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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

MERCADO DE SÃO PEDRO, OS SONHOS E AS GRANDES SUPERFICIES

Estivesse a complicada máquina digestiva a funcionar como devia e, a, ainda mais complicada e importante tarefa e função intestinal no ponto certo do trânsito, e o “Artista Sapateiro”, bem cedinho, ao levantar o primeiro sinal de luz do dia, se chegava às traseiras, fora do leito corrente, viradinho para a horta e, de cócoras, em jeito confortável quanto bastasse, para que bem ficasse a perna mais curta, e assim cumprir o que de mais sagrado um homem podia fazer; aliviar o corpo do que já não presta e que ainda por cima, cheira mal.

Este momento diário, era tido como audiência ao grande amigo e possuidor de grande sabedoria: O Rio das Sesmarias!

O Ti J’oquim Cagachuva, fizesse sol ou “chuva”, fosse inverno ou verão, não lhe falhava esta meia-hora em cada santo dia. Muitas vezes, os sonhos eram vagos e nublosos, mas, outras, via-os com tal claridade que, melhor os sentia que a realidade do dia-a-dia.

Ido que está o seu tempo de andarilho pelas terras e terriolas, casas e casais, quintais e quintas na procura de calçado carente da sua arte, e gasta que está a juventude que lhe temperava as passagens pelas festas e bailaricos do Linhó, Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Amoreira, Abuxarda, Alcoitão, Bicesse, Manique de baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira e por aí fora que não lhe chegava a memória de tanto sítio por onde passou. Ficava-lhe então, muitas lembraduras e uma outra componente, não menos importante.

Os sonhos! Isso, o Ti J’oquim não para de sonhar com as coisas idas e com as coisas vindas, ou melhor, que hão de vir.

Eu, que aqui estou no papel de narrador, ouvi muitas dessas cenas, algumas seriam reais, outras inventadas por ele e, ainda, outras, resultado dos contínuos sonhos que o “Artista Sapateiro” tinha com fartura.

Aquela manhã, tinha vindo com algum orvalho e, por isso, as ervas da margem do Rio das Sesmarias, estavam bem molhadas. O outono fazia o seu trabalho.

Depois das saudações habituais e de estabilizada a posição e a função acima descrita, o Ti J’oquim Cagachuva, requer a atenção do Amigo Rio, para lhe contar o inacreditável sonho daquela noite.

Tinha seguido “por esses caminhos acima” como era costume. Sem saber logo para onde ia, percebeu que tinha chegado a Ranholas, mas, ainda aí, muitos destinos podiam acontecer, até… valha-me Deus, até o Alto da Bonita. Depois do portão da Quinta do Ramalhete, ali bem na curva, o sonho logo o plantou na frente da “Campa-dos-Dois-Irmãos”. Percebeu logo que estava lá muito para frente no tempo, porque, a campa, estava do lado direito de quem sobe.

O sonho continuou e, embora o Ti J’oquim não conhecesse uma letra do tamanho dum comboio, garantiu ali, naquela posição de cócoras, que estava dezassete de tempo contado em anos a seguir ao ano dois mil, o tal que, sempre lhe disseram, nunca iríamos passar. A sua mulher, Margarida faladeira e sabe tudo, bem lhe dizia que tudo isso era mentira. Que haviam de passar o dois mil e o três, se preciso fosse.  

Pois é, dois mil e mais dezassete, segundo domingo de novembro, dia de mercado e às dez da manhã.

— Oh Amigo Rio das Sesmarias, tu que sabes destas coisas e conheces todos os abrunheirenses, diz-me cá; como é possível naquele dia, aquela hora, naquele sítio, não me cruzar com ninguém? Ainda no domingo passado fui ao mercado e, ao chegar ao Ramalhão, mais ou menos às dez da manhã, já não se podia andar, tal era a quantidade de gente.

O Ti J’oquim tinha ficado desapontado com o sonho que o atirou quarenta e sete em tempo contado em anos, para a frente, mas, por isso mesmo, fez questão de o contar todinho ao Amigo Rio das Sesmarias.

Bom, o que é certo é que o sonho continuou e, duma penada, estava encostado ao Chafariz da curva do alto de São Pedro a olhar para o mercado, ou melhor, para o sítio do mercado. Que via ele? Uns quantos toldos, muito poucos, que não ocupavam metade do largo.

Isso mesmo! Muito poucos, a quantidade não interessa, mas para quem conheceu o mercado a abarrotar e a sair pela 1º de dezembro até Chão de Meninos, com uma enorme lista de espera de lugares, é triste, muito triste, mesmo que fosse só num “sonho-mau” do Artista-Sapateiro da Abrunheira.

O pior mesmo, é que não é sonho, é mesmo verdade!

Será que ainda há tempo de salvar o mercado de São Pedro?


Silvestre Brandão Félix
16 novembro de 2017
Foto: Fonte de São Pedro (sintraroteiroturistico)-(Google)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

SOMBRA DAS ÁRVORES, O FORNO, A PONTA DA ÁGUA E OS SONHOS

Fascinado ficava, com a variedade de cores que, depois de arrefecido e das pedras de cal retiradas, se via nas paredes e no poço do “forno”. Era o resultado dos escorrimentos incandescentes que, fornada a fornada, se iam verificando, digo eu, completo desconhecedor científico da matéria, mas apreciador do colorido e formas estampadas no “forno” do “Cerrado-do-Forno”.

Eu não sabia, mas o Zé Fernando explicava-me tudo. O pai dele, Ti Abílio, também era “forneiro”. Passava meses seguidos tomando conta de fornos, como este. Só voltava a casa quando a “cozedura” estava concluída e, aí, contava as aventuras ao Zé Fernando, mas também lhe dizia a parte mais séria, ou seja, a técnica de preparação e efetivação, até toda a “abóboda” de pedregulhos cair, de cozida, no fundo do “forno”.

Ele, que absorvia todas as estórias e ensinamentos que o pai lhe trazia, não descansava enquanto não as punha em prática e, muita vez, fui seu parceiro na construção de mais um “forno-de-cal” de brincadeira.

Entre uma cozedura e outra, ao contrário de quando estava em laboração, ninguém dormia no anexo existente para o efeito e, durante o dia, também ninguém lá parava. O meu pai e a minha mãe, constantemente me diziam para não ir ao forno porque era muito perigoso. E era verdade, o fundo era como se fosse um poço, só que não tinha água e, pelas beiras, podia haver sempre alguma pedra que se desprendesse. Mesmo assim, e levado pela curiosidade, algumas vezes lá fui para admirar aquela dança de cores lustrosas nas paredes.

