segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PEIXE FRESCO, A TI AURÉLIA E O MANEL DA COLÓNIA

O Manel da Colónia, embora não o dissesse a ninguém, nem a mim, não “podia levar à paciência”, ter de levar com o cheiro de peixe, todos os dias, até ao fim da sua vida. Ainda escuro, só com o lampejo da madrugada, já a Ti Aurélia e a filha Lucinda ou Lucília, separavam o peixe trazido pelo Ti João “pexeiro”, da lota de Cascais.

Todo o santo dia, tinha que levar com aquela cena. Era de tal maneira que, pelo cheirinho, já sabia o que a Aurélia e a Lucinda ou Lucília, iam vender naquele dia.

Não tínhamos nenhuma pena dele. Que levasse com o cheiro do peixe e de todos os piores cheiros do mundo que não nos importávamos com isso. Mais cheiro, menos cheiro, a vida continuava.

Os putos como eu, não “iam à bola” com o Manel da Colónia. Não “iam à bola”, nem lhe davam a bola, porque senão…

Ali, na ponta de cima do Largo do Chafariz, longe dos gansos do Ti Veríssimo — pertinho do Ti Miguel, da nova taberna da Menina Emília, da Deolinda e do João Tirapicos, do meu Tio António e da minha Tia Espírito Santo, do Chico e da Maria Augusta, da Gina e do Zé Eduardo que comigo alinhavam, do Zé da Natália e da Natália e, claro, do Manel da Colónia — os putos, às vezes, juntavam-se a dar uns toques na bola. O homem “tinha um pó” aquela coisa redonda, que só visto. Se, na altura em que ele ia a passar, a bola estivesse ao seu alcance, ou, “por mal dos nossos pecados”, a bola fosse parar ao quintal dele, era “certo e sabido” que, inteira (a bola), nunca mais ficava. Sacava da navalha e, zás! Era uma vez, uma bola.

Indiferentes às bolas e às contrariedades dos cheiros, a peixe ou outros, a Ti Aurélia e a Lucinda ou Lucínia, (a estratégia do “ou”, vai no sentido de desculpabilizar a falta de rigor desta memória para nomes, que, em culpa direta da PDI, digo eu, está cada vez mais abandalhada) lá vão percorrendo o lugar acima e abaixo, vendendo um chicharro aqui à Maria Augusta, umas fanecas ali à Ti Estrudinhas, umas sardinhas acolá à mulher do eletricista, umas pescadinhas de rabo na boca à Ti Augusta, uns carapaus à Ti Ermelinda, e, por aí iam as duas, apregoando baixinho, que não eram mulheres de gritaria: “Olhó vivinho da costa!” E era! Pescado na nossa costa, sempre, em pouco mais de doze horas.

Como as coisas são diferentes. Hoje, se quisermos comprar peixe, será com dois, três ou mais dias desde que foi pescado, sendo português, porque se for importado, ainda pode ser mais tempo.

Há uns tempos, em troca dum “saco de lentilhas”, foram-se: a pesca, a agricultura e alguma industria média-pesada e, agora, para além de consumirmos piores produtos, temos que levar com os que nos mandaram as “lentilhas”.

Silvestre Brandão Félix
13 novembro de 2017
Foto: Peixeira (Google)
Nota: Embora baseado em factos e pessoas reais, o texto que aqui reproduzo, é ficcionado.

sábado, 11 de novembro de 2017

SÃO MARTINHO E A ÁGUA-PÉ DO PENA

Naquele onze de novembro de mil novecentos e “troca-o-passo”, o Coutinho que era Bernardino saiu do Caracol, onde morava com a Judite, com o sol ainda escondido. Tinha engolido as “sopas-de-cavalo-cansado” mais depressa que o costume, para evitar que a Judite Caracoleta metesse conversa, por antecipação ao previsível bem-bebido final de dia, que era de São Martinho.

Ele foi p’rá pedreira do Ti Miguel como de costume e, porque era “cabouqueiro e tinha a ciência da pedra” — a toda a hora o dizia e, principalmente, quando de charretes e ciganas, já estava bem aviado — tinha que, também naquele dia, honrar a profissão e arte que tanto gosto e felicidade lhe têm dado ao longo de toda a vida. 

