneiro escondendo, claro está, a sua cumplicidade. A sua natureza bondosa, generosa e simpática, embora também divertida, levava a que os Abrunhenses pensassem que o Tavinho era tão “vítima” do carneiro como as que o Baltazar marrava.

Muita água o Chafariz deitou, muito cântaro e bilha lá se encheu, muito gado encheu o bandulho no tanque, muitas “ciganas”, “charretes” de dois e de três, tinto ou branco se beberam, muita água o “Rio das Sesmarias” correu debaixo da ponte da Colónia, muitas vezes os ganços do Ti Veríssimo levantaram voo, muitas notícias “visadas pela comissão nacional de censura” eu li no jornal do Ti Álvaro, muitos soldados p’ra Guerra Colonial em África foram forçados porque da Índia já tinham vindo, muitos contestatários presos políticos estiveram e torturados foram, muitas Luas pelo monte descansaram, muitas solas o Ti J’oquim Caga-Chuva cozeu, muito reboco o Ti Hilário da Natália chapou, muita pedra o Coutinho que era Bernardino, com ciência a trabalhou, muito corridinho o Ti Faneca tocou e muito cigarro fumou, muita gargalhada o Rafael Coxo deu, muito cachimbo o Ti Mendes construiu e gastou, muito cabaz de fruta o Pechincha vendeu e também muito deu, muita piela o Zé da Natália apanhou, muito morcego o “Julinho” tentou apanhar na ponta da cana ensebada, muitos episódios do “Último dos Moicanos” eu vi na “sociedade”, muita…muita coisa aconteceu nesta Abrunheira que, desde a história do Francisco Borrego que virou Sacadura e do Bernardino que passou a ser o Coutinho, também ficou a chamar-se Brasil… até que um dia…embora fosse verão mas as nuvens ameaçavam chuva, talvez fosse aviso para a tragédia que se preparava…nesse dia, ainda meio-dia não era quando, o Maratecaque do nome só se percebia …teca porque o homem tão depressa falava que engolia metade das palavras – saia do Ti Álvaro depois de ter molhado a goela aplicando à tarefa, o braço e a mão direita descansando o lado esquerdo com o cotovelo no balcão de mármore rosa, seco e asseado como era costume na “Tendinha”. O conteúdo do copo de três, soube-se depois, era tinto do melhor, extraído do barril aberto pelo Ti Álvaro ainda não eram oito da manhã deste dia cinzento, embora a verão estivesse obrigado pela força do calendário.

Habitualmente, aquela hora, já a Ti “Estrudinhas” lhe chegava o almoço mas, nesse dia…a tentação era forte e o Tavinho não podia perder a oportunidade de por a adrenalina a percorrer o corpo lãzudo do Baltazar. Na verdade, hoje não lhe tinha mostrado os dentes pela alvorada e, por isso, o Tavinho, também não tinha colocado o avental na barriga do animal ficando assim “o aparelho” completamente desprotegido e pronto a “atuar” no caso lhe passar à frente alguma fêmea “carregada” de cio. Então…o Tavinho, ignorando o mau presságio do cinzento em dia de verão avançado, mirando o “estrangeiro” – que só alguns dias depois soube chamar-se Marateca – saindo do Álvaro, encarou o Baltazar e, como sempre se divertia fazendo, assobiou dando sinal de ataque com toda a carga.

O carneiro Baltazar, completando rapidamente a charada de neurónios naquela cabeçorra cornuda, e utilizando o mesmo tempo para por a adrenalina “no ponto”, inicia a debandada em direção ao Marateca, aplicando no arranque, a máxima, de rapar duas vezes com os traseiros. Levanta a “armação”, e lá vai ele! O último cliente do Ti Álvaro, que estava a iniciar o avanço para o largo em direção ao Chafariz, apercebendo-se das intenções do Baltazar, estanca…e, sem se lembrar de mais nada, levanta os braços esticados à altura da cabeça com os dois dedos indicadores bem direitos, formando um arco como se de dois cornos de tratasse, e dá dois passos para o lado donde vinha o carneiro.