Aquela margem direita do “Rio-das-Sesmarias”, entre a ponte e o caminho da “Colónia” e o quintal do Ti Rafael, marcaram a minha segunda infância e tornaram-me inteiramente devotado ao que lá existia: A horta, que assim chamávamos, mas que muito mais tinha, o poço e a nora, o tanque de rega, e, lá mais acima, o “forno-de-cal”. Pelo meio, o campo de cultivo e, depois da “ceifa”, muitas vezes transformado na “eira” do Silvestre-Velho, para a debulha e enfardamento dos cereais cultivados nos seus terrenos à roda da Abrunheira, e não só.

Ao abrigo dos canaviais, que separavam os talhões, e à sombra dos pessegueiros, das nespereiras, das ameixeiras, das macieiras, dos limoeiros ou das pereiras, muitas caminhadas fiz pelos regos que levavam a água do tanque até às hortícolas, que o meu pai continuamente semeava ou plantava. Corria à frente da ponta da água, e, lá adiante, com o sacho bem aconchegado de terra seca, a encaminhava para o rego lateral, tapando, como se porta fosse, o rego principal. E, depois deste, seria outro, e mais outro e sempre assim, juntinho com a fonte da vida até ficar tudo alimentado e fresquinho.  
  
Nos meus oito, nove ou dez de idade, contada em anos, olhava, praguejava e lamentava a caminhada monótona da “Carocha”, em círculos à volta do poço, fazendo com que os alcatruzes da nora se deslocassem até ao fundo, onde estava a água e, de volta, chegassem ao cimo, virando-se e despejando a água que ia diretamente para o grande tanque, contentando o grande cágado que por lá andava. Até agora, tanto tempo passado, e como me lembro bem da chinfrineira provocada pelo movimento da nora, que abafava tudo à volta, incluindo as passadas da “Carocha”.

O meu mundo estava ali.

Ao contrário, de manhã, na escola, enfiando a atenção na história de Portugal daquém e dalém mar, na geografia do império do Minho a Timor, nas linhas de caminho de ferro da metrópole, de Angola e, principalmente de Moçambique, nas dezenas de rios que desaguavam em três oceanos diferentes, nas serras, que subiam em direção a constelações do hemisfério norte e do hemisfério sul, em climas temperados e tropicais, e também na gramática, na tabuada, nos problemas e na geometria avançada para a época.

Tudo isto, eu sabia que tinha de aprender, mas o que eu gostava mais, era da horta, da sombra das árvores que davam deliciosas frutas, da Carocha, da Marcina, da Estrela e da Bonita que —  tantas vezes já ditos— por esses caminhos acima, as levava a pastar até aos “celões”, fronteira com quinta do Ti Zé da Beloura e de mais caminhos até ao Linhó e à Colónia.

Gostava de ter por perto o Rio-das-Sesmarias, os melros e os pintassilgos que, por ali, muito saltitavam. E o grande rebanho de ovelhas do meu tio João que, na ida e na vinda, se abeiravam da margem para comporem do precioso líquido, a remoedura. Do meio, lá vinha em correria na minha direção, a antes, borreguinha, que eu e a minha mãe criamos em casa a biberon e que, ovelha adulta, nunca esqueceu quem lhe deu mimos e alimento quando ela mais precisava. Berregava em saudação, lambia-me as mãos e, depois de lhe fazer a habitual festa, regressava contente para o pé das companheiras.  Tanto tempo depois, o universo dos complicados sonhos que muitas noites me atormentam o sono, ainda passam, uma ou outra vez, por aqueles locais e por aqueles dias, que foram reais.

Compensando a falta dessas coisas boas que já não são, sopraram-me há tempos, que, a preservação do “forno-de-cal” do “Cerrado-do-Forno”, estava garantida. Se assim vier a ser, fico muito contente pelos motivos pessoais que aqui foram escritos, e tenho a certeza que a maioria dos abrunhenses ou abrunheirenses como outros dizem estar correto, também ficarão.

Não sei quando será nem como o vão fazer, mas, para já, o que resta do “forno” não vai ser demolido e, algures para a frente no tempo, todos poderão ver como se fazia cal, indispensável para a construção e revestimento das habitações, até à década de sessenta do século vinte.

Silvestre Brandão Félix
9 de outubro de 2017
Fotos: (1)Ruínas do Forno de Cal do “Cerrado-da-Fonte” na Abrunheira. Tirada hoje, por mim. (2) Desenho-esboço de Forno de Cal (Google).


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

VERÃO NO FIM, COMEÇO DAS AULAS E PANFLETOS DA CAMPANHA ELEITORAL

Mais de trinta graus a caminho dos quarenta, é muito para um abrunhense ou abrunheirense, como outros afirmam ser correto dizer-se. Bom, duma maneira ou doutra, trinta e tal graus não deixa de ser calor e, ainda mais, se o nosso providencial ventinho estiver de folga. Dirão alguns; é verão, por isso natural que estejam trinta e tal graus. Pois, é verdade, digo eu. Mas então, como explicamos a um neto ou uma neta, que tem de ir para a escola durante o verão, que, em boa verdade, está associado (o verão) a férias, praia, preguiça, forrobodó, etc.?

Eu, quando pela “Quinta do Olival” passava, tomando a esquerda e, mais acima, depois da curva, virava à direita junto à taberna do (depois do Faial) Ramos e enfiava pela azinhaga da pia até um pouquinho antes da entrada para a Escola, nunca o fazia antes de 7 de outubro. É verdade, naquele tempo do “botas”, as escolas começavam todas nesse dia, desde que não fosse sábado ou domingo.

Pela Abrunheira, mesmo com ventania, o mês de setembro era de férias e o pessoal do Casal dos Icos não dava tréguas à brincadeira. Bem comandados pela Luizinha, o bando brincava, rezingava, pedalava e descansava até final do mês. 

Porque assim era, o nosso saudoso Júlio Silva, só levantava a tenda de campismo da Lagoa de Albufeira, no feriado (que uns inteligentes há pouco tempo quiseram eliminar) do 5 de outubro. Nesse dia, fazia-se o último banho salgado da época e era cozinhado o último almoço na praia, pela nossa querida Laura. Dois dias depois, os rapazes e raparigas começavam a Escola.