Na ida, de manhã, entrando no alcatrão e depois do Santo António, do Espanhol e do Silvestre Velho, costumava meter à esquerda a seguir ao Rafael-Coxo, junto à casa da fruta do Pechincha, continuava juntinho ao Amigo Rio das Sesmarias e atravessava-o no sítio do costume, lá, ao fundo do caminho do Cipriano, entre a Horta do Manel Lopes e a casa do Ti Joaquim da fruta.

Mas, naquele dia, a primeira pessoa que viu foi o J’oquim Cagachuva, antes do Santo António e, no Rafael Coxo, não virou à esquerda e seguiu até ao Largo do Chafariz, desviando-se de dois gansos do Ti Veríssimo que, de pescoços esticados e bicos assanhados na direção dele vinham. Saudou o Tavinho que, àquela hora, dava água às vacas, no chafariz.

Depois, resistindo à tentação de ir dizer “bom-dia” ao Álvaro, contornou a casa do meu Tio António que, com o Chico, tinha acabado de ordenhar as ovelhas, e, quase esbarrando com a Ti Maria Ferreira, foi pela travessa do Ti Miguel passando e recebendo uma grande saudação do Guilherme barbeiro, que estava a sair de casa para ir para a sua, barbearia, em Ranholas.

Praticamente ao mesmo tempo, mas do lado direito, saía a Menina Emília, que tinha quase pronta a abrir, a nova taberna naquela esquina. Admirados também por verem o Coutinho que era Bernardino, ali aquela hora, a Ofélia e o Albino, que saiam de casa, saudaram-no com satisfação. Ao fundo, ainda cumprimentou o Ti Abílio, pai do Zé Fernando e, em passo acelerado, foi pelo caminho do Cipriano abaixo, passando em frente da travessa do Pena, à esquerda, só para sentir o cheirinho daquele delicioso líquido que, mais tarde, havia de provar.

O Coutinho que era Bernardino, cabouqueiro, e que tinha a “ciência da pedra”, não resistiu o dia todo. Ao meio-dia, já estava à porta do Pena. Para não se sentir sozinho, já lá estavam outros, ansiosos pela prova, como ele.

Entretanto, sem ter explicação para tal, a Judite Caracol (eta), só ao fim da tarde se apercebeu da especificidade daquele dia. Pois, se, nem nos dias normais o Coutinho que era Bernardino precisava de incentivos ou pretextos para meter muito vinho pela goela abaixo, como é que não o havia de fazer no dia de São Martinho?

Meteu as mãos à cabeça, disse meia-dúzia de impropérios que até o Velho Caracol se eriçou todo e, ainda de mãos na cabeça, saiu porta-fora com o lusco-fusco de novembro, bem instalado.

A dúvida do costume, baralhava o pensamento da Judite Caracol(eta); por onde ia começar?

Começou pelo Álvaro. “Como-quem-não-quer-a-coisa”, espreitou lá para dentro. Dum lado para o outro, dentro do balcão, andava o Ti Álvaro, com a caneta pendurada na orelha, via e ouvia alguns clientes, mas, de Coutinho que era Bernardino, nada! De mansinho, foi pela direita à frente do Frouxo, curvou e, logo ali, a Ti Celeste Pardal(a) com dois rebentos agarrados ao avental. Pergunta daqui e dacolá, mas despachou-se depressa e a tempo de não ter que falar à mulher do Dinisinho que vinha a sair de casa naquela altura.

Chegada ao Osvaldo ou Faial ou Ramos, fez a mesma cena do Álvaro, mas o marido continuava a não estar lá. Estava a ficar preocupada e não se lembrava da famosa água-pé do Pena. Para não ir pelo mesmo sítio, deu a volta pela curva e enfiou em direção à Quinta do Olival. Passou-a e, quando estava em frente ao Casal de Santo António, quem havia de estar logo ali a conversar; o Ti Abílio e o Sigamó. Muito admirados de verem a Judite ali, perguntaram-lhe se precisava de alguma coisa. A Judite um bocado a medo e com muita vergonha, disse-lhes que não sabia do marido.

