terça-feira, 19 de agosto de 2014

MALDITA CORVINA!

Jardim do Bairro da Colónia - Silvestre - 1973
Em tempo passado, corrido e contado em anos, irão, pelo menos, uns quarenta e um. É verdade, ainda vivíamos no regime do “botas” que já não era, embora, na fase final duma “primavera” que nunca chegou a ser. Mil novecentos e setenta e três, derradeiros anos do terceiro quartel do já longínquo século vinte. No ano anterior – setenta e dois – tinham acontecido os Olímpicos de Munique e, por isso, por esses caminhos acima até ao “novoBairro da Colónia, levei o meu rádio, gravador e leitor de cassetes pirata e sem serem, dentro do saquinho branco com o símbolo olímpico e escrito “Munique “72”.

Quem vai por esses caminhos acima também vem por esses caminhos abaixo. Realmente vim, mas depois de muita “praga” ter atirado à corvina. Sim, corvina! Aquele peixe muito bom que, nos últimos tempos, anda fugido das nossas peixarias. Em setenta e três do século passado – ano do III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro que a PIDE-DGS desavergonhadamente invadiu – penso que por volta de Abril, o Caravaca-PaiGuarda prisional dos antigos – desafiou alguns amigos do Caravaca-filho para se fazer a “folha” a uma cabeçorra de corvina cozida. E então lá fui por aí acima com os do costume, estrear a casa nova do Caravaca que, até aí, morava, como muitos outros guardas prisionais da Colónia, na Abrunheira, junto ao Chico Cobeca, no início da Travessa do Norte.

Maldita corvina!” Então, não é que, com o que lhe juntei de bebida, talvez vinho branco ou verde-branco fresco, armou um sarilho alcoólico-intestinal que me ia desfazendo todo em vómito e diarreia como nunca antes nem depois experimentara. “Maldita corvina” foi o que mais repeti cambaleando no bonito jardim e boca d’água do “Novo bairro da Colónia” de mil novecentos e setenta e três quando, ainda, a dois passos do Chiado, a PIDE-DGS torturava o operário, a doméstica ou o intelectual, só porque a linha de pensamento divergia e eu, duma “janela dum terceiro andar” que, com o Tejo como espelho, conseguia ver todo o mundo pelo lado dos dezoito anos que nunca mais voltaram. 

Desde essa época, em anos o tempo conta quarenta e um e, pelo menos, durante metade, quando pelos caminhos acima ou abaixo, vamos ou vimos pela Colónia – sempre com muito cuidado como a minha querida Mãe dizia quando, em tempo contado para trás em anos seriam dez, onze ou doze e me deixava conduzir pela burra Carocha, pela ternurenta vaca Bonita, pela Marcina, pela Estrela e por outras que os nomes voltavam por passarem de mães leiteiras e parideiras para vitelas filhas e criadas com tanto amor pela Ti Augusta, que muita tristeza se abatia lá por casa quando o destino se cumpria e o Fachadas ou outro qualquer comprador se abeirava e carregava o animal – revolve-me o estomago mas não por causa da “corvina” nem do branco maduro ou verde fresco. O “Bairro da Colónia” está velho e abandonado de manutenção e arranjos básicos. As velhas moradias, por exemplo a do “guardaVicente, há muito que “desistiram” e telhados ou paredes se deixaram cair, os prédios – como o do Caravaca – de mil novecentos e setenta e dois e setenta e três, vão pelo mesmo caminho se não lhe puserem “a mão” rapidamente.

O antes “novo” e agora “velhoBairro da Colónia, está como este País, a cair aos bocados no meio duma revolta estomacal só que, agora, a culpa não é da “maldita corvina”, mas sim, da

“Maldita corja!”