Ainda escrevendo sobre altas temperaturas e fortes ventanias, uns quantos contados em anos mais tarde, quando por outros mundos andava, duas principais coisas, para além da família, me faziam sempre falta: Não ter à vista a torre do Palácio da Pena e, se o destino fosse África da Lusofonia, o ventinho que pela Abrunheira passa a maior parte dos dias do ano. É claro que gostaria de ter comigo outras “serventias”, mas, estas duas, eram as mais importantes.

Voltando outra vez para trás e ao uso das fontes, chafarizes e “saudosas” águas correntes do Rio das Sesmarias todo o ano, não resisto à tentação de puxar pela imaginária de cordel e ao vício incontornável de falar de abrunhenses ou abrunheirenses que, também, muitas vezes passaram pelo Largo do Chafariz, sentindo o vento e, claro está, o saudável odor, resultado das necessidades fisiológicas que, todos os animais, enquanto matavam a seda, ali deixavam.   

Então, ainda de calor e vento escrevendo, de certeza, que as mesmas queixas tiveram, não poucas vezes, o Coutinho que era Bernardino e tinha a “Ciência-da-Pedra”, e o Sacadura que era Francisco Borrego e não se lhe conhecia ciência nenhuma, que, fiando-se no ventinho da nossa “Terra”, daquela vez lhes faltou e a tornaram Brasil do Atlântico Norte – assim como se fosse um regresso às origens como conta o Laurentino Gomes no 1822 – numa aventura que, em vez de aeronáutica, se tornou acrobática, quando foram os dois parar com os quatro costados ao chão.  

Vestígio da nossa brasilidade, o Café Brasil, lá em cima, na avenida dos combatentes. Pois então, a única razão porque o Manel batizou assim o café, foi a dita aventura, sonhada pelos abrunhenses ou abrunheirenses, Coutinho que era Bernardino e Sacadura que era Francisco Borrego, que assim se tornaram padrinhos da alcunha de “Brasil” que a nossa Terra tomou, até aos da minha geração. Daí para cá, foi-se perdendo o sentido da alcunha e, hoje, rapaz ou rapariga que, nestes primeiros dias deste mês, já será “despejada(o)” na grande escola, saberá, sim, onde é o Brasil das telenovelas, mas desconhece onde é o outro “Brasil” deste lado do Atlântico.    
   
O Bernardino que não era Coutinho, porque o trabalho na pedreira do Ti Miguel, para além da “Ciência” que aplicava em cada operação de quebradura bem medida, tinha de ter a força física requerida para que o resultado fosse o pretendido e, as temperaturas altas, não eram nada amigas desta arte da pedra, levada, muito a sério, pelo genro do Caracol Velho.

Nem a Judite Caracol, sua mulher, se dava bem com o calor. Pois é, ela, mulher de muitos quereres e saberes, quando a temperatura ia alta, logo adivinhava que tarefa extra ia ter nesse dia. Lá mais para a tardinha, espreitar pelo Faial ou Ramos, pelo Álvaro e Menina Emília, até encontrar o Coutinho que era Bernardino e lavá-lo para casa já com muitos “gãos-na-asa”, ou seja, muitas ciganas e charretes metidas no bucho.   

O Francisco Borrego que não era Sacadura, também não se embeiçava com o calor e com a falta de vento. Se assim fosse, não teria dito: “empurra agora que faz vento”. E, como todos já sabemos, embora eles tivessem atirado as culpas para a falta de vento, não foi por isso que foram direitinhos ao chão.

O reclamante abrunhense ou abrunheirense, para o caso tanto faz, que, no que toca ao calor o faz pelo excesso e no extremo, já, no que ao frio diz respeito, a coisa vai pelo contrário. Não há frio que “chegue-aos-calcanhares” dos dias em que, de manhã, encontrávamos as covas do jogo do bilas, cheias de gelo. E também, a caminho da Escola, junto à “Vivenda Juveniana”, onde ainda está o sítio, mas de azulejos nada, a nascente que ali corria, ficava coberta de gelo. A gente quebrava-o e, dali a bocado, já estava outra vez na mesma.

O companheiro Rio das Sesmarias deixava que, nos cantinhos, junto às margens, a sua água gelasse um bocadinho e, passando, com sua licença, para a outra margem junto à horta do Manel da Colónia e à casa do Ti Joaquim, as pedreiras do Ti Miguel, lá mais acima, laboratório da “Ciência-da-Pedra” do Coutinho que era Bernardino, no inverno formava pequenas lagoas cobertas de gelo. Havia anos em que o Zé Augusto, atreito à aventura, conseguia andar por cima do gelo sem que se partisse.

Relendo a prosa que já vai longa e, quando digo, «altas temperaturas e forte ventania», alguns dos meus amigos, com certeza, pensarão que de campanha eleitoral, irei falar.

Não! Estejam descansados que a minha disposição, neste particular, é igual à dos candidatos. Tudo calmo e sem se falar de nada. Completamente ignorados e esquecidos. Curiosamente, nem promessas há. Claro, estou a referir-me à nossa Terra, quanto muito, à antiga (que espero ainda seja recuperada) freguesia de São Pedro de Penaferrim. 

Silvestre Félix


Abrunheira, 6 de setembro de 2017 

Fotos: (Google)

terça-feira, 7 de abril de 2015

DESTE LADO DA SERRA

Deste lado da Serra, perdemos quase tudo!

Foi o Centro de Saúde, o Centro Social, a ligação direta à Capa Rota, a Junta de Freguesia, o quartel da GNR, a Escola Secundária, os equipamentos desportivos, como o multiusos, a piscina e o campo de futebol, etc., etc.

Perdemos líderes carismáticos e honestos que se “batam” pelos interesses e necessidades das populações deste lado, onde o SOL toca primeiro. Eu cá, desconfio que, mais cedo ou mais tarde, tentarão mudá-lo de sítio (ao SOL) para que, primeiro, apareça do lado de lá…

Há quem já tenha dito e escrito, que até perdemos o direito a “presidências abertas” [abertas]. Parece que são mais p’ró “fechadas”. Eles, não sabem, nem “sonham”, como ir “por esses caminhos acima”. Pudera, se soubessem, não tinham deixado que os perdêssemos. Já era (ou foi), a ligação a Ranholas pela Rua da Abrunheira que, por aí acima, a Ti Augusta me levava pela mão até ao mercado ou, muitas outras vezes, até ao miolo da Serra, à Casa da Tapada que também era e ainda é, “Do Roma”, juntinho ao Palácio dos Milhões que a minha Mãe nunca se esquecia, da “estória” me contar; o caminho, por aí a cima, aos “Celões” até ao Linhó com pedras mil vezes pisadas pelos cascos da Marcina, da Bonita, da Estrela e da burra (salvo-seja) Carocha, ainda antes, desapareceu engolido pelo condomínio que, do Casal da Beloura com caminho também feito e serventia para os rebanhos do Ti Zé da Beloura, só o nome ficou.