— O Coutinho que é Bernardino?

— Sim! Quem havia de ser? Não tenho outro!

— Tá no Pena! (Disse o Ti Abílio.)

— No, Pena? Mas? Ah! Pois é! Na água-pé? (perguntou a Judite)

— Sim! Isso mesmo!

— Ai, valha-me Deus, deve estar bonito, deve!

Ainda ia a meio da travessa e já ouvia homens a falar e, entre eles, conheceu a voz do marido. Estava com medo e com muita, muita vergonha. Mas, assim que meteu a cabeça dentro da adega, recebeu logo um “Benvinda” do Pena e, olhando para trás, o Coutinho que era Bernardino, todo feliz, desatou: Chega-te cá mulher, anda cá provar estas castanhas e esta água-pé do Pena.

Para grande admiração da Judite, o Coutinho que era Bernardino, não estava a arrastar a voz nem cambaleava. Estava contente sim, mas muito afinado para um dia de São Martinho que, fosse ela muito crente, teria acreditado ser milagre do Santo. Ele depois contou-lhe que almoçou lá e continuaram sempre a petiscar. Não deu para ficar de “caixão-à-cova” como acontecia tanta vez. A água-pé do Pena era tão boa que a Judite levou uma garrafa para o Caracol Velho provar.

Por estes dias do ano, todos os abrunheirenses amantes da boa pinga, percorriam várias vezes o caminho do Cipriano, guiados pelo inigualável aroma da “água-pé” do Pena. Nesta altura, faziam jus ao provérbio popular — “No São Martinho, vai-se à adega e prova-se o vinho” — e a “água-pé” do Pena, digo eu!

Silvestre Brandão Félix
11 novembro de 2017

Foto: Lenda do S. Martinho (Google)

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A MOTORETA E O SENHOR CORREIO DE RIO DE MOURO

A motoreta era, acho, cinzenta e não tinha quadro, como as “lambretas”, sendo o depósito do combustível recuado, por debaixo do assento que era daqueles triangulares e, atrás, tinha um apoio metálico de bagagem que, o “correio” (carteiro), usava para colocar duas grandes malas de cabedal, evidentemente, uma de cada lado, ligadas uma à outra, por uma larga tira também de cabedal. As malas vinham sempre muito cheias de envelopes e pequenas encomendas, bem como o saco, igualmente de cabedal, que o “Senhor correio” trazia, à, tiracolo.  

Não tenho ideia de alguma vez ter visto o “correio” montado na motoreta. Andava com ela pela mão e ia parando à medida que distribuía as cartas, os aerogramas ou encomendas.

A central distribuidora do correio da Abrunheira era de Rio de Mouro. O “correio”, era assim que a gente se referia a ele, porque do nome não me lembro. Recordo-me sim, da cara bonacheirona do simpático senhor. Vinha com aquela farda cinzenta e conhecia todos os abrunheirenses. Sabia dos mais velhos, dos pais, dos filhos e, principalmente, dos que estavam na tropa.

Naquela época, a Abrunheira não tinha placas toponímicas logo, o Senhor “correio”, sabia onde morava toda a gente. Pelo tipo de correspondência que entregava, sabia se estava a dar boas ou más notícias.

Era ele, o tal Senhor “correio” de Rio de Mouro com cara redonda, que entregava os aerogramas enviados pelo meu Primo Chico desde a Guiné, à minha Tia Ermelinda. Se estivesse por perto, dávamos, porque sabia que era eu que os lia à minha Tia. Aerogramas, era a correspondência da “guerra”. Para facilitar a troca de notícias entre os militares na guerra colonial e os seus familiares aqui em Portugal, o regime criou os aerogramas. Era uma folha azul/cinzento em que, num dos lados, se escrevia o que queríamos e, no outro lado, nos locais já definidos, escrevia-se o destinatário e o remetente. Depois, dobravam-se em três, tinham cola como os envelopes no topo e nos lados que, molhando e apertando, colava-os e ficava tudo fechado. Abri e fechei muitos à minha Tia Ermelinda.  

