quinta-feira, 8 de março de 2018

BOA VIAGEM, SINTRA E OUTRAS PARAGENS


Naquele tempo a “Boa Viagem” levava-nos diretamente até Sintra em 10 minutos e, a “Palhinha”, demorando mais ou menos o mesmo, até à estação de Algueirão-Mem Martins.

Nem nos apercebíamos a que distância estava o comboio, mas era muito perto.

Estávamos no rescaldo da revolução, muito atrasados em relação a tudo o que, finalmente, descobríamos existir por esse mundo fora.

A muitos anos de distância dos computadores, telemóveis e outras modernices, mas, em dez minutos, várias vezes por dia, podíamos utilizar os transportes públicos para rapidamente chegarmos a Sintra ou, simplesmente, ao comboio que nos levava a outras paragens.

Silvestre Brandão Félix
8 março de 2018

terça-feira, 6 de março de 2018

CÁGADO QUE NAQUELA ÉPOCA SE CHAMAVA MANEL

Cágado Mediterrânico

Aquele dia de quaresma, nascia com borriceira “molha-parvos”, e molha os outros também, digo eu. Não se tinha ficado, a borriceira, pela Serra. Desceu à Abrunheira, até ao lugar-de-baixo e mesmo ao “Caracol”.

Que o diga o Coutinho que era Bernardino que, ainda “lusco-fusco”, esticou a cabeça pelo postigo da porta da cozinha, como sempre fazia ao levantar-se, e logo sentiu o borriço na cara que, em boa hora, substituiu a ida matinal à bacia de esmalte, para, com dois dedos da mão direita, chapinhar na água gelada, diligentemente colocada pela Judite antes de se deitar, e esfregar, devagarinho, os dois olhos que a terra lhe havia de comer.    

Na certa, seria mais um dia igual aos outros daquele mês, fazendo jus ao ditado que muito se dizia e se ouvia: “Março, marçagão, de manhã inverno e à tarde, verão!”. Ou seja, ele, o dia, acordava molhado, mas, a pouco-e-pouco, ia abrindo e, ainda antes do almoço, estava limpo e solarengo.

A primeira quinzena de março anunciava a primavera e, já no dia anterior, a Judite lhe tinha dito, ter visto andorinhas a esvoaçar pelo lado do Peixoto, que é onde têm ninhos na varanda. O mesmo teria sido reparado pelo patriarca “Simão”, de negro brilhante e lindo bico alaranjado, e pela sua companheira, matriarca “Micas”, de negro menos brilhante quase castanho, e também bonito bico, mas amarelo, que, ao contrário do que os dois fazem durante o outono e inverno, desde há uns dias, já não passam a noite no cedro do muro, onde apanham os primeiros raios do sol nascente.

Quando as andorinhas chegam, eles, os dois inseparáveis, costumam passar mais tempo no cedro do lado do “zambujeiro” onde, durante duas ou três semanas, trabalham que nem uns desalmados, reabilitando o ninho do ano anterior nos “carrascóides” mais altos para, quando chegar a altura, ela lá pôr os ovinhos cinzentos quase azuis, donde, uns tempos depois, sairão os filhotes que, crescidos, aumentarão a família residente fixa de três casais ou, então, novos melros ao mundo darão, para outras paragens. Os outros dois casais, correspondem a duas fêmeas filhas do Simão e da Micas que, juntando os trapinhos com dois outros machos de fora, regressaram ao acolhimento dos seus pais e por aí têm feito a vida.

Tem dias que aparecem outros, mas, só vêm de visita. Sabe o Caracol, que, de entre esses outros casais, vem com alguma frequência, um também diferente. O macho, tem o bico com um tom alaranjado mais carregado, quase vermelho e, a fêmea, do seu lado direito a seguir ao bico bem amarelo, trás um conjunto de penas ou penugem, quase brancas. São inconfundíveis. Acha o Caracol que eles também o conhecem bem e que, se o Simão e a Micas não estivessem cá, eles ficariam por aí a fazer-lhe companhia.  