É só a perder…

Até o Rio das Sesmarias foi despromovido para “ribeira” e, ainda-por-cima, de Colaride. Na mesma onda perdedora, lá foram “à vida” as cigarras e os grilos e com eles levaram as suas cantorias que, por esta altura, começavam a inundar os nossos campos.

Deste lado da Serra perdemos quase tudo…

Fica a dignidade!

Silvestre Félix
7 de abril de 2015 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

COMO É QUE SE CHAMA ESTA FRUTA?

A perícia com que escolhia as cebolas e as dispunha por tamanhos, qual calibrador moderno e automático; o cuidado a tirar as “cascas” velhas, cortar “direitinho” os tufos de raízes e folhas inúteis da planta; a arte, precisa, com que entrançava as folhas secas ao centro, e fazia com que as cebolas ficassem agarradas, umas, a seguir às outras e, assim, em pouco tempo, construía a obra perfeita denominada—“réstia”.

Peça única, incluindo a dose certa de “marketing” acoplado, traduzido na beleza que irradiava, aos olhos dos potenciais consumidores ou, eventualmente, compradores – sim, porque, tendo o meu saudoso Pai, partido desta vida, vai para trinta e nove de tempo contado em anos, quando se dedicava com esmero e profissionalismo à arte de hortelão e agricultor, não carecia de emitir fatura eletrónica, para poder trocar o excedente.

Não preciso de “pretextos” para falar do meu Pai, mas, esta descrição da “construção” de uma réstia de cebola é, demonstrativa, de como o “Zé Silvestre” lidava com a sua arte. Eu, muito miúdo, ficava horas a vê-lo, sentado no chão em cima duma sarapilheira, numa qualquer tarde de março (marçagão, de manhã inverno e à tarde verão), dando as voltas todas às cebolas ou alhos, até concluir o produto final que, eu, “puto”, achava do mais prefeito, e era!

Há uns dias, numa “catedral” de consumismo aqui perto, onde eu também vou, perguntava um miúdo para a mãe que, com o desespero da falta de tempo e cuidado, ao escolher umas cebolas numa “piscina” delas, a granel, deixou cair duas pelo chão que, rebolando, pareciam ganhar velocidade em excesso, correndo, até, o risco de serem multadas por algum “polícia” escondido atrás dos outros caixotes que, por ali, estão estacionados.

— Oh mãe, como é que se chama esta “fruta”?
— Chama-se cebola, filho!

A mãe, com vinte e poucos anos de idade, respondeu duma maneira muito crente. Não hesitou, e achou que falou certo. O filho não tinha mais do que cinco anos e, como é normal, voltou à “carga”.

— Oh mãe, como é que se chama a árvore que dá a cebola?

Mais uma vez, a mãe, “certíssima” do que estava a dizer, respondeu:

— Nunca vi nenhuma, mas acho que é “Ceboleira”!

Já não se fazem réstias de cebolas…

E o meu Pai preparava o canteiro, muito direitinho, bem estrumado e deitava-lhe a semente. Alguns dias, e os pontinhos verdes do “cebolo” começavam a despontar e, rapidamente subiam até um palmo. Por essa altura, começava a arrancar as pequenas plantas e separava-as em “centos” (cem unidades), atados com umas folhas muito compridas duma planta do nosso Rio das Sesmarias. As primeiras, quase sempre, eram as que ele precisava para plantar e, mais tarde, colher cebolas. Os restantes “cebolinhos” distribuía por algumas pessoas e, se ainda sobrassem, o próximo mercado de São Pedro tratava de os absorver. 

Já não se fazem réstias de cebolas… e muitas outras coisas. Mudam tudo. “Pelo andar da carruagem”, as tardes soalheiras serão transformadas em permanente “lusco-fusco” de modo a que, nem de uma réstia de sol, a “gente” possa beneficiar. 

Silvestre Félix

14 de janeiro de 2015 
(Foto: Google)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

NORTE DA ABRUNHEIRA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA AO PÉ DE CASA.

— Desnorteado estou eu, com a ventania que por aí anda! Diz que não, diz que não te tira o sono e depois queixa-te!
— Oh Coutinho, mas então, o que me interessa a mim, o que vai acontecer daqui a cinquenta ou sessenta anos?
— Ai não te interessa, não?
— A mim, não! Nessa altura já sou tijolo bem ressequido.
— Pois a mim interessa-me, e muito. Estão a meter-se com o nosso amigo Rio-das-Sesmarias. Eu cá, já estou habituado às “trocas e baldrocas”; tanto me chamam Bernardino que não sou Coutinho, como Coutinho que sou Bernardino e outros nomes e alcunhas que agora não vem ao caso, mas, com o Rio-das-Sesmarias, “fia mais fino”. Nortadas à parte, não posso “levar à paciência” que lhe troquem o nome.
— Concordo contigo mas …
— Mas o quê??!! Não me digas que não te importas que, passando muito tempo lá para a frente; contado em anos pr’aí uns cinquenta ou sessenta, venham uns gajos de gravata dizer que não eras Artista-Sapateiro, que ignoravas a “geografia-ao-pé-de casa”, que não usavas boné, que te chamavas Manel e que cagavas ao sol em vez de o fazeres à chuva?
— Tens razão, Coutinho! Mesmo já não andando por cá, sabendo duma aldrabice dessas, não ficava nada satisfeito. Estou disposto, contigo e com quem mais tu achares de valia, a lutar pela verdade, eliminando, com quantas cajadadas for preciso, a ignorância e o desnorte que por aí abunda.

E os dois “Abrunhenses” lá foram andando, do “Lugar de Baixo”, a sul, para o “Lugar de Cima”, a norte. Passaram o Santo António, o “Espanhol”, o “Silvestre-Velho” que, como comandante à proa do navio, do alto da varanda, olhava os trabalhos a decorrer nas terras abaixo da Colónia e até ao Linhó, pela esquerda e, à direita, até aos “barros” — sessenta, contados em anos de tempo para a frente, os “inteligentes”, chamar-lhe-ão: Norte da Abrunheira-Norte — mesmo à beirinha da estrada, do lado de cá da “chancuda” que, para além da nascente, ainda recebia muita água da regueira, desde o “penedo”, rentinha ao fundo do “Casal-Novo”. Tão absorvido estava que nem respondeu à saudação dos dois passantes. Aproveitando bem o tempo solarengo, em conluio com o São Martinho, o “Silvestre-Velho” mobilizava as suas duas juntas-de-bois e todo o pessoal disponível, acelerando o amanho para que, antes do Natal, grande parte das sementes estivessem na terra. Da varanda, e como se todos o ouvissem e vissem, bracejava e gritava os impropérios do costume — Ah, “almas do diabo”; “raios-os-partam”; “filhos duma égua”; etc., etc.,.