Mas, o tempo em que o “correio” (carteiro) conhecia toda a gente e não deixava que nada se extraviasse, já lá vai há uns bons quarenta e muitos ou cinquenta, de tempo contado em anos.

Agora, com estes correios, a coisa fia doutra maneira. Como empresa privada que é, o grande objetivo é obtenção de lucro para dar bons dividendos aos seus investidores. Muito depois disso, vem o interesse das pessoas comuns. Bem sei que, grande parte do que era o negócio, na época acima descrita, hoje não existe, mas, duma forma geral, todo o cidadão gostaria de ser tratado como gente e, infelizmente, nem sempre acontece.

Há uns anos, começaram a surgir nos envelopes uns grandes carimbos, aconselhando à colocação dos endereços corretos, sob pena da mesma correspondência ser devolvida.

No que me tocava, a coisa mais ou menos estava controlada. Mesmo assim, ainda tinha um ou outro caso com o endereço anterior à atribuição do número de polícia ou que não indicavam o “número de bloco” e, o novíssimo excesso de zelo dos “correios”, ainda me pregaram algumas partidas com devoluções, incómodas para quem enviou e para quem nunca recebeu. É que, era tudo igual, o meu nome e tudo, mas o que querem? Faltava o bloco ou uma vírgula e confundia-se com o piso, enfim, tretas!

Também não é preciso voltar aos correios do tempo do “Senhor correio de Rio de Mouro” e a sua motoreta, mas, que raio, um bocadinho de bom senso, não faz mal a ninguém.

Silvestre Brandão Félix
6 novembro de 2017

Fotos: Carteiro (Google)

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

MILITAR ME FIZERAM, O IMPÉRIO E A VANGUARDA ABRUNHEIRENSE

Verão quente ficou e PREC se chamou! Militar me fizeram, a contragosto, por princípio, e porque o “império” ainda durava.

— “Ai! Ai! Eles andem aí!” Gritava o mais gordinho do pelotão, enquanto, dobrado para trás na medida em que a farta barriga o permitia, mirava os céus tentando descortinar algum avião, daqueles que tinham disparado sobre o RALIS naquele dia onze de março.

Aqueles dois ou três dias a seguir, foram de alerta constante e pretexto para me entregarem uma arma, descarregada, mas era uma arma na mesma.

Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia da minha festa de despedida de mancebo, no dia dois, véspera de “assentar-praça”. Também não me esquecia das juras de amor, ou nem por isso, e das voltas que o estômago e as tripas deram naquela noite. A última vez que “chamei-pelo-gregório”, já o comboio, na Estação do Cacém, estava pronto para partir. Pelo “Oeste” acima, sono não me faltou e, como o destino era o fim-de-linha, não havia problema.

Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia dos projetos para o desenvolvimento da nossa URCA, fundada três meses antes na velha “sociedade”.

Uns tempos depois, na terça-feira da semana das primeiras eleições democráticas, que seriam na quinta-feira seguinte, a 25 de abril, a carta que recebi encaminhava a URCA para a “quinta do João da batata”.

“João da batata”? Perguntava eu. Fiquei muito confuso com o “puzzle” que — o C. Silva e a Celeste, o Zé e o Fernando, a Fernanda, a Catarina e o Zé, a Gina e o Zé, a Cristina e o Zé, a Odete e o Joaquim, o outro Zé Alentejano, o Mário e Paulo, o Tomás, o João da borracha, o Luís Mariano, Pombo I, o II e o III, o Zé Nascimento e o António, o Chico, o Vicente, o Virgílio e o Eleutério, o Zé Manel outros e outras que a memória atrapalha, mas que estão cá bem arrumados e considerados — me enviaram, mas, como vim votar na Abrunheira, a vinte e quatro à noite, descobri tudo.

Para muitos anos e eleições sem “senhas-de-presença”, foi o único que não participei nas mesas. Depois, deixou de ser dever cívico e passou a ser trabalho pago, até hoje.