De todas estas andanças, é sabedor o Caracol Velho que, em virtude da constante presença a três, desde que por ali apareceram aquelas lindas criaturas, os olhares e rotinas ocorrem como se fossem bons entendedores da mesma espécie.

As dobradiças já andam um bocado ferrugentas e, as botas, já lhe pesam muito, de maneira que, boa parte do dia, de cachimbada sempre ativa e fumegante, senta-se no banco à entrada do alpendre, bem abrigado da aragem corrente e com o sol a bater-lhe só nos pés e nas pernas, reparando e apreciando tudo o que se passa com a “passarada”. Foi ele que batizou o casal de melros que, adora. Na brincadeira disse à filha Judite e, ela, nunca mais deixou de falar do Simão e da Micas, como se da casa fizessem parte.

Quando estão à vista, vão reagindo conforme ele se senta ou se levanta, anda ou está parado, acende o cachimbo, levanta o sacho ou o poisa. Todos os movimentos têm uma resposta. Mais interação têm os dois, mas o Simão primeiro, quando o Caracol ou mesmo a Judite, metem pevides, cevada, milho ou trigo num vaso de barro que está, para o efeito, encostado ao muro antes do portão de baixo. Ele, o Simão, deixa passar um bocado para dar tempo a que se afastem e esvoaça logo direto ao vaso. Ela, a Micas, também voa na mesma direção, mas só vai ao vaso quando o Simão, sai. Raramente ficam os dois juntos no vaso. Curiosamente, nenhum dos outros melros, que alguns serão filhos, filhas ou netos do Simão e da Micas, vão ao vaso, mesmo que lá tenha alguma coisa.

Eles, naquele dia logo cedo, ainda antes do Caracol aparecer, observaram o Bernardino que não é Coutinho que, alheio a toda esta vivência, depois de ter esfregado os olhos e emborcado as sopas de “cavalo-cansado” que a Judite lhe preparou, saiu porta fora, coberto com o oleado para não se molhar e rumou ao lugar de acima como era costume, para laborar mais um dia na abertura da vala que havia de transportar a água para as casas dos abrunhenses. O Simão e a Micas, como acontece quase todos os dias, miraram os passos pesados do marido da Judite, até aos zambujeiros acima das “Pateiras”. Há uns meses que o Coutinho que era Bernardino andava nisto e, o grande buraco, ainda estava agora a sair do Largo do Chafariz e a chegar ao João de Leião. Muita terra e muita pedra aqueles fortes braços removeram, desde que, de picareta ao alto, se decidiu por este trabalho.

Perto do almoço, paredes-meias com o Rio-das-Sesmarias antes de passar debaixo da ponte da Colónia, na horta, gozando os prazeres da água quase corrente que, alcatruzes abaixo e acima à custa das rodadas que a “Carocha” dava à volta do poço, o Manel, que naquela época era cágado, bem sossegado na beira do tanque, esperançado em apanhar uns minutos de sol por cima da borriceira da manhã, levantou devagarinho a cabeça, para olhar bem nos vivos olhos dos melros mais bonitos que alguma vez tinha conhecido.

E as bonitas aves, ele e ela, beberam água no tanque e, o Manel, que naquela época era cágado, observou, seguro e contente a presença daqueles dois. Junto a ele, no tanque, vinha este casal de melros, pintassilgos, rolas, pitinhas e até pardais de telhado. Ele gostava!

Quando o puto, “atirado” a hortelão lá ia, ele, simulava mergulhar, mas, conhecendo-lhe a bondade da companhia, não o fazia e até se deixava pegar e olhava nos olhos do puto que se ria a “bandeiras-despregadas”.