Silvestre Félix

terça-feira, 22 de julho de 2014

CALCORREANDO

Muito calcorreávamos as ruas da nossa Terra porque de máquinas andantes ainda nem o inferno estava cheio, quanto mais o céu. Mesmo as bicicletas só chegavam a bolsos mais aconchegados. O alcatrão ainda era pouco porque as ruas, a principal e as outras, «nos dedos duma mão, bem cabiam»! O caminho era negro desde a entrada, à padaria, em direção ao Chafariz e um pouco mais “ralo” (via-se mais pedras que alcatrão) no largo até à menina Emília, pelo Sigamó até ao Olival. Daí para cima até à estrada na curva, era calçada à portuguesa um bocado mal- amanhada. Para baixo do Chafariz, pela principal, o alcatrão era melhor até acabar a seguir à curva do Ti Faneca. Até onde vai a lembradura desta descrição, o “Curronquinho” ainda não tinha alcatrão e muito menos vivendas. Era o caminho mais apetitoso para calcorrear. Tinha sempre uma erva muito rentinha, parecia relva plantada. Da curva até ao nosso castelo em ruinas era sempre relvinha fofa. Esta fortaleza, onde espadeirávamos horas a fio, estava um bocadinho a seguir, onde muito tempo depois, com a construção do bairro, havia de ser plantado o “nosso” café – primeiro do Ramos e depois do Cabaço.

Também de relvinha fofa calcorreava, com o Zé Fernando, Zé Augusto, Rui, Fernando Pedroso, Filomeno e, se calhar, com mais outros que a minha memória negligenciou no ficheiro do tempo, aquela que era azinhaga desde a esquina da casa da fruta do “Pechincha”, junto ao Rio das Sesmarias, até ao passadouro para o lado da pedreira do Ti Miguel. Onde agora, na segunda década deste desgraçado século XXI, existe uma ponte, O das Sesmarias autorizava que o atravessássemos colocando os andantes nas pedras altas que, uma-a-uma, nos levada à outra margem. Muitas vezes, pela relvinha, calcorreávamos com os nossos “carrinhos-de-arame”, para desembocar, não no Rio, mas subindo à direita até à oficina (dos carrinhos-de-arame) do Zé Fernando. Aí, reparávamos todas as avarias endireitando as rodas e reforçando as ligações ao eixo de direção que era uma cana bem comprida que levava o volante até à altura do condutor. Também na oficina preparávamos os atrelados que, quase sempre, derivavam de “dignas” e, antes, nutritivas latas de conservas nacionais. Naquela época, já de arreliados dias bélicos pelas colónias e onde, irmãos ou primos mais velhos, por obrigação, guerreavam a mando do salazarento regime, as conservas eram sempre nacionais. Não carecia de verificarmos a origem do atum, da sardinha ou das enchovas. Não corríamos o risco de utilizarmos atrelados que tivessem vindo dos “nuestros hermanos”, como agora, neste desgraçado século XXI que já vai na segunda década e onde, cada vez mais, sinto inglórias as grandes batalhas nos céus da Europa em guerra, protagonizadas (do lado dos que aprendi a serem os bons nos muitos “quadradinhos” que devorei) pelo Major Alvega. 

Muito andávamos a pé e, alguns de nós, “dos putos”, literalmente. Nem todos tinham o “privilégio” de poder usar, nos pés; botas, sapatos ou, simplesmente, chinelos. Calçados ou descalços lá calcorreávamos os caminhos da Abrunheira, juntos ou sozinhos, com a maior das naturalidades. Os calçados, para trabalho dos sapateiros que, cá na Terra, eram verdadeiros artistas. Não contando com outros também famosos que já não eram, que deles se dizia e eu ouvia «tivessem a alma em descanso» como o “Sapateiro de Manique” porque era de Manique, claro está! Muitos contos (de histórias, não de dinheiro) me narraram deste sapateiro que por companhia tinha o “Cabeço de Manique” e que, para além de amanhar botas e outro calçado, também tinha rebanho de ovelhas que lhe completava o rendimento no leite, lã e na feitura de eiras para debulha de cereais durante o verão. Por isso mesmo, o Silvestre Velho não prescindia da sua vinda. “Velho” no meu avô não era nome, era da idade e dos cabelos e bigode brancos. Os filhos homens que com ele andavam na lida do campo e os que por outras bandas se governavam, eram conhecidos pelo nome próprio mais o do pai que, assim, funcionava como alcunha, sendo que, quando se referiam ao verdadeiro Silvestre, acrescentavam o “Velho” para não se confundir com os filhos.