A atividade cultural tinha sido o “nosso-nascimento” e, depois, com outras possibilidades, outros espaços e condições, a função social mobilizava outra parte de nós. O grande objetivo passou a ser a construção dum “Centro Social” que, para além da URCA, criaria estruturas de apoio à infância e à terceira-idade e desenvolveria diligências para a instalação duma extensão do Centro de Saúde de Sintra.

E eu, marchava, marchava… com algumas intermitências. No meio do quente de setenta e cinco, para Luanda me mandaram com destino certo, mas como?? Se; “nem-mais-um-soldado-para-as-colónias” e, assim, não fui!

E eu, marchava… embora menos, mas marchava. Finalmente liberto com mais duzentos e passaporte nas mãos, lá para 27 ou 28 de novembro com os “roncos” dos “jaimites” à volta, já o verão tinha acabado há uns meses, mas, nem por isso, foram dias muito “quentes”.

Todas as vontades se juntavam na URCA. Entre a construção do pavilhão e a realização dos famosos “bailaricos”, tudo o resto se ia fazendo. “Até à Libertação”, “Menino Tonecas”, “barbeiro sabichão” e, noutro “departamento”, folclore, marchas e marchinhas para graúdos e minorcas, com telhado “Ramalho” e muitas outras coisas “António-da-Estância”, inauguração feita no dezoito do glorioso mês de abril de setenta e seis.

Da vanguarda abrunheirense no princípio do último quartel do século XX, a caminho do fim do primeiro do XXI, em que patamar estamos?

As perguntas fazem-se para terem respostas, mas, às vezes, ficam sem resposta.



Silvestre Brandão Félix
3 novembro de 2017
Fotos dos meus arrumos: 1 – Tropa 1975, 2 + 3 – Inauguração do pavilhão da URCA 18 abril 1976

P.S. (Se me ajudarem a identificar o(a)s fotografada(o)s, coloco-as com os nomes)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

PÃO-POR-DEUS!

Grupos de miúdos e miúdas, “lugar” abaixo, “lugar” acima, carregando as suas sacolas, sacos de pão e outros, poucos, feitos pelas mães de propósito para aquele dia, batendo às portas e pedindo:

— PÃO-POR-DEUS!

A porta se abria e lá vinham, conforme as posses, as mais variadas guloseimas como, rebuçados, caramelos, fruta, bolachas, biscoitos, figos secos, nozes, amêndoas, amendoins e, às vezes, chocolates.

Hoje, também me cruzei com espigadotes rapazes e raparigas, batendo às portas e outros mais pequenos com as mães e os pais por perto, mas, para muitos dos meninos e meninas da Abrunheira de há cinquenta e muitos de tempo contado em anos, o dia do “Pão-por-Deus”, era o único em que provavam algumas daquelas coisas e, noutros casos, o dia em que a fome não os visitava.

Agora, as “catedrais” do consumo, construídas e oferecidas às classes médias, para, que, aí gastem o que ganharam em dias inteiros e acrescentados de “bancos-de-horas” infinitos, oferecendo aos seus meninos e meninas, usos e costumes importados que vão substituindo as nossas recordações e engordando os “fundos” dos que não têm rosto e, muito menos, morada certa.

Nestes últimos dias, fomos bombardeados com máscaras e mascarilhas, bruxas e bruxinhas, abóboras furadas e iluminadas, varões e varinhas que transformam o real em fantasia, mas, o que continua sendo muito verdade, são a míngua das contas bancárias e o saldo do cartão de crédito.

Silvestre Brandão Félix
1 novembro de 2017

Foto: Google

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

AZENHA, CAPA ROTA, MANIQUE DE CIMA E NOSSA SRA DA AFLIÇÃO

“Por-esse-caminho-abaixo”, em pouco menos de mil metros e um quarto d’hora depois, estávamos na Capa Rota. A saca cheia de milho ou trigo, conforme a altura do ano e necessidade da minha mãe, ia no “lombo” da Carocha em cima da albarda onde, na volta, se ela para aí estivesse disposta, eu viria encavalitado, devidamente “monitorizado” pela Ti Augusta, claro. O Ti Sebastião já sabia, pelo costume, como é que a minha mãe queria a farinha e, assim, ajustava as distâncias e apertos da “maquinaria” da sua azenha, para as mós fazerem o trabalho a contento.