O Manel, que naquela época era cágado, gostava do puto e sabia do Caracol e da sua filha Judite. Sabia, que lá, no fundo do lugar-de-baixo onde eles moravam, a paz reinava no coração deles. Até o Coutinho que era Bernardino, rude e bruto nos seus modos, era do bem. Outros eram do mal e o cágado Manel, sabia.

Ele, o Cágado, que naquele tempo se chamava Manel, não via televisão, não lia jornais nem revistas, não tinha internet e, por incrível que pareça, nem Facebook, mas sabia tudo. A Abrunheira não tinha segredos para ele, mas como? Sendo o Manel, naquela época, cágado, como poderia saber das promessas não cumpridas e das mentiras constantemente metidas?

Oh inteligência! Então e o que iam fazer os melros, os pintassilgos e a outra pardalada, todos os dias, à beira do tanque da horta?

Silvestre Brandão Félix
6 de março 2018
Foto: Cágado Mediterrânico (Google)
(Escrito ficcionado. Alguns nomes e locais reais, outros não)
   

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A ÁGUA CORRIA LOUCA, A CONDESSA E AS ENGUIAS

«— Pelos “Reis”, a “corrente” do meu leito, corria louca por esses vales abaixo. Água com fartura que, muitas vezes, até saltava fora como se restos de alguma indigestão fosse. Mas, não! Muito bem-disposto me sentia nesses tempos. Todos vinham ter comigo; a forte nascente da “Chancuda”, dos “Barros” e da “Charneca”. Engrossadas as “correntes” com as chuvas da época, quando me tocavam e no meu largo “leito” entravam, davam razão de ser à minha existência.

— Rio Das Sesmarias, me batizaram os abrunheirense, possivelmente lá pelos tempos do Rei Fernando, o primeiro de nome e o último da dinastia fundadora deste, que era “reino”, e já, “à beira-mar plantado”, corria o último quartel do século XIV. Sim, porque o segundo Fernando, havia de muito andar por estas bandas por ser consorte da Maria II e, por isso, regente à sua morte, enquanto o Pedro, que havia de ser quinto e muito depressa. No Ramalhão lá está a sua estátua. É responsável pela plantação de muita árvore na Serra e pela construção do Palácio da Pena e do mesmo parque. Havia também de construir, lá, o Chalé da sua segunda esposa; a Condessa D’Edla que, coitada, a rotunda organizadora de andantes fumarentos, lhe haviam de dar o seu nome. Que infelizes são, os inteligentes que nada sabem.

— Água com fartura e, toda a vida junto a mim, se compunha, crescendo com vigor para atingir o auge a meados de março, começo da primavera. Aí, mantinha a minha zona de influência com humidade suficiente para tudo ir crescendo e tomando cor.
  
— Pelos “Reis”, contra a “corrente”, começavam a subir as enguias que, passando pelo cano da horta, chegavam ao poço, cada vez em maior quantidade.

— A “mina” do Santo António, nestes meses, chegava à altura da porta e corria com mais força para os tanques que, assim, depressa renovavam a lavagem e voltava a chegar, outra vez, até mim, que, pelo leito abaixo, a tempo de apanhar a confluência da “regueira” do “Anjinho” e, pelos “Quatro-Donos” e “Arroteia”, depressa na Capa-Rota e Manique, estava.»

Assim, era, o Rio das Sesmarias! Todo o ano com água. As nascentes debitavam-lhe o precioso líquido e mantinham “corrente” no leito. Quando chovia, enchia e transbordava, mantendo-se cheio durante muitos dias.

Agora… agora alguma água corre quando chove muito. É preciso mesmo chover muito. Ao fim do dia seguinte, a água desaparece.

Por estes “reis”, choveu e matei as saudades de ver o Rio das Sesmarias com água corrente. Foi só um dia.

Toda a gente tem conhecimento deste crime. Sim! Porque se a água não chega aqui, é porque vai para qualquer outro lado… ou não?