Ainda na onda dos sapateiros, outros havia que a alcunha não tinha nada a ver com o nome do pai ou avô, como o Ti J’aquim (Cagachuva), mas decerto com outras circunstâncias nada simpáticas para o simples olfato de qualquer abrunhense. Bom artista de calçado e muito bom contador de histórias. Sempre as ouvia com gosto mesmo sendo uma segunda, terceira ou décima vez contada. É assim como aqueles filmes que vemos vezes sem conta, e sempre gostamos como se, de primeira, sempre seja. Outro artista sapateiro havia, que se foi deste mundo há bem pouco tempo já neste desgraçado século vinte e um. O Zé Celorico, como a minha Mãe lhe chamava porque veio de Celorico da Beira. Com o Ti Zé partilhei labuta – a minha primeira na condição de assalariado. Na Atil, que já não é, eu e muitos rapazes da minha idade, na dita, com catorze de tempo contado em anos – um puto, aprendíamos a disciplina e as agruras do operariado. Não é do meu “ser”, nem teria razões para me queixar. Era bem tratado e por lá, na secção de pintura, o Ti Zé Celorico pintava tudo o que de embelezamento precisava.

A adesão à classe trabalhadora naquela altura foi por vontade própria, porque, acreditava, a alternativa estudantina, para mim, era bem mais dura. A Ti Augusta fez tudo o que lhe estava ao alcance para me convencer do contrário, mesmo sofrendo todos os dias com o meu começo de jornada desde a Abrunheira até ao Cacém…

“Escuro, mas muito escuro e a chuva caía às dez para as seis da manhã como já caía às dez da noite de ontem.
— Não filho, assim não! Descalça lá os botins primeiro! Isso! Põe o pé aqui no banco. A Mãe vai enrolar o jornal nas tuas pernas para não ficares com frio. Já podes calçar este botim. Agora a outra perna, põe aqui o pé! Isso! Assim ficas mais quentinho!
— Oh Mãe! Deixo ficar assim, todo o dia?
— Sim! Não tires antes de chegares a casa!
— Com a saca bem presa à cintura, não molhas as pernas! Segura bem o chapéu-de- chuva junto à cabeça. Quando vires a camioneta a chegar, desatas o cordel e deitas a saca fora!
— Tá bem Mãe, até logo!  
— Tem cuidado, vai sempre p’la beirinha e olha bem quando atravessares para os “plásticos”. Dá cá um beijinho!

A chuva caía sempre! Gostava mais de ir pelos eucaliptos até à Charneca, embora mais longe e descampado, porque pela quinta “Lavi” até aos “plásticos” era muito escuro e no pinhal parecia que estava sempre lá alguém escondido…tinha medo! Os botins pesavam e chapinhavam na água acumulada. A camioneta do “Eduardo Jorge”, muito amarelinha, passava às seis e vinte da manhã. Quando entrava às oito no Cacém, não tinha outra hipótese. E os botins frios e pesados. E a professora de Matemática… que raio de lembrança. Corredores, escola velha, escola nova, oficinas, recreio e sandes de mortadela no Ti Rodrigues com sobremesa de cigarrito a dois, cinco tostões. O fulano da “Mocidade Portuguesa”, o “chefe de castelo” ou lá o que era, não nos largava. Insistia comigo e com outros para não faltarmos no sábado. Desde que o tipo me obrigou a marchar sozinho, nunca mais lá pus os pés. Andavam sempre a dizer que contava para a “nota” mas era mentira.”

Calcorreando uma vida inteira por esses caminhos. Chegados ao largo, que pode ter “Chafariz” ou não, que deveria ter todas as saídas embelezadas e de piso direitinho sem pretextos para tropeções, deparamo-nos com um muro fechado a toda a volta e, na maior parte das vezes, a azinhaga donde viemos também se fecha atrás. 

É urgente encontrar uma brecha no muro para continuarmos o “calcorreamento”. Tem de haver uma falha!