Caminhavam pela “principal”, com o amigo Rio-das-Sesmarias à esquerda, correndo no sentido inverso ao deles; de norte para sul. Podiam ter metido pela “Azinhaga do Rio”, à esquerda, a seguir ao quintal do Rafael Coxo e junto à escolha da fruta do “Pechincha”, mas não o fizeram. Sob o olhar e cumprimento do Ti Mendes, que muito fumo pelas beiças e ventas deitava, por cada forte puxada no bocal do cachimbo de cana feito, rumaram na direção do Chafariz e o destino era a taberna da “Menina Emília”. O Coutinho que era Bernardino estava com ganas de emborcar uma “charrete” e, o “Artista-Sapateiro”, também.

Ambos sabiam que “o norte” era o caminho daquele dia e daquele tempo. Por aquela que, vinte, mais tarde, contados em anos, seria a “Travessa do Norte”, e a desembocar na “Rua das Sesmarias” filha adotiva do nosso RIO que, pelo menos, lá pelos tempos de D. Fernando “o primeiro”; se passou a chamar, aqui, na Abrunheira; “Rio-das-Sesmarias”. Que não se contem os anos, desde o princípio do último quartel do século XIV, que são muitos e tempo suficiente para que, para lá da profecia; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, não se admita tamanha ofensa ao nosso RIO; chamar-lhe “Caparide” e, ainda-por-cima, “ribeira”??!!

Vagarosos, como se queria naquele verão emprestado de novembro, lá foram, com a “charrete” da Menina Emília e mais — porque assim que meteram ao “Cipriano”, viraram no beco para a adega do Pena — duas ou três canecas da melhor água-pé deste planeta e de todos os outros que o universo tenha, em direção à passagem de pé-posto, do nosso querido Rio-das-Sesmarias. Ele estava no seu sítio, corria bem direitinho, de norte para sul e sem solavancos, que o chovido não era assim tanto mas, muito acabrunhado.

Chegou primeiro o Coutinho, pois a perna aleijada do “Artista-Sapateiro” — e mais o que lhe passou pela goela, a caminho dum estômago bem atestado de acidez e ávido de matéria para desfazer, e mandar rapidamente para o “delgado”, ganhando velocidade no trânsito, mesmo sem mesinhas e outras artimanhas, para que não estacione muito tempo no “grosso” — fizeram com que viesse mais atrás. 
 
— Então, amigo Rio-das-Sesmarias? Como vais correndo?
— Vou levando a minha água, dando passagem de ida e volta, com direito a recreio, às enguias do poço da nora, na horta e pomar dos pêssegos-rosa que o “Zé Silvestre”, trás. Levo água para que os “girinos” nasçam, cresçam e, lá para março, despontem lindas e coloridas rãs, que coaxam sem parar; para que os animais dos Abrunhenses se satisfaçam do líquido precioso; para que os agriões que crescem nas minhas margens, completem saborosas saladas verdes, enfim; da encosta de Ouressa, engrossando com o “fio” nascido no Penedo, irmanado com a da Chancuda, que pelos “Barros” vêm a mim: “Rio-das-Sesmarias”, antes e depois da Abrunheira até à “Azenha” do Ti Sebastião, na Capa-Rota. Depois, já não me importo, porque pelos “Bernardos” vou tomando outros nomes que, de mim, só a água levam. E vocês? Como vão encarando as notícias que, do norte, nos trazem?

Cada pé em sua pedra, com a anuência do “acabrunhado” RIO, passaram, como sempre faziam, para o lado da pedreira que, do Ti Miguel, ainda seria, por muito tempo contado em anos. O Bernardino, que Coutinho não era, tomou como assento a, que dizia sua; pedra. Pegou no bornal, que se quedava no ombro esquerdo, e posou-o no chão, com muito cuidado. Num dos alforges, trazia ferramentas de trabalhar a pedra, como se fossem tubos de ensaio do mais moderno laboratório. A “Ciência-da-Pedra”, que era a sua, só podia ser “manobrada” pelos mais delicados instrumentos. No segundo alforge, que balançava à frente, o Coutinho que era Bernardino, trazia o seu farnel que a Ti Mariana Soleta lhe tinha preparado antes de sair de casa, ao mesmo tempo que lhe recomendava — Ai “Be’nardine filhe, nã me vás pa’taberne embo’car vinhe” (aqui não entra a ”história” do Coutinho, por razões óbvias. Se, para quem lê, não for assim tão óbvio, espere por outro escrito ou vá ver os antigos) e que tinha; Uma “cigana” cheínha, um quarto de pão-escuro e um bom naco de toucinho-entremeado que, logo chegado à pedreira, lhes daria o devido tratamento que, mesmo correndo o risco do “Artista” me acusar de desvio do tema ou matéria, como lá muito para a frente, no longínquo século XXI (se, a dois mil passarem) os políticos velhos e os aprendizes, vão gostar de dizer muitas vezes; não resisto a “mostrar”, por antecipação, aquele que, sempre era, um laudo banquete!  

Na principal bancada do seu “laboratório”; a pedra que servia de mesa para comer e poiso para as ferramentas, Bernardino que não era Coutinho, tira do bornal o papel-pardo do costume, estende-o na “mesa”, e coloca-lhe em cima; o pão-escuro, o naco de toucinho e a “ciganita”. Como comer e beber, ritual sempre foi e será, respeitando o cerimonial, saca do bolso a sua indispensável navalha-curva (de enxertar), com jeito e delicadeza que só mãos e dedos habituados a “tocarem” a ciência, mesmo que, de pedra seja, abre-a e, com um gesto certeiro de tantas vezes repetido, passa os dois lados da lâmina da navalha, pela ganga das calças da perna direita, logo acima do joelho, e inicia o corte preciso dum bocado de pão. Findo este, idêntico manuseamento faz ao toucinho e, juntando os dois pedaços, mete-os na boca, iniciando uma função de mastigação que, só viria a ser completa, com um trago de vinho emborcado diretamente da “cigana”.