Se isto estivesse a acontecer em anos contados, cinquenta mais tarde, podíamos imaginar uma cena virtual. Quem vai marrar quem? Com certeza que a playstation resolveria o dilema. Provavelmente os cornos do Baltazar se transformariam noutra coisa qualquer e os braços e dedos do Marateca, num emissor de laser’s mortíferos e demolidores que nem a troika lhes resistiria. Se este frente-a-frente, que nem 21h30m do MCrespo fosse, na certa o nosso Largo do Chafariz, alcatifado a bosta de vaca e debruado a caganitas de ovelha, depressa virava “plateau” virtual com todas as cores a que tem direito. Se o acontecimento não estivesse a dar-se com o “botas” ainda a “cavalo” no poder, perseguindo e torturando todos os que se lhe opusessem, assim como o Marateca de caras com o Baltazar, seria um tempo virtual em que na Abrunheira até jardins com o nome de “forno” existiam. Aliás, nessa distante galáxia Abrunhense, muitos “fornos” haverão; A padaria que será “o forninho”, a rua do forno e, mais tarde, ao ritmo de santa Engrácia, o jardim do forno.

 Mas não, estávamos quase na época da pedra que, mesmo assim, era matéria viva e delicada para o Bernardino que não era Coutinho e sabia a “ciência da pedra”. Voltemos então à narrativa de meados do longínquo século XX…

Na altura em que os dois (Marateca e Baltazar) quase se tocavam de frente, já alguns Abrunhenses se aproximavam para assistir a mais uma marrada do carneiro do Tavinho. Pois é, só que desta vez, mesmo no meio do Largo do Chafariz, iriam ver a lógica transformar-se numa batata. Naqueles instantes, começou a instalar-se a dúvida em muitos Abrunhenses sobre quem venceria a contenda. O próprio Tavinho que, como sempre, estava impávido e sereno esperando o desfecho do costume, começou a sentir suores frios a escorrerem-lhe pelas costas abaixo, quando, a suposta vítima, entendeu enfrentar o seu obediente e esperto Baltazar

Foram momentos de alta tensão, eram audíveis as respirações dos contendores que sobressaíam do silêncio tumular nunca sentido no Largo do Chafariz. Foram segundos de tempo contado num êxtase geral, subindo a emoção dos presentes até às nuvens que, como já se disse no início do escrito, estavam cada vez mais negras, antecipando uma forte trovoada de verão que, porventura, Baltazar adivinhou.

Os dois, Marateca ou somente …teca e Baltazar, parados, frente a frente.

De repente, o inteiro macho ovino, maneia o focinho para cima e para baixo e, arreganhando a beiça, desata uma berregadela bem forte, dá meia-volta e, começando a verter todas as águas que a bexiga armazenava e botando muita quantidade de caganitas negras como as nuvens, raspa no chão com as traseiras e arranca numa correria desenfreada na direção do Tavinho que este, estonteado e apardalado com o que via, não se lembrou de que atrás de si estava um fardo de palha que, no segundo seguinte, lhe servia de enxerga. Na horizontal, quando deu conta de si, Tavinho sentiu as patas dianteiras de Baltazar bem pousadas na sua barriga e assim ficou até perceber que a fúria do carneiro se tinha dissipado.

Ao Marateca nunca mais ninguém o viu, mas a cena ficou marcada e conhecida na Abrunheira e arredores como a “vingança do Baltazar”.