Como acontecia noutros locais, a Carocha não gostava de ir à Azenha da Capa Rota. O Ti Sebastião tinha um burro que, como bom macho que era, assim que sentia a Carocha, não mais sossegava. Nunca calhou, que eu percebesse, irmos lá estando ela com o cio. Por isso, enquanto o burro do moleiro zurrava que nem um desalmado e uma “manga” lhe saia do meio da barriga em direção ao chão, a Carocha guinchava, puxava e fazia força para irmos embora porque não lhe interessava nem estava recetiva ao “galanteio” do outro.

Ao contrário da Carocha, sempre gostei muito daquele sítio. A última vez que lá fui, há muito tempo em anos contado, talvez em funções autárquicas, já não estava o Ti Sebastião, mas o “Casal da Azenha” ainda era da família, situação que, desconheço, se mantêm.

Perguntar-me-ão:

— Então, mas nos teus escritos tens de falar sempre da burra Carocha?

E eu respondo:

— Nem sempre, mas se escrevo sobre a época a partir da meia-dúzia de tempo de idade em anos contado, até dez ou onze do mesmo tempo, é quase certo que a Carocha entra na estória. Ou seja, não fiquem impacientes porque muitas mais vezes, esta Carocha-filha, que de burra não tinha nada, será personagem dos meus contos.

Continuando por “esses-caminhos-abaixo”.

Desde o fundo da Abrunheira, onde eu estou agora, na direção da Capa Rota e Manique, havia dois caminhos que, neste momento, estão irreconhecíveis e, pelo menos um, o que desembocava na estrada ao lado do Rio das Sesmarias, “privatizado” há muito tempo. O contacto entre a população da Abrunheira, a Capa Rota e Manique de Cima, era permanente. Por isso, a existência de caminhos abertos e de serventia, era real e de uso frequente ao longo dos dias, por quem trabalhava para os empregadores da Abrunheira e morava em Manique ou ao contrário.

A ligação entre as duas “Terras” e o uso dos caminhos, era, tão normal, que, na época do meu pai, (décadas de 30/40 e talvez começo da de 50, do século XX) parte considerável da Comissão de Festas em honra da Nossa Senhora da Aflição da Capela de Manique de Cima, era constituída por habitantes da Abrunheira. Digamos que, o lugar de culta católico dos abrunhenses, até final da primeira metade do século XX, era a Capela de Manique e a Nossa Senhora da Aflição.

Esta relação entre a Abrunheira e Manique de Cima vai, a pouco-e-pouco, desaparecendo. Penso que, muito “por-conta” do início das carreiras da “Palhinha”, com a ligação pela estrada alcatroada, através do “Casal-da-Peça” e Albarraque e paragem um bocadinho mais à frente, de onde é hoje, o Café Brasil.

Nem o nosso bem conhecido Coutinho que era Bernardino, que muito usava esses caminhos em trabalho, conseguiu garantir a sua continuidade. Podia ser que o chamasse, o fervor religioso, mas também não era por aí. É que, desde a sua casa e da Judite na “Quintinha” do velho Caracol, que emprestava o nome à zona, a distância até Manique de Cima não seria muito diferente do que ir à procura duma “cigana” ou “charrete”, em cima do balcão do Osvaldo ou do Faial, ao lado da Padaria. Só que, no Lugar-de-Cima, havia mais tabernas e, assim, dava para variar. Gostava muito de ir à “Menina-Emília”. Sentia-se perto do Ti Miguel e, como tinha a “ciência-da-pedra” como tanto gostava de dizer, principalmente quando já tinha o “bandulho” remediado de vinhaça, o homem e a filha, aproximavam-no da pedreira onde passava tantos dias da sua vida. 