Noutra, bem ao feitio e tamanho da “padaria” do Artista-Sapateiro, lá se sentou ele, segurando, num repente, a beata presa ao beiço de baixo, que lhe ia caindo. O único dente que despontava da “cavidade” bocal, bem espetado na gengiva de baixo, não era suficiente para lhe prender, bem, o cigarrito. E, como que reagindo ao tropeço, meteu “estopa” e iniciou faladura sapiente sobre viagens há muito empreendidas; Não fosse, ele, Artista-Sapateiro, dos bons, contador de histórias e cenas que ele sabia e repetia. Muito ele calcorreou, perseguindo clientela de meias-solas para patrões das quintas e jornaleiros, desde a(s) Malveira(s) (dos bois e da Serra) até aos “Estoris”, passando pelas Azenhas e Janas, subindo para Almoçageme, Penedo, Eugaria até ao outro lado em Paço-de-Arcos, Quinta da Estribeira, Leião até Belas, pelo outro lado em Odrinhas, São-João-das-Lampas, Linhó ou Parede, Caparide, Murtal, etc., etc.. O Artista-Sapateiro conhece o percurso do nosso Rio-das-Sesmarias, até à foz, na Costa-do-Sol entre São João e São Pedro do Estoril. Por acaso até passa junto a Caparide, a mais-ou-menos três quilómetros da foz e quinze da Abrunheira mas, chamarem ao nosso amigo Rio-das-Sesmarias, “ribeira de Caparide”, não lembra a ninguém que saiba um pouquinho de “geografia”.

— Oh Coutinho, tive agora uma ideia de “estalo”; vamos teletransportar lá para a frente, cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, uma “Petição pública” para reposição da verdade e recuperar os nossos valores históricos, exigindo que, no âmbito dos estudos e planos “nortenhos” para a Abrunheira, se chamem as coisas pelos nomes, como é o caso do Rio-das-Sesmarias.
— Oh Artista-Sapateiro, essa de “teletransportar” não é no gozo comigo, não?
— Não! Estou mesmo a falar a sério, Coutinho! Não tem nada a ver com a tua tentativa de travessia do Oceano Atlântico até ao Brasil com o Sacadura que era Borrego.
  
E o Rio-das-Sesmarias lá corre com toda a lisura, mas acabrunhado.

Só quer a verdade!

Silvestre Félix
4 de Dezembro de 2014


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O CIPRIANO E O FORNO!


Pelo Largo do Chafariz, menina Emília, Cipriano, atravessando o das Sesmarias e ao lado da pedreira do Ti Miguel, lá agarrávamos os “caminhos por aí acima” até ao Mercado passando antes pelo Fetal no caloroso abraço de saudades de primas rodeadas das flores descidas da Tapada do Roma onde, por aí acima, ainda na mesma manhã chegaríamos. A olhadela pelo Mercado era rápida que de compradora a minha Mãe raramente estava. Gostava de ver o gado, dos viveiros, o cebolo, couve – galega e portuguesa. O destino era mesmo a Serra e, descendo até à Vila e voltando a subir, lá vinha o cheirinho do café da Ti Franquelina. A Serra dos Brandões marcou a minha geração e sugere ainda hoje, viajar sem descanso pelos tempos.

Antes dos “caminhos por aí acima”, fiquemos do lado de cá da Serra e olhemos para os “caminhos por aí abaixo”. Às vezes lembro-me do Cipriano. Era mais ou menos pedreiro ou mestre de obras e também trabalhava a pedra e negociava cal que cozia no forno. Lá, no tempo de trás, o Cipriano ainda sente o braseiro das pedras recebendo o fogo da lenha atirada para o forno. As pedras irão caldear para ajudar a subir as paredes das moradias e até do caminho que levará a placa “Rua do Forno”. Era do Cipriano, o forno e, vendo agora para o futuro, embasbacado ficará, como se já não chegasse a rua, dar de caras com um “Jardim do Forno”.
  – Jardim? E do forno? Será o meu ou o outro ao pé da “rigueira” do sogro do João de Leião?

 (eu sei que “rigueira”, mesmo sem acordo ortográfico é “regueira” mas, se sempre disse e sempre ouvi dizer “ri”, porque hei de escrever “re”? Para mim é “Rigueira”, pronto!)

  – A quarenta e tal anos em tempo contado para o futuro, não vou conseguir descobrir, de certeza. Bom, vou dar como certo que se referem ao meu “Forno”. Assim, como assim, eles só têm lá escrito “Jardim do Forno”! Não têm “Jardim do Forno do Cipriano” ou “Jardim do João de Leião”. Mesmo assim, tive que virar o desenho ao contrário porque a placa do jardim está do lado do “Corronquinho”.

Saltando para o outro lado da Abrunheira e antes dos “caminhos por aí acima”, na pedreira do Ti Miguel, labuta o Homem que tinha a “Ciência da Pedra”. Tanto nas pedreiras como no forno do Cipriano ou, de outros, que lhe pagassem o suficiente de comida e, principalmente, bebida. Já algumas vezes tinha prometido à Mãe, Ti Mariana Soleta, que “queria acabar com o vinho mas, que não conseguia porque era sozinho a trabalhar para isso”. A rotina habitual do Coutinho que era Bernardino incluía uma conversa com o Rio das Sesmarias quando por lá passava e, se o das Sesmarias não o retivesse muito tempo ou não o desafiasse para meter uma “charreta” na menina Emília, enfiava-se na pedreira e demorava tempo até de lá sair.

    – Oh Coutinho que és Bernardino, ouvi dizer que ontem à noitinha na taberna do Osvaldo quiseste levantar um barril de 50 litros de tinto só com os dentes, é verdade? (perguntou o martelo de corte)

    – E então? Pensas que não sou capaz? Ontem é que já tinha muitas “charretes” bebidas e a coisa não correu lá muito bem mas, um destes dias, levo-te comigo e vais ver se levanto ou não! (respondeu o Coutinho que era Bernardino)

O homem que tinha a “Ciência da Pedra” não era de muita conversa e, como toda a gente, também olhava, pensava e sonhava no tempo lá para a frente. E, mesmo nas profundezas da pedreira do Ti Miguel, tinha dificuldade em ver que o Largo do Chafariz já não era o sítio onde todos os abrunhenses iam.

  – Mas como é que pode ser?

A antiga casa do Caracol Velho onde, daqui a uns anos contados em tempo e depois da Ti Mariana Solena e do Ti Vitro se finarem, iria morar e dormir na mesma cama com a Judite Caracola, já lá não está!