O Tavinho, a partir daquele cinzento dia de verão, nunca mais assobiou com o Baltazar por perto, não fosse, outra vez;

«o feitiço virar-se contra o feiticeiro»

Silvestre Félix

27 de Março de 2012

(Texto ficcionado pelo autor, baseado nalguns factos, nomes e lugares verdadeiros)

sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

ABRUNHEIRA E OS «CAMINHOS DE ROMA»

Nos últimos trinta de tempo passado e contado em anos, o mês de Agosto, para mim, nunca foi altura de partida e, antes ao contrário, de chegada. Lá para trás ficaram os "Agosto’s" de Lagoa de Albufeira para onde muitos abrunhenses se transferiam a banhos de lagoa, de mar, de areia e sol. Com o “sangue na guelra”, os calores prolongavam-se “luares” dentro e não havia cerveja que os afogasse, também porque não era muita em razão dos trocos (in)disponíveis que a austeridade não foi coisa agora à pressa inventada. E então, finado o Julho, lá começamos a notar que o sol se põe mais para a esquerda da encosta da Serra, ou seja, os dias diminuem à medida que o Agosto corre. Em mim não cabe aquele famoso título de singular filme; “O meu querido Agosto”. Acho que é assim que se chama, se não for, não andará muito longe do certo.
Bem, não sendo o mês de partida mas sim o de chegada, aqui me disponho para mais prosear ao “sabor do teclado” como noutros idos se dizia “ao sabor da pena”. O efeito é o mesmo – escrever – no tempo da “pena”, só a tinta e as especiarias, vinham das rotas orientais ao contrário de agora que, são poucas coisas que não vêm da China.
Quando os Romanos por aqui andavam, mesmo antes do Viriato se atrever a fazer-lhes frente, e porque para construírem caminhos e estradas não precisaram de esperar dois mil anos pelos ensinamentos dos nossos modernos governantes, trataram de empedrar os antigos trilhos desde todos os cantos do conquistado território até à sede do império em Roma. Na Abrunheira, onde decerto passaria um desses caminhos, também se aprendeu a dizer que «Todos os caminhos vão dar a Roma». Os abrunhenses aprenderam e, pelos séculos fora, usaram a expressão para se referirem à estalagem mais próxima, às tabernas e mercearias do Ramos, do Álvaro, da Menina Emília ou, depois, ao Café do Manel, do Cabaço ou ainda mais perto, à URCA.
No século XXI existem muitas “Romas” e “todos os caminhos” vão dar a cada uma delas e todas se ligam umas às outras. Desde a Abrunheira, caminhando, também se chega a todas elas. A mais modernaça, abriu portas ali para os lados do “Alto-Forte” e eu, que me tenho na conta de não ser “anti”, antes pelo contrário, por lá dou umas voltas mesmo que seja para completar o medicinal tempo diário de andamento. Como todas as “Romas” antigas, esta também se apresenta pela opulência e poder de convencer o incauto. Como nos mercados antigos, é preciso manter “um olho no burro e o outro no vendedor”, embora o cuidado aqui tenha outro significado. Mas é bom cuidar deste princípio! Muitos abrunhenses por lá encontro e, não é só neste “Agosto que para mim é mês de chegada” mas também nos outros meses, nas outras semanas, nos outros dias e a várias horas diferentes.
Para sermos uma terra invadida, já não é necessário que dos lados de “Castela” cheguem exércitos armados com intenções pouco amistosas. Agora, neste século de agudas crises, o “inteligente” arranjou forma de concretizar a “invasão” de terras abrunhenses sem que tivéssemos tempo e oportunidade de olhar para o catálogo de ofertas enganosas, como já antes tinha feito com a CEE e com os novos tratados da União(?) Europeia. A muito trabalho me obrigo tentando encontrar produtos que não sejam veículos dessa “invasão”. Até com a “porra” do leite (salvo-seja), é preciso ter olhos bem abertos. O mais barato do mercado, que eles dizem (!!!) marca branca, e que mesmo conferindo a “barra” (560) pensamos ganhar o “assalto”, pode ser importado e só tratado e empacotado cá. E a fruta? Tantas voltas tenho de dar para encontrar a nossa e, muitos dias, nem isso se consegue.
Eu gosto de ter uma “Roma” ao pé da porta e a maioria dos abrunhenses também sentem da mesma maneira, até porque alguns lá conseguiram o tão desejado e preciso emprego, mas temos de resistir à “invasão”. Cada produto, peça de roupa ou brinquedo que o abrunhense compre e não seja “Made in Portugal”, é mais um contributo para a concretização da estratégia do “inteligente” que é concluir a “invasão”.