Silvestre Brandão Félix
15 janeiro de 2018
Foto: Condessa D'Edla (Blogue riodasmaças) (Google)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

NATAL E ANO NOVO


Desejo a todos os meus amigos e amigas que habitualmente visitam este blogue, um feliz Natal e ótimo ano de 2018. 


Que a amizade e a fraternidade vençam todas as adversidades da vida e, acima de tudo, que haja muita saúde.


Beijos e abraços para todos!


Silvestre Brandão Félix

20 dezembro de 2017

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

POPULISTAS, O BALTAZAR E AS OVELHAS COM O CIO

Sem saber como, em menos de nada, o Manel Fingido estava com os quatro costados no chão. Ainda com as pernas a dar-a-dar, no ar, cabeçorra ao léu porque, com a queda, a boina voou como se ventoinha fosse, gritava:

— Ai! Ai! Ai! Que o cabrão do carneiro me mata! Tirem-no de cima de mim… ai, ai, ai… que eu morro já aqui!

Enquanto o Manel Fingido gritava e tentava levantar-se, o Tavinho, nas calmas dele e adivinhando o motivo de tamanha algazarra, porque, logo pela fresquinha, o Baltazar lhe tinha arreganhado a dentuça, deixou o que estava a fazer e, à entrada da casa das vacas, confirmando o suposto, assobiou e chamou-o.

Pois é! Mais uma vez, o Baltazar tinha feito das suas. Desde borreguito que tinha tomado o Largo do Chafariz como território seu e, ameaça que se aproximasse, não hesitava nem perdoava; recuava um metro ou mais para tomar balanço, raspava o chão duas vezes e, empinando-se só com as traseiras no chão, com toda a força, corria com a encaracolada cornadura bem apontada e raramente falhava o alvo.

O Baltazar, que continuava a marrar no Manel, que se mantinha no chão com as mãos rodeando a cabeça, como se, de bombardeamento se protegesse, estancou e virou-se na direção do Tavinho. Lá foi, como um cordeirinho manso, roçar-se nas pernas do dono que ainda ria com mais esta investida do carneiro Baltazar.

Finalmente, o Manel Fingido lá se conseguiu levantar e, olhando à volta, louco de raiva ficou, quando percebeu que esteve a dar espetáculo para muita gente. O Álvaro foi o primeiro a virar costas e a recolher ao interior do balcão, o Ti Hilário, que tinha acabado de chegar, disfarçou e, assobiando a melodia do fado do trinta e um, porque era quinta-feira, se fosse sexta, teria assobiado a do fado hilário, também entrou na taberna atrás do Álvaro. Para ele, estava na hora de mais um copito de dois branquinho, para abrir o apetite. 

Por cima do muro do quintal, também o Zé da Maria Alice tinha espreitado a sessão. Até os gansos, parados do lado de cima do Largo, assim lado a lado, como se fosse uma plateia, estiveram quietos e observadores enquanto durou aquela desigual luta. O Zé da Natália e outros mais da Natália que houvesse, também tinham assistido à “sessão” do Baltazar, mas, devagarinho, desandaram.

Muitas vezes o Ti Veríssimo, embora achando graça ao carneiro, tinha avisado o filho do perigo que era aquela “fera”. Até a Ofélia, vezes sem conta, pedia ao Tavinho para acabar com a brincadeira, mas não havia forma disso acontecer.

O Manel Fingido, amachucado como estava, certificando-se que o carneiro não estava por perto, foi ter com o Tavinho pedindo-lhe satisfações e exigindo a sua responsabilidade. Este, desculpando-se com a maluquice do carneiro, enfim, que era para defender as ovelhas… que quando havia ovelhas com o cio, era este desatino e mais assim e assado… porque tinha que lhe andar sempre a pôr o avental e que, hoje, ainda não tinha tido tempo de o fazer.

O Manel não estava a achar graça nenhuma às explicações do Tavinho. Mas o que tinha ele a ver com o cio das ovelhas? E o avental? Mas que raio de conversa era aquela?