— O que achas oh Bernardino que não és Coutinho? Consegues guiar-me para esburacar a parede? (pergunta de picareta – ferramenta da caixa do Coutinho que era Bernardino)
— Acho que sim! (diz o Coutinho que era Bernardino). Com a minha força delegada em competência, pelo povo da nossa “Terra”, e com toda a “ciência da pedra”, arte minha aperfeiçoada em muito tempo de anos contado, e com a tua rijeza de bom ferro fundido em forja bem quentinha, vou conseguir enfiar-te pelo muro dentro e encontrar uma saída, mesmo que seja muito estreita!

Silvestre Félix

(Factos e outros não, ficcionados na minha onda incluindo alguns nomes reais e outros inventados.)


22 de Julho de 2014  

sábado, 18 de janeiro de 2014

IGREJA DA ABRUNHEIRA

Depois de tantas décadas de esperança, tornada, muitas vezes, conformismo e descrença para uma população despida de qualidade de vida e sempre ouvindo, ao correr dos ciclos políticos, promessas que nunca serão alcançadas, a verdade e a realidade não é facilmente digerível.

No caso da Igreja da Abrunheira, como se pode constatar, a verdade venceu e a construção já vai em bom ritmo.

Pelo que se sabe, esta primeira fase inclui, entre outras valências, a “capela” mortuária que tanta falta faz à população da Abrunheira em geral.

Para que a Igreja de Santo António possa ser concluída é preciso muito dinheiro e a campanha de angariação de fundos, continua. Fez saber, a Comissão Pró-construção da Igreja da Abrunheira, que este domingo, dia 19 pelas 13h, vai haver mais um almoço no pavilhão da URCA com o fim de juntar mais uns trocos e nas mesmas condições dos anteriores.

A este propósito escrevi, lá pelos idos de 2007, o seguinte:

… Sesmarias – O Rio, de sua natureza intemporal, todas as vezes que o leito corria cheio, não se cansava de gritar “aos sete ventos” – para o caso tanto faz que sejam sete, oito ou uma dúzia, que muita gente a Abrunheira tinha – “por quem os sinos haviam de dobrar”! Note-se e escreva-se que o narrador nunca lhe disse que a história titulada “Por quem os sinos dobram”, dito muito parecido com o repetido pelo Sesmarias – O Rio, após cada bátega de chuva, havia sido inventada, publicada em livro e mostrada em cinema por um americano chamado Ernesto – O Hemingway, há largo tempo contado em anos. Os invernos e verões foram correndo até que, numa manhã solarenga de março, Coutinho – O Bernardino de bornal carregado, preparando-se para fazer a travessia para o lado da pedreira do Ti Miguel, mais uma vez, ouviu Sesmarias – O Rio, gemer de tanto prometer que “os sinos haviam de dobrar” na Abrunheira.
Promessas são promessas e, naquela época, a honra comia-se a todas as refeições e até na cama do promitente dormia, sendo que, duma vez por todas, Coutinho – O Bernardino enchendo-se de coragem, perguntou ao Rio:
 – Ouve lá oh Sesmarias. Mas então, como é que “os sinos hão de dobrar”, se nem campanário e muito menos Igreja, cá existe?
 – Pois então oh Coutinho – O Bernardino, nem parece teu, tanta interrogação. Não foste tu e o Sacadura – O Francisco Borrego que juntaram duas dúzias de tábuas e trancos de abrunheiros com chapas de bidons ao meio cortados e se atiraram abaixo do zambujeiro mais alto que na Abrunheira havia? E foi porquê? Porque acreditaram muito, ser possível voar assim, até ao Brasil.
 – Eu, Rio – O Sesmarias, nunca te enganei oh Coutinho que és Bernardino e que tens a “ciência da pedra” – é preciso acreditar muito para que, um dia, na Abrunheira, “os sinos dobrem” num altaneiro campanário de santa igreja construída. …

(parte de texto “Ciência da Pedra” da minha autoria, escrito em 2007)

Neste caso, da Igreja de Santo António na Abrunheira, foi essencial acreditar-se muito e resultou mas, infelizmente, mesmo que Sesmarias – O Rio, o garanta, nem sempre assim acontece.