Roma” sim, mas que seja portuguesa!


Neste "mês de Agosto que para mim é de chegada", “resistir”, é a palavra de ordem!


Silvestre Félix

segunda-feira, 18 de julho de 2011

URCA EM 1990

Quando tomei posse do meu cargo na minha última passagem pela Direção da URCA na transição da década de oitenta para a de noventa, encontramos, já a funcionar, sob a orientação de três empenhados sócios da nossa coletividade, uma escola de futebol infantil com cerca de 30 miúdos.
Naquela época, o pelouro do desporto da Câmara Municipal de Sintra, tinha protocolos com alguns clubes do Concelho interessados em criar e manter “Escolas de Futebol”. A URCA era um desses clubes.
Esta foto tem um calendário no verso e era uma forma de divulgar o excelente trabalho dos três responsáveis e premiar os “miúdos” atletas.
Vou colocar a mesma no álbum dos “Seguidores do Largo do Chafariz” no facebook para que todos possam ser identificados porque, como calculam, não o consigo fazer sozinho.


Silvestre Félix
18 de Julho de 2011

sexta-feira, 15 de julho de 2011

MARISCADA

Que se estranhava tudo a que marisco se chamava e que não fosse tremoços, era verdade absoluta. O mais aproximado que o nosso aparelho auditivo admitia captar e o visual identificar, usando toda a capacidade “olhómetra”, era um bicharoco conhecido por “gamba” ou, admitiam outros, o berbigão e o mexilhão. Mesmo assim, nunca tínhamos contado as patas das “gambas” porque quando as víamos passar estavam sempre demasiado longe para que esse exercício fosse possível. O mexilhão, por tradição, não se safava pela Sexta-Feira-Santa nas rochas batidas pelas arribas da nossa costa que, mesmo não fosse, para o efeito era sempre Magoito. E agora, “diz o inteligente”: Que não, que estou a exagerar, porque nos idos últimos de sessenta e primeiro de setenta já se sabia o que eram “gambas” e outros primos pescados, todos os designados “marisco”. Pois bem, “o inteligente” até podia saber mas eu não, e pronto! Sendo pescado no mar muito me admirava que a Ti Aurélia nunca por cá trouxesse petisco tão elogiado. Lá em casa também nunca vi nem ouvi falar. Nos livros da escola, para além das sardinhas, atuns, carapaus e pargos mulatos, também me parece que não vi aqueles tidos como “marisco”.


Havia uma ou outra notícia sobre estes exóticos “nadadores” comestíveis, que nos chegavam através das histórias contadas pelos regressados heróis das guerras que pelas “Áfricas” continuavam porque em tempos o “botas” disse “depressa e em força para Angola” e, depois de ter caído da cadeira e do “corta-fitas” ter posto o “Professor” no seu lugar, continuar tudo na mesma. Diziam alguns que em Angola lhes passaram pela goela lagostas e lavagantes do tamanho duma Empala ou duma Pacaça o que, para nós, significava ficar na mesma porque os ditos como exemplo, se fossem animais, eram tão desconhecidos como os outros. Vinham outros de Moçambique que nos “emprenhavam” com iguarias em forma e nome de Caranguejos do tamanho das “gaivotas” do Tamariz e que, quando numa cervejaria ou restaurante pediam uma imperial, ainda primeiro que a bebida já lhes punham um prato de Camarões do tamanho de chicharros, à frente. Destes e doutros “filmes”, exemplares narradores era o “calhordas”, o “Pézinhos” e o Fernando e outros Abrunhenses reconhecidamente fiéis à tradição de passar boas histórias com muita “margem de progressão”, principalmente se tivessem, à posteriori, a colaboração do meu irmão.