O Ti Hilário, com o característico sorriso nos lábios, bebido e bem saboreado o “branquinho” que o Álvaro lhe encheu, encostado à ombreira da porta, assistia às atabalhoadas explicações do Tavinho ao Manel Fingido. Do seu peculiar silêncio, como era costume, retirava e ia reverter para o futuro, aí, pelo menos, cinquenta de tempo contado em anos, o espetáculo que seria, o Baltazar solto, sem avental, deambulando pelo Largo do Chafariz.

O Ti Hilário, embora às vezes parecesse, não se ria sem razão. Uma ou outra, pela forma habilidosa como conseguia dar a volta à Ti Natália, mas, a maioria, quando do seu silêncio retirava e revertia imagens muito para além, no tempo, como as que naquele dia tinha visto: 

Figurantes muito “papagueadores”, com uma espécie de cartazes com ditos “populistas”, que, por estarem uns atrás dos outros, o Baltazar os considerou como potenciais ameaças para as suas ovelhas com o cio.   

Bom, nem queiram saber, aquilo era marrada atrás de marrada, papagueadores e populistas pelo chão, uns de barriga para cima, outros de barriga para baixo ou de cócoras, promessas e compromissos a voar por tudo quanto era lado e, na mesma posição calma e silenciosa, encostado à ombreira da porta do Álvaro, fumando a sua inseparável beata, o Ti Hilário sorria, ensaiando uma alegre gargalhada para mais tarde.

O Baltazar não era só o guardador do rebanho, outros lhe chamaram, meio a sério, meio a brincar: O justiceiro popular!

Silvestre Brandão Félix
6 dezembro de 2017
Foto: Google
Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base mais-ou-menos verdadeira, mas são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não. 

terça-feira, 28 de novembro de 2017

DESTE LADO DA SERRA, A INSEGURANÇA E OS SONHOS DO CABOUQUEIRO

“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.

Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam, o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era “Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.

Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha metido na sacola, antes de sair de casa.

Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.

Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou para a direita?

— Que raio… onde é que eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)

— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga. É só, se vou para um lado ou para o outro!

Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja, para o lado direito.

Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a consciência estava-lhe pesadona.

Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.

Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.

Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR porque brincadeiras destas não se faziam.

E o das “Sesmarias” perguntava:

— Mas qual GNR? Não há aqui nada disso!

— Há, sim senhor! Eu posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR na Abrunheira. (dizia o Coutinho que era Bernardino)

Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.

Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.

Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.

Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.

«Um GNR e uma GNR, saíam do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira, debaixo do braço.

Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”, continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro, tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das ferramentas, que estava no sítio do costume.»

O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.

Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no sítio onde, no sonho, elas ficaram.

Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo (retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na Abrunheira-2001.


 

  

terça-feira, 21 de novembro de 2017

PARA CÁ DE QUELUZ E O SOSSEGO DA ABRUNHEIRA

Depois da Estação de Queluz, as janelas começavam a ser fechadas. O ar entrava fresquinho e sentia-se que, lá fora, o vento soprava. A temperatura e o cheiro de Lisboa, iam ficando para trás. O reboliço do Rossio, do Cais do Sodré, da Duque da Terceira, rua do Arsenal e do Alecrim, ficavam para o dia seguinte.

Fui-me “construindo” nesta dualidade de vivências. A ruralidade da Abrunheira e a urbanidade da grande Capital. Sempre gostei das duas.

Sabia-me bem participar nas movimentações de muitas pessoas; o comboio na hora-de-ponta, a Estação do Rossio, os passeios cheios e a necessidade de me desviar das que vinham de frente, sempre assim, subindo até ao Largo do Carmo, onde, em abril, o Capitão Salgueiro Maia pôs o antigo regime de joelhos, pela Trindade e Chiado e descendo até ao fundo da rua do Alecrim. O trabalho durante o dia, o convívio com os colegas e, ao fim da tarde, o regresso ao sossego de Sintra e da Abrunheira.
  