  – Homessa? Olha, olha…um prédio dos grandes? Então e as galinhas e os coelhos? E o caminho do caracol agora tem alcatrão, não tem silvas e estão a soprar-me ao ouvido que é uma rua e se chama Humberto Delgado. É o tal que vai dizer aos jornais que «não tem medo» e, ao “botas”, que «se ganhar, o demite».

O escopro, ouvindo a faladura sozinha do Coutinho que era Bernardino, estava danadinho para entrar naquele exercício do futuro e, antes que se iniciasse outro monólogo, desferiu, com a mesma subtileza com que torneava a cantaria:

  – Deixa lá o “botas” e o que “não tem medo” e ouve o que eu consigo ver com a lâmina voltada para cima, muito mais para a frente em tempo contado em anos: A rua principal desde o Osvaldo até ao caminho do Caracol, passando pelo Largo do Chafariz, com o nome de avenida do “Movimento das Forças Armadas”. Pelo reflexo, consigo ver que foram milhares, “os que não tiveram medo”. 
  
O Coutinho que era Bernardino, entretanto calado, fechou os olhos e, com “futuro” à sua frente, só queria saber mais e mais. Com esforço de concentração, lá começaram a correr mais imagens da nossa Terra:

O tempo saltou, pulou e deixou-se ficar uns instantes naqueles anos redondos e de classe operária feita. Com muita pintura e cartazes nas paredes já nem o Largo do Chafariz se livrava. Abrunhenses mobilizados pelos partidos e movimentos cívicos, já muitos havia e nas listas à Junta de Freguesia de São Pedro, eram incluídos. Ah, mas lutavam pela eleição e transpiravam a camisola pelo que acreditavam. Nesses tempos, que, vistos do futuro para o passado até parecem meio estranhos, porque, toda a pirâmide democrática a nível local era graciosa para quem a praticava. Muitos cadernos eleitorais se descarregavam e muitos votos se contavam com “mata – bicho”, almoço e lanche dos votantes. Voluntários sempre sobravam e a alegria não tinha nada a ver com vitória ou derrota eleitoral.

O caminho do tempo não para. Continua sempre “por aí acima”. Até o Alto da Bonita é “por aí acima” e, quando à frente do Coutinho que era Bernardino passou Ranholas com a padaria do Ti Américo e o Pocinhas, a barbearia do Ti Guilherme e, uns contados em anos mais adiante, mesmo na curva em frente à Quinta do Ramalhete, no Lanterna Vermelha, o fio da história passou a ser mais concreto e pormenorizado:

Imperador era o bacalhau, bom de gosto e farto em quantidade. Simpático e amigo era o Conde com responsabilidade republicana e o dia, melhora fora o de 1º de Dezembro, mas não, logo tinha de ser o 5 de Outubro que, no salto dos setenta para os oitenta do século XX, não nos passava pela cabeça que lá mais para a frente no tempo contado em trinta e tal anos, acontecesse roubo à cidadania republicana com a supressão do feriado popular e nacional. Era vida complicada mas de muita esperança e o Conde que de Saborosa tinha o nome e com a guitarra portuguesa seguia na fadistagem a voz única da esposa Maria Teresa de Noronha. No Lanterna Vermelha, eu, o Peniche e o Conde – Presidente de Penaferrim. Naquele dia de comemorar a implantação da República, degustamos e trabalhamos sem senha de presença ou aposentação garantida.

Não sei se alguma vez o Conde que de Saborosa tinha o nome, provou o néctar único que na Abrunheira se fazia e consumia bem perto do Cipriano. O Coutinho que era Bernardino bem lhe tinha o gosto e o proveito porque, na altura certa do ano, na ida, passando pelo Largo do Chafariz, Menina Emília, Abílio e, antes do Cipriano, engatilhava para o Pena na onda do São Martinho e até ao Natal. Era a melhor água-pé da Abrunheira e arredores. Não era para putos mas, rapaz que se prezasse, tinha de saber que o Pena era o maior (em altura) em água-pé! Petisco se organizava e de lá só saiam a cambalear ou mesmo de gatas. O Coutinho que era Bernardino não! O bandulho era a preceito e não havia bebida que o deitasse abaixo. Quando pesado já estava, metia a espinhela a três quartos e lá comandava os andantes a direito até ao fundo do alcatrão.  

Pelo Largo do Chafariz e por “alguns desses tempos”, vivíamos o azedo do medo e ansiedade que apertava os nossos peitos.

Pior nunca podia, e melhor sempre seria!

Muitos anos em tempo contado lá para frente, esta máxima mudou! O Largo do Chafariz continua no sítio, a Abrunheira já tem um Jardim do Forno que era o do Cipriano e que se chama só – Forno, mas os abrunhenses e todos os portugueses estão a ficar mais pobres, passam muito mal e estão tristes.

Melhor nunca será, pior sempre estará!

Silvestre Félix
25.10.2012
Editado em 26 outubro de 2017 com a colocação da gravura de um forno de cal

sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O NOSSO RIO DAS SESMARIAS

Muito discurso se constrói hoje partindo do substantivo “parceria” percorrendo caminhos de prosa arrebatadora para plateias entusiasmadas ou, então, para despachar em grande velocidade magotes de jornalistas e repórteres inconvenientes. As parcerias podem ser muitas mas as que estão mais em voga são as famosas “público-privadas”.


Na Abrunheira, e por razões que nada têm a ver com as que são referidas nas linhas passadas, até porque há 60 ou 70 anos ainda não tinham inventado tal forma de ganhar (roubar) dinheiro, para além disso, os Abrunhenses tomavam banho de ”honra” e a parceria tinha o peso substantivo que a gramática lhe atribui; Era reconhecidamente uma "parceria estratégica", ele (O das Sesmarias) precisava de ser limpo e as ruas precisavam da areia para serem transitáveis.


Estou a falar duma parceria ambiental e que, nos dias de hoje, faria muitas bandeiras que as associações de defesa do ambiente não perderiam a oportunidade de usar; Ainda de asfalto vazias, as ruas da Abrunheira recebiam do parceiro Rio das Sesmarias, pelo menos uma vez em cada ano contado em dias duros de trabalho, as suas areias corridas nas correntes de água de invernos e primaveras chuvosos. O das Sesmarias era limpo do leito às margens e as ruas da nossa Terra eram arranjadas.