Está bom de ver que bem instruídos e esclarecidos sobre “marisco”, estávamos todos. Ainda era o Ramos e haveria de ser o Cabaço que ainda não tinha descido à Abrunheira, que de sede servia para o nosso “clube do totobola”. O Caravaca-Pai, que gastava as vagas da Colónia tomando conta do café ao Ramos que na mercearia muito que fazer ia tendo, orientava e controlava os boletins semanais do totobola porque os “seus” consócios eram todos putos como o filho Filomeno Caravaca. É aqui, nesta parte, que me “salta-a-mola” com a qualidade deficiente do disco rígido instalado na minha “caixa-cinzenta”. Quantos faziam parte e quem eram eles? Alguns acertarei, outros inventarei ou omitirei mas, ainda assim, tenho a certeza que por parceiros tinha o Rui Simplício e o Filomeno Caravaca. Havia também, para além do Caravaca-Pai, um colega dele da Colónia e, quase que posso jurar (?), o Zé Fernando e talvez o Mário e se calhar também o Zé Costa. Será que eram tantos ou, pelo contrário, ainda falta algum?


O grande objetivo era juntarmos dinheiro para comermos uma “mariscada”. O sítio foi sendo aventado e, quando a meio do mealheiro íamos, lá nos decidimos em definitivo pelas bandas do “Onde o mar é mais azul”, a Ericeira. Quando o campeonato chegou ao fim, as moedas acumuladas eram tantas, que mais pareciam um prémio de totobola. Lá fomos, pelo menos uma parte, no “carocha” do colega do Caravaca-Pai na Colónia até à Ericeira conhecer e degustar o tão falado “marisco”. Lembro-me de ter ficado impressionado com umas “pinças-longas” que me disseram depois serem lagostas, num tanque logo à entrada do restaurante.


Marcante ficou a “mariscada”. Ainda durante muito tempo nos lembramos de quanto bem nos soube aquela comida com sabor a mar. Ainda nem mancebos éramos e já tínhamos comido marisco a sério. A outra grande vantagem foi termos ficado em condições de participar com conhecimento de causa, em todas as conversas que abordassem marisco. Um feito com elevação na nossa formação de putos espertos que, de agora em diante, viesse quem viesse, barretes sobre marisco, não nos enfiavam mais.


Naqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta, o desconhecimento e ingenuidade eram certezas e o assunto do dia ou da semana ainda podia ser – o que é, o marisco? Os putos da Abrunheira não eram menos sabedores que os outros, os interesses é que eram limitados ao tempo e ao terreno. Era época que nem isqueiro ou acendedor se podia usar, só com licença passada pelo Governo Civil com visa da PIDE. As mudanças também aconteceram na Abrunheira e, como em todo o mundo, tudo está ao alcance dum clique num teclado ou dum simples toque num ecrã reduzido. A curiosidade e o interesse no saber são como o ar que se respira – são, e no minuto seguinte, deixam de ser porque as bandas larguíssimas têm mais velocidade.


Num dia daqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta ficamos a saber o que era marisco!


A movimentação descrita nesta página que, quando se completar outro tanto do tempo contado em anos desde o histórico acontecimento – A MARISCADA – já constará nos documentos classificados de alto interesse gastronómico do finado império europeu e, até o nome dos sítios e dos participantes, terão tradução automática com uma simples aplicação ocular, porque os chineses nunca se adaptaram a outras escritas e leituras que não fosse o seu milenar mandarim.


(Baseado em factos reais mas muito ficcionado)


Silvestre Félix
15 de Julho de 2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