A propósito do Ti Caracol, pai da Judite, mulher e cuidadora do Bernardino que não era Coutinho, tenho pena que, da memória abrunhense, também se tenha ido. Na verdade, para além da pessoa simples que era, “cachimbeiro” de vício e hortelão do seu quinhão, o apelido “Caracol” identificava aquela zona da Abrunheira. Havia outros moradores: A Quinta do Zambujeiro (que ainda existe) dum lado, a Quintinha do Azevino (também ainda existe), o Peixoto, etc., etc., mas, quando se queria identificar a zona, por exemplo, se alguém perguntava; onde é que mora o Azevino ou o Peixoto? A resposta saía mais ou menos assim; é lá p’ró Caracol!

No lugar da sua quintinha, foram construídos edifícios modernos onde residem muitos abrunhenses novos. O Condomínio não tem nenhuma referência ao Velho Caracol como, aliás, é normal, mas, considerando a importância do nome, num passado não muito distante, ficaria muito contente e feliz, assim como muitos outros abrunhenses se, numa próxima escolha para atribuição toponímica nesta zona, fosse considerado homenageável, este destacado abrunhense.

Por aqui, pelo “Caracol”, se calcorreava por entre as silvas de amoras coloridas e carrascos de bolotas cheios, para chegarmos a Manique num estantinho.

Quem me dera, hoje, quando quero ir a Manique ou para aqueles lados, por exemplo, ao Cascais Shoppping, ao Autódromo, a Cascais, Estoril, etc., poder fazer o mesmo caminho de carro, que há mais de meio-século fazia com a Carocha, e num minuto estar na Capa Rota, em vez de ter de dar a volta por Albarraque e Casal da Peça, três quilómetros e sete ou oito minutos depois. 


Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2017

Fotos: 1 – Eu e a Carocha-Filha, ainda bebé. 2 – Capela Nª Srª da Aflição em Manique de Cima (Google)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

COBRAS DOS BARROS, ABRUNHEIRA NORTE E OS CLANDESTINOS

Quando a minha mãe dizia que íamos aos “barros” apanhar erva, ficava todo contente por duas razões: Porque “íamos-por-esses-caminhos-acima” como se fossemos para Ranholas, para o mercado de São Pedro ou para a “Serra” e era a “Carocha” que, depois da difícil trabalheira a aparelhá-la à carroça, nos levava, voando por cima de tudo quanto era “caminho-de-cabras”, até lá chegarmos. Depois, na volta, era muito mais difícil. A carroça vinha carregada de molhos de erva e nós, a pé. Para evitarmos que a “Carocha” voasse e a erva caísse no chão, a minha mãe punha-se à frente dela com a arreata muito curta, comigo ao lado e, assim, ela vinha com calma.

Aquela vontade de correr com a carroça atrelada, acho que era a forma de protestar por lhe estarmos a pôr coisas em cima e, por outro lado, correndo, o “sofrimento”, acabava mais depressa.

O terreno que se chamava “barros”, localizava-se ali para as bandas onde viria a ser construída a “Impala”. Se não era mesmo, andava lá perto. Não me lembro se era de “renda” ou do meu avô. Sei que, certa altura do ano, ia lá com a minha mãe, algumas vezes.

Lembro-me especialmente de uma ida lá, com o Zé Augusto. Como era mais crescido e mais forte que eu, naquele dia, foi ele a ajudar a minha mãe a levantar os molhos de erva para os pôr à cabeça, e levá-los até à carroça. Quando ele empurrava um molho para a cabeça da minha mãe, uma cobra, que a mim me pareceu grande, escorregou pelo molho. O Zé Augusto, que tinha sempre um “apetite” especial por estas coisas, não deixou a cobra cair no chão, conseguindo agarrá-la, acho que pelo rabo, deu-lhe duas voltas no ar, como se estivesse a atirar um laço de corda, e largou-a. Com o balanço, a cobra foi cair distante. Ele ainda lá foi, mas nem a cobra, nem rasto. A Ti Augusta, não se apercebeu de nada. Só mais tarde lhe contamos. Ela, meio a rir meio surpresa, ainda ralhou connosco. A minha mãe, duma forma geral, não tinha medo dos “bicharocos”, mas, das cobras e salamandras (pretas e amarelas), tinha muito.