 Silvestre Félix

domingo, 8 de dezembro de 2013

HINO À VIDA!


 – Oh filho, quando fores por esses caminhos acima tens de olhar bem lá para a frente e, ao mesmo tempo, deves ter sempre muito cuidado com quem pode vir atrás…
Primeiro atravessava o das Sesmarias e depois, lá mais acima, a regueira da mulata. As vaquitas e, na maior parte das vezes a Carocha que de burra tinha pouco, tinham a dianteira que bem sabiam o destino largo dos Celões. Entravam sem engano na ponta de baixo à esquerda e nunca tiveram a ousadia de seguir em frente em direção ao Linhó.
Por esses caminhos acima… os degraus da vida, de que a Minha Mãe sempre me falava. As Mães da Abrunheira eram iguais às outras. Todas eram as melhores para cada um dos putos abrunhenses e eu não era exceção – Não havia Mãe melhor, que a Minha! Estava sempre disponível para me ensinar mais um degrau e, muitas das vezes, com exemplos da sua vida cheia e rica de labuta pela família e futuro dos filhos. Tanto tempo contado em anos passados, não são poucas as vezes que uso e pratico os seus ensinamentos.
No tempo que passo em horas, dias e anos, teclando escritos fluidos da parte arrumada da memória, e sendo Abrunheira a temática, é certo e sabido que nas subidas e descidas das mais variadas personagens pelo palco, nas falas e deixas que compõem o nosso teatro, lá está sempre com o seu papel bem estudado, a Minha Mãe! Algumas das perguntas e respostas, frases soltas e coladas dos nossos diálogos, aparecem, de quando em vez, nas minhas “postagens” ou, simplesmente, em rascunhos que por aqui vão ficando.
 – Oh Mãe, os Índios são todos maus e os cowboys são os bons?
 – Não filho! Há bons e maus nos dois lados!
 – Oh Mãe, mas nos “quadradinhos”, escrevem que os Índios é que são os maus…
 – Eu sei filho, mas os que escrevem também podem estar enganados…
 – Mas naquele filme que eu vi na “sociedade” à noite com a Felicidade e o Alfredo, eles também diziam que os bons eram os tropas e os maus, os Índios…
 – Está bem filho, mas quem faz os filmes também se pode enganar. Quando fores maior vais perceber melhor…
 – Oh Mãe, quando eu for grande também vou para a tropa?
 – Vais, todos os homens vão à tropa!
 – Mas oh Mãe, eu não gosto da tropa nem da guerra… quando for para a tropa também tenho que ir para a guerra?
 – Não filho! Ainda faltam muitos anos para ires para a tropa e, quando fores, a guerra já acabou!
 – Oh Mãe, na Guerra das Áfricas os “Magalas” também morrem como naqueles livros aos “quadradinhos” da Guerra dos alemães e do Major Alvega?
 – Oh Filho, tens de ter muito cuidado para ninguém ouvir esta conversa. Vê lá se está aí alguém desse lado.
 – Não Mãe, aqui não está ninguém!
 – A Mãe também não gosta da tropa nem da guerra, mas não digas isto a ninguém porque os que dizem que são bons, podem vir fazer mal à gente…
A "Ti Augusta" desfazia-se em lágrimas, cada vez que tinha, por qualquer razão, de desfazer-se de alguma das suas bichinhas – ajudava-as a nascer, criava-as, aliviava-as da pressão do primeiro úbere cheio festejando a transformação em leite, acompanhava o primeiro cio com o cuidado que a situação requeria e, para fecho de ciclo, tratava-as e preparava-as para a função de mães, recomeçando tudo outra vez.
A Minha Mãe era um hino à vida. Hoje, a melhor Mãe do mundo, não me sai do pensamento…
Silvestre Félix

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARTA FEIRA DE CINZAS


Ainda os guinchos e uivos da pesarosa viúva não se ouviam e já no Largo do Chafariz, pronta para, em chamas, devorar o “bacalhau-morto”, estava a lenha trazida de propósito para o derradeiro momento do “enterro” – reduzir tudo a cinzas – enquanto o Ti Álvaro preparava o petisco bem regado a contento da chorosa viúva e acompanhantes.