BONECOS DA BOLA

Rebuçados, laranjada, bonecos da bola e pés enfiados em botas bem cardadas com bons protetores na biqueira, era ambição suficiente para putos descalços e mal aviados de sustento para os gástricos ávidos de trabalho. Na Abrunheira também os havia como em todas as outras terras por esse País fora.
Nem mercados, nem agências de rating, nem União (?) Europeia, nem troika, nem Chineses, nem ninguém! Não tinham quem lhes calçasse as botas e lhes desse comer para a boca.
Os putos, depois de terem encontrado o boneco da bola mais difícil, lá foram à vida. Também fui à vida mas não andei descalço e nunca me saiu o boneco da bola mais difícil. A mim saiam-me sempre os mais fáceis e repetiam, repetiam que nunca mais acabava. No que respeita aos “calcantes” – sorte a minha, os bonecos da bola, nem era nem deixava de ser. A laranjada também experimentei aí com quatro anos. Não estava nada mal, mas o que eu queria mesmo era que a Burra-Carocha nunca crescesse mais. Querer de puto mas com muito carinho. Muitos Sóis e Luas passaram e continuo a lembrar-me da Burra-Carocha acabada de nascer da outra Carocha-Mãe.
E eu vi!
E o meu Irmão perguntava: Viste o quê?
Vi a Burra-Carocha nascer de dentro da Carocha-Mãe! (
Respondia Eu)
E o meu irmão: E agora?
Agora o quê? (
Dizia Eu)
Não digas nada à Mãe!
Dizia o meu Irmão mais perturbado do que eu.
E eu dizia: Eu sabia! Os cãezinhos também saíram de dentro da Mimi. Eu pensava, é que iam sair mais Burras-Carochas de dentro da Carocha-Mãe!
O meu irmão só ouvia, estava sem saber o que me havia de dizer.
Oh Mano, então porque é que os pintainhos saem dos ovos?
Uma laranjada, rebuçados e bonecos da bola faziam a felicidade dum puto de quatro ou cinco anos. Botas cardadas com um bom protetor na biqueira para chutar na bola de trapos, era luxo!
Naqueles anos, últimos dos cinquenta, o alcatrão chegava à Abrunheira. Desde a Padaria até ao Largo do Chafariz, depois para cima chegando ao Ti Miguel e um restinho fraquinho (eram mais pedras que alcatrão) pelo João Tirapicos, Cigamó, Quinta de Stº António e do Olival e a seguir pedra de calçada até à estrada nacional na curva. Para baixo do Chafariz, sempre a direito até ao fim, junto à regueira do curronquinho. Aqui acabava o lugar de baixo. A seguir era o caminho para o Caracol e antes, à esquerda, o campo da bola.
Oh Mano, a Mãe ontem estava a dizer que a “Estrela” ia parir hoje ou amanhã e queria que fosse vitela.
Oh Mano, “parir” é como a Burra-Carocha a sair da Carocha-Mãe, não eh?
Quantas vitelas vão sair? É como a Carocha-Mãe ou como a Mimi?
É pá, porque não perguntas à Mãe? (
Dizia o meu Irmão)
Já perguntei e a Mãe não disse!
Descalçava as botas para ficar igual. Os putos da Abrunheira, nos últimos dos anos cinquenta, eram mais felizes se estivessem iguais. As bolas de trapos não doíam quando se chutava.
E a minha Irmã e a minha Mãe: Onde estão as meias? Deve ter sido o vento… Será que foi a Carocha?
Os putos da Abrunheira também sentem culpa por causa das meias que enrolavam umas por cima das outras até fazerem uma bola de trapos que, com rebuçados, bonecos da bola e laranjada, faziam a sua felicidade.
Nunca me saiu o boneco da bola mais difícil e também não queria ir para a escola. Naqueles dois ou três sítios do alcatrão as cardas das botas serviam de patins. Era um escorregar que dava sermão em casa. Com o calor, era brincadeira marcar as cardas e principalmente os protetores, no alcatrão. Era a nossa marca!
Então o Mano vai dizer.
Mas tens de dizer tudo!
E disse!
Os putos descobriram como é nascer uma vitela e uma Burra-Carocha!
O que eu queria mesmo era que a Burra-Carocha ficasse sempre do meu tamanho!
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Silvestre Félix


(Foto – A minha Irmã Felicidade escreveu por trás da foto: «Silvestre com a nossa burra pequenina tirada em 26 de Agosto de 1958» e escreveu o seu nome por baixo.»)


8 de Julho de 2011