O começo da ceifa pelos campos cercados da Abrunheira trazia, de outras terras, ranchos de homens e mulheres que, usando foices, gadanhas e outros utensílios do ofício, desbastavam as searas aloiradas e dispostas ao sabor da nortada chegada a partir de Março. Antes da debulha suada em Verão ainda sem aquecimento global acelerado, o desassoreamento do leito do nosso “Amigo”, tinha as funções bem definidas. Areia, terra e restos dos verdes na água corrente criados – Se fosse neste tempo de agora, limpas de produto final de combustíveis fósseis que nos oferecem em super e mini - mercados, para lhes fazermos o fazer de consumir o necessário e o desnecessário – eram (as areias e o resto) distribuídas ao longo das ruas mais utilizadas com destaque para a principal.


Tudo ficava preparado para receber o aumento de tráfego que mais parecia o IC dezanove em hora de ponta. Nas boas vindas à debulhadora e máquinas acessórias, corrupio de carros de bois e carroças, a rua principal da Abrunheira Que muitos anos depois contados em tempo de vida difícil, haveria de chamar-se “Av. Movimento das Forças Armadas” em homenagem aos obreiros da libertação porque o Salazar demorou muito tempo a cair da cadeira e porque a Primavera Marcelista já não era e porque a guerra não acabava sozinha e porque a PIDE ou DGS ainda era – poucos buracos devia ter para não ser preciso força braçal a desempenar alguma roda.


Ao longo de grande parte desta vida, o Rio das Sesmarias fez parte da minha rotina visual. Para mim, Abrunheira sem rio, não era. Importa lembrar como de longe vem o nome do nosso Rio – Sesmarias!


Por todo o nosso País, pelo Brasil e em todas as outras Terras que foram colónias deste que já foi império, há referências a este nome, comprovando assim a importância desta lei, promulgada a 28 de Maio de 1375 pelo Rei D. Fernando I em Santarém. Pelo mundo há cidades, vilas e aldeias, rios ou serras que se chamam – Sesmarias! A nossa região não é excepção, e, decerto, o nome dado ao rio aqui na Abrunheira, é uma herança de há 636 anos.


Tal como acontece por todo o lado e com tantas outras coisas, o nosso Rio das Sesmarias, neste início da segunda década do século XXI, já não tem a importância que tinha. Na época em que a “parceria estratégica” era praticada, tratávamo-lo com todo o cuidado, estava sempre limpinho. Era da sua água que se regavam as hortas, que se dava de beber à sede dos nossos animais, na sua água, em sítios bem definidos, as nossas Mães/Avós lavavam a roupa, ainda num ou noutro local, faziam-se pequenas represas para que, quando o calor apertasse, a gente conseguisse disfarçar a distância da praia do mar. Neste mesmo rio, lá pró Carnaval, podiam-se apanhar enguias às dezenas e também os bons agriões porque da outra salada era preciso comprar semente, deitar na terra e esperar que crescesse.


O nosso Rio das Sesmarias, que muito morador da Abrunheira nunca viu e muito menos sabe o nome, tem nascente lá pelas bordas da chamada “Serra de Ouressa”, engrossa nas sobras da “Chancuda”, passa por baixo da estrada velha de Sintra e continua a correr entrando na Abrunheira por detrás da Quinta do Olival e saindo entre a Arroteia e a Beloura. Continua atravessando a estrada na Capa Rota junto à antiga “Casa da Água”, mergulha no vale do “Sebastião Moleiro” fazendo-lhe mover a azenha, roça por Manique de Cima e continua serpenteando, sendo mais respeitado nuns sítios que noutros, até encontrar a foz na Costa de Carcavelos.


Silvestre Félix

quarta-feira, 9 de março de 2011

POR ESSES CAMINHOS ACIMA…

Naquela época, “Por esses caminhos acima” chegávamos ao Linhó, aos Celões, a Ranholas e, mais perto e a direito, à Colónia. Hoje, só conseguimos chegar à Colónia ou, como se diz no papel, Estabelecimento Prisional de Sintra. E lá, muito tempo passado com anos contados em quatro paredes muito apertadas pela sociedade madrasta. Os homens feitos neste tempo enviesado e ausente de valores criados pela sua mão. Incapazes de fazer a curva do sucesso socialmente aceite.

Oh filho! Vê lá, tem cuidado, porque eles andam sempre por aí.

É verdade Mãe, eles andam sempre aí, mas não é só “por esses caminhos acima”, eles estão por todo o lado, nos sítios onde menos esperamos, aí estão eles.

Na maior parte das vezes estão ao pé de nós e não os vemos, tem ocasiões que até dizem que são nossos amigos e depois de contarmos dias, meses, anos se for preciso, olhamos duas vezes seguidas, «com olhos de ver…» sim, porque muitas vezes olhamos e não estamos a ver, e assim, «com olhos de ver», conseguimos descortinar que não são eles mas sim os outros, aqueles que a minha Mãe sempre me avisava:

Cuidado filho, não acredites sempre à primeira, tens de esperar o teu tempo, não vás de repente “por esses caminhos acima”.

O tempo vai sendo contado e muita água vai correndo pelo Rio das Sesmarias…. sempre a correr…. até quando não chove, ela, a água, corre…. corre, pelo Rio das Sesmarias, e, já no verão da vida, consigo também ver, «com olhos de ver», o contrário. É como se fosse um espelho ou como se conseguíssemos olhar para dentro de nós. Eu agora quero sempre olhar «com olhos de ver». A verdade dos sentimentos é tão firme e forte, como o leito do Rio das Sesmarias depois de assoreado para se lhe tirar a sujidade e as areias que mantinham a estrada principal da Abrunheira transitável. Ainda que só por lá passassem as carroças, os carros de bois e, uma vez por ano, a máquina debulhadora dos cereais produzidos pelas searas do meu Avô Silvestre (Velho).

O Sapateiro de Manique também tirava areia para marcar a eira que o seu rebanho de ovelhas, à custa de muita pisadela, ia fazer no Serrado da Fonte. E o bacalhau cozido com batatas que a minha Avó Gertrudes se encarregava de dispor para os comensais… e o Sapateiro de Manique, naquele ano e todos os anos antes e todos os anos depois… Oh patroa, o que é que pôs no bacalhau? Está cá um pitéu! Deite lá mais uma postinha… E, no Rio das Sesmarias, na linha de partida “por esses caminhos acima”, os princípios e os sentimentos só valem se forem como o seu leito: Profundo e limpo!

Assim conseguimos ser mais felizes e acreditar que podemos ir “Por esses caminhos acima”, mesmo que tenhamos de contornar os obstáculos da vida.

Silvestre Félix