Desde a “Sociedade”, onde o Rafael Coxo se encarregou de enchumaçar de palha as sacas transformadas em “bacalhau-morto”, mas muito bem aparelhado, devidamente encaixado no fundo da padiola virada caixão andante ou encavalitado aos ombros dos que lá para a noite haviam de ser comensais à conta do pecúlio angariado na, agora iniciada, interpelação coletiva dos vizinhos abrunhenses ou brasileiros, gostando ou não do Carnaval, lá iam, duma banda para outra, percorrendo as poucas ruas e travessas da Abrunheira daquela época. 

Eles iam desconhecidos ou conhecidos, conforme cara tapada ou não, e berravam dando uso aos chocalhos barulhentos. Cada porta que se abria, “bacalhau” que se mostrava com aquele trio das “Caldas” sempre em destaque. A viúva guinchava à moda do Rafael Coxo e não se calava enquanto o Jorge Farpela não recolhia os trocos da praxe e as goelas não eram lubrificadas. E duma porta passavam para outra e, no meio do chinfrim desalmado da viúva, lá destapava ela o trio bem aviado das “Caldas”, recolhendo, o Farpela, a parte financeira da questão. Sim, porque o Ti Álvaro lá punha a pinga mas; amigos, amigos, negócios à parte!

A noite avançava e o enterro continuava. Portas se abriam e outras nem por isso. Na Abrunheira também havia os; “Carnaval todos levam a mal” em vez dos; “É Carnaval e ninguém leva a mal”. Pelo Santo António passaram e, ainda antes o Ti J’aquim Cagachuva se preparava para desfiar uma das suas intermináveis aventuras de bailes, garotas, garinas, zaragatas com e sem pau, que se jogava e que partia muitas cabeças e costelas. A Margarida Cagachuva, que viúva do Entrudo havia de ficar bem, digo eu, pelava-se para desafiar o Rafael Coxo que na resposta lhe atirava o tão habitual “tá por’í tá!”, e abrandando a marcha e a gritaria da viúva e as chocalhadas e os acompanhantes. 

Que as fronhas, cuecas, ceroulas e lençóis ainda vão ao lavadouro e as vizinhas faladeiras, tagarelas e alcoviteiras esfregam e batem e ensaboam. Ao sol da manhã que à tarde pouco tem, estendem na erva à volta a corar e a secar. Que as ovelhas, cabras, vacas e burros ainda afogam a sede na água corrente. Que as bilhas de barro, cântaros, ferrados ou bilhas de alumínio ainda se atestam à sombra do nicho do Santo António casamenteiro. 

Dos edificantes do abrigo da imagem do Santo não reza a história no sítio nem fora dele. Com o visto da Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim de mandatário Mário Lage, e obra do Ti Zé da Virgínia que em boa hora trocou o tinto pelo branquinho do leite da “Estrela” cuidada pela minha Tia Silvéria e, mais tarde, pela “Bonita” ou “Marcina” da Ti Augusta, minha Mãe, e do Ti Manel da Virgínia mais vezes amparado pela Ti Maximina por causa do peso líquido do tintol bem bebido, do que sozinho na direção de casa, ajudado por muito povo com destaque na serventia do Albano Faneca. 

O Santo que veio da Colónia diligenciado pelo Vicente, pai da Cidália, iria dar sentido à nova devoção popular da Abrunheira. Tantas rodas e quermesses se fariam a pretexto do popular, e tantos beijos roubados seriam à sombra do Santo, que da fama não se livra ainda hoje, depois de tanto tempo contado em anos. Guardiãs, não retenho lembradura por obrigação mas da Ti Maria do Florindo e o acendimento da lamparina, seria voluntária ainda muitas Luas antes de terem descoberto as virtudes do “voluntariado” moderno.