Logo após as primeiras chuvas, a alimentação das vacas era reforçada com a erva que, entretanto, crescia. Duas ou três vezes por semana, lá andávamos com a “Carocha”, na “cena” da erva fresquinha e, muitas vezes, bem molhada. Íamos a vários “terrenos” do meu avô, sempre à volta da Abrunheira. Muitos desses locais, fazem hoje parte da área ocupada pelo condomínio privado “Quinta da Beloura”. Muitos outros, dos nomes que tinham, são hoje bairros da Abrunheira. Por exemplo: Sesmarias, Colónia, Carrascal, Maçarocas ou Arroteia. Infelizmente, alguns destes bairros, continuam por legalizar. Continuam, abusiva e inexplicavelmente, a chamar-lhes “bairros-clandestinos”. É frequente vermos ruas sem nome e, em vez disso, e por necessidade de identificar determinado endereço, colocaram-lhes placas com números.

Passaram muitas décadas, desde que eu e a minha mãe, deixamos de cortar erva para as nossas vacas, nesses locais, porque começavam a ser construídas as primeiras casas.

É inaceitável e vergonhoso que alguns, ou parte destes bairros, continuem por legalizar.

Cheguei a pensar, que o anúncio dum grande projeto aparecido há dois ou três anos chamado “Abrunheira-Norte”, e que previa, como contrapartida, a legalização dos “clandestinos” Bairros da Colónia e, ou Sesmarias, iria ser o começo da resolução de outras situações idênticas e que, finalmente, começaríamos a ver toda a área urbana da Abrunheira, à luz dos poderes instituídos, legalmente considerada e melhorada. Mas, não! Do falatório e assembleias iniciais que sugeriram algumas alterações ao projeto, passou-se a um silêncio ensurdecedor.

É claro que não quero voltar ao tempo em que ia com a minha mãe e a “Carocha” aos “Barros”, à “Arroteia”, às “Maçarocas” ou aos “Celões”, apanhar erva para as vaquinhas.

Gostaria sim, de ver, ações eficazes, envolvendo projetos privados ou públicos, que asfaltassem as ruas destes “Bairros” e as identificassem, colocassem as infraestruturas subterrâneas ou de superfície e que, duma forma geral e em definitivo, melhorassem a qualidade de vida dos seus moradores, que são pagantes dos respetivos impostos, (embora clandestinos) e, por fim, legalizassem as suas ruas e as suas casas que são parte integrante da Abrunheira. 

Será que este novo fôlego autárquico, nos vai brindar com soluções para este (mau) estado de coisas? Ontem, na tomada de posse dos eleitos para a Assembleia e Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sintra, o Presidente do Órgão Executivo, Fernando Pereira, referiu-se à questão aqui abordada, como fazendo parte das suas prioridades para o mandato agora iniciado. Assim declarado, acreditamos que tudo o que estiver ao seu alcance fará, para que o problema seja resolvido.

Já agora, mais uma curiosidade; perante a minha insistência em perguntar à minha mãe, donde raio vinha aquele nome de “barros”, um dia, não sabendo mais o que me dizer, explicou-me que tinha aquele nome porque a terra era como se fosse barro. Eu fiquei convencido. Porém, quando eu era mais espigadote, confessou-me que, na verdade, não sabia e nunca ninguém lhe tinha explicado porque o terreno tinha aquele nome, mas, confrontada com a minha pergunta e como não gostava de me deixar sem resposta, atirou-me com aquela que, por acaso, até tinha alguma lógica, porque a terra era, na verdade, muito consistente como é o barro.

Nunca soubemos se a razão do nome seria mesmo essa, mas, ainda assim, a Ti Augusta, achou que devia justificar-se comigo.

Era, era não! É a melhor mãe! Porque todos os dias me ajuda a ir em frente.

Silvestre Brandão Félix
23 de outubro de 2017
Foto: Plano ou projeto publicado pela C.M. Sintra. para “Abrunheira-Norte” (Google)