Na praceta que ainda não era revolucionária, virtude, ou nem sempre, da sabedoria e inteligência do toponímico trabalho de homenagear coisas, homens ou mulheres importantes. Ali, bem no fundo, junto às cancelas do Ti Zé da Cruz e do Artur da Maria Ferreira e perto do Adelino Baleia que de acordeonista se ajeitava, lá se armava o velório. A viúva, agora já bem aquecida dos bagaços escorregados, ainda se esmerava mais; chorava e guinchava que nem uma desalmada. O Jorge Farpela e acompanhantes iam fazendo as incursões pelos quintais adentro e, mesmo que não quisessem sair para observar o aparelhamento do “bacalhau-morto” e consolar a viúva, pelo menos se descaíam com cinco coroas, cinco paus, com um copo de três ou um bagaço. 

Mas todos vinham e “enquanto o diabo esfregava o olho”, toda a gente estava em roda da padiola funerária que nem andor santificado, para acompanharem a viúva nos “tristes” momentos e para apreciarem o triunvirato, porque naquela época ainda não tinham inventado a troika, da aparelhagem do morto que a viúva havia de descobrir debaixo da manta que lhe cobria “as partes”. Risota e chacota mulheres de cara virada mas com o olho bem aberto. No mealheiro já começava a sentir-se o peso. Ala que se faz tarde, de arrecuas às vezes se faz bem.

Agora subindo a rua principal em direção ao Largo do Chafariz. Pelo meio, pouca confiança davam o Ti Espanhol porque o palavreado era trôpego e o Silvestre Velho porque já era velho e havia outros mais novos. O Rafael Coxo ficava afónico e até parecia enterro interrompido quando o cortejo passava à frente da casa do sogro. Sempre a subir e lá estavam no sítio onde tudo acontecia. O Dionísio Frouxo de barrete preto saloio, o João de Leião do trator que mais me parecia um prédio de dez andares, o Ti Simões da Ti Libânia que se dobrava sobre si acusando o peso do tempo contado em muitos anos de labuta, o João P’ixeiro com aquele bigodinho e andar tão característico, o Simplício, pai do meu amigo Rui ali ao cantinho, o Ti Miguel lá ao cimo com o cabelinho todo branco e as pernas arqueadas, o Francisco Frouxo também de barretinho saloio no pátio ao lado e antes do brincalhão e divertido João Tirapicos da Deolinda, em frente o Manel da Colónia sempre muito sério de carranca e que cortava as bolas todas aos putos, do outro lado da taberna da Menina Emília a casa do Guilherme barbeiro, o Ti Hilário com o inconfundível macaco de ganga azul marcado de massa ou cal do biscate e o cigarrito sempre na função e a Natália e os filhos. 

O meu Tio António e a minha Tia Espírito Santo do outro lado manobrando o coalho do leite mugido do rebanho de ovelhas pela madrugada e que eu, com a Gina e o Eduardo, experimentávamos os queijinhos muito fresquinhos acabados de encher os cinchos. Então e o Tavinho? Isso é que ele gostava! Era o delírio, ao contrário do pai, o Ti Veríssimo de sacho sempre na mão. Em frente da casa deles acontecia tudo. Eram as “Cegadas”, o Circo dos saltimbancos, as Marchas, a fogueira do enterro do bacalhau e até onde o gado de toda a gente ia beber água ao Chafariz e, claro, arrear a respetiva bosta.

O Chafariz, inventado e feito pelo artista Ti Veríssimo. Lá está assinalada a autarquia mas quem o esculpiu e montou foi ele. Também tinha a “ciência da pedra”, embora duma maneira diferente do Coutinho que era Bernardino. Este, arrancava a pedra das raízes e gastou a maior parte do seu tempo nos buracos das pedreiras intervalados com o emborcar de muitas ciganas e charretes nos balcões das tabernas da Menina Emília, do Álvaro ou do Ramos. O Ti Veríssimo tinha a ciência de esculpir a pedra, era artista escultor. Depois deste tempo todo contado em anos, tento descobrir a justificação para muitas das denominações toponímicas das ruas e travessas da Abrunheira sem encontrar justificação. Certo estaria que as homenagens tivessem sentido. À volta do Chafariz tudo acontecia que nem pista para levantamento de voo dos ganços do Ti Veríssimo. A Ti Estrudinhas bem que os tentava controlar mas não lhes chegava nem às penas do rabo quanto mais à altiva cabeça. O Tavinho orientava as malandrices do carneiro “Baltasar”. O sacana do carneiro até parece que entendia a faladura do Tavinho.

A chinfrineira da viúva, à medida que se aproximavam do Largo do Chafariz, ia perdendo gás. Muita aguardente por aquela goela já passou que só não provocou mais estragos porque o Rafael Coxo tem um fole roto. Não há bebida que o faça cambalear. Era difícil perceber quando estava com o “grão na asa”. Mas dos berros dados fica o estorvo. O que já lhe apetecia era "abancar" e empanturrar-se de bacalhau e grão cozidos. A justeza de lembrar o meu Tio Rafael, Pai do Fernando e do António que todos conhecíamos como “pezinhos”, está no facto de não haver acontecimento recreativo, desportivo ou cultural, onde não estivesse presente o Rafael Coxo com a sua venda de bebidas com e sem álcool, aperitivos e petiscos rápidos. No seu tempo ainda não havia secretário de estado do empreendedorismo, nem incentivos financeiros ou fiscais para se ser empreendedor, mas ele já o era, e dos bons. As voltas, as gritarias, as chinfrineiras, as bebedeiras, as cantorias do Vandelino, do Ti Tónho Maltês e a choradeira da viúva, deram sentido à tradição abrunhense.

O som espalhado pela crepitação da fogueira assinalava o fim do “bacalhau-morto” e o fim do Carnaval. Na taberna, as máquinas digestivas dos acompanhantes, faziam horas extraordinárias e a quarta-feira de cinzas ia acabar como todos quiseram; Bem comidos e bem bebidos.

Pela janela, o Ti Veríssimo, artista escultor do Chafariz, assistiu à ignição da pira, ao subir das labaredas e, por fim, ao apagamento até ficarem as luzinhas intermitentes das cinzas.

E as homenagens numa simples placa toponímica duma rua, avenida, largo ou mesmo travessa??Os que mandam nas juntas, nas uniões ou na câmara, não perpetuaram nem perpetuam em registo de memória, os abrunhenses que, duma forma ou doutra, se destacaram na vivência coletiva da nossa Terra.

Silvestre Félix

13 fevereiro de 2013

(Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base verdadeira, mas, são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não.)  


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

LEI DA VIDA QUE FAZ DELA MORTE…


Desde o primeiro ar que respiramos nesta vida nascida, o caminho não tem limites mas sempre tem muitas dificuldades. Quando a caminhada é longa, o normal é que a última parte seja sofrida e penosa até ao fim. Aí, empunhando a gadanha, ferramenta sempre à mão quando sai das trevas, a morte cumpre o seu desígnio.

Muitas passadas pelo Largo do Chafariz, muitas ceifas do Silvestre Velho, muitos dias gastos na labuta dos “plásticos”, muitas vigílias pela utilização da, do João da batata, e a URCA que espreitava nos tempos críticos do quente verão do PREC. A Ti Lurdes caminhou, caminhou… e rendeu-se à lei da vida que faz dela morte. Ti Lurdes do Artur da Maria ferreira. Maria Ferreira, figura de físico pequeno e dobrado sobre si que muitos ajudou a nascer, como eu, no quartinho ao cimo das escadas e o Rio das Sesmarias do outro lado da rua e a Serra, Santa Eufémia e a Pena lá mais acima.

E lá vamos, hoje em São Pedro e amanhã para o Alto da Bonita depositando a matéria solta da Alma que esteja em paz e sossego.

Silvestre Félix

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

ANIVERSÁRIO DA URCA

Quero manifestar a minha satisfação pela programada comemoração do 38º aniversário da fundação da URCA. É uma data que deve ser devidamente valorizada e, pelos vistos, a atual Direção assim o entende, e bem.

Clicando, podemos recordar o dia 3 de Janeiro de 1975, dia primeiro da nossa coletividade.

Como sócio fundador fico contente e agradecido.

Silvestre Félix – Sócio número 12.

3 de Janeiro de 2013