Das mangas-curtas pelo calor da beira Tejo, passava a manga cumprida ou mais uma peça de roupa para compensar o fresco da chegada a Sintra. Na Abrunheira, pelo Largo Chafariz e pela rua principal, ainda se pisavam muitas caganitas de ovelha e, não poucas vezes, era requerida habilidade, para ziguezaguear por entre “bostas” de vaca. Na Abrunheira, pelo Largo do Chafariz, pelo Santo António ou por outros caminhos, ainda se cheiravam “perfumes” do campo.

Nos terrenos à volta, para lá da ponte e até à colónia e aos celões, ou a seguir ao Ti Alexandre nas pateiras, ou para o caracol até à arroteia e aos quatro-donos, ou para lá do forno nas maçarocas, ainda vi ondulantes searas de cereais. Na altura do crescimento do trigo, cevada ou aveia, e com olhar abrangente, o vermelho das papoilas, o lilás dos lírios, o amarelo dos malmequeres e os azuis das alcachofras, completavam a beleza da nossa ruralidade. Eu não sabia que gostava tanto disto, mais ainda, quando as cigarras e os grilos não paravam de cantar.
 
E depois, beber a bica no Manel num copinho de vidro e, quando os mais velhos deixavam, uma partidinha de damas. Havia autênticos campeões. Lembro-me por exemplo, do Batista, do Caracinha, do Chico Chamiço ou do Durães e mais outros, que não me lembro os nomes. Da nossa classe, o campeão era o Rui.

Mais tarde, passamos a ir bebê-la ao Ramos/Cabaço e as jogatanas de matrecos e de kingue. Muitas horas de paleio. As conversas eram sérias. Até os namoricos eram sérios. Alguns vingaram, outros nem tanto. Tudo isto me confortava no regresso. Lembro-me de todos e todas, de cada um e de cada uma.

Algumas horas de cama e a Ti Augusta não me dava folga. Uma tigela de sopas de café (cevada) com leite e toca a andar, que se faz tarde.

De volta à Capital e, nas olhadelas pela “janela-do-terceiro-andar”, conseguia ver tudo. Já algumas vezes disse que, por lá, via o mundo. É uma maneira de lhe atribuir grandeza, por tantas imaginadas imagens, que me chegavam.

“Daquela-janela”, ainda vi fragatas e faluas no Tejo, provavelmente a pouco tempo de, definitivamente, desaparecerem, mas também vi muitos petroleiros ancorados no mar da palha, esperando pela vez de entrarem nas docas da “Lisnave”. Vi muitos “cacilheiros” trazendo e levando pessoas, entre as duas margens. Vi muitos “amarelos” subindo e descendo a rua do alecrim e outros “verdes” que já muito poluíam o ar, como o 8, o 44 ou o 45.

Lá, “da-janela”, via pessoas boas e más, homens e mulheres, adultos e crianças. Olhando mais para baixo, ligeiramente à direita, conseguia ver quem entrava e saía do “Bragança”, utilizando as escadinhas e a mesma porta do “Eça”, aquele, que era “Queiróz”. Ainda, mais por debaixo, via a “velha” Nova do Carvalho dos bares que, no tempo de agora, virou moderna, a abarrotar de gente bem-bebida e “cor-de-rosa”.

“Da-janela-do-terceiro-andar”, via, ao longe, muito longe, navegando pelo “Atlântico”, centenas de compatriotas a caminho da guerra. Na Rocha Conde de Óbidos, tinham-se despedido das mães, dos pais, das namoradas e, por aí fora, pelo mar, compunham expectativas bem incutidas nas cerebrais, pelos especialistas da matéria, em sessões contínuas.

No sossego da Abrunheira e do alto da nossa varanda, com o sol já atrás da Serra escondido, conseguimos um recorte único. Muitas vezes tive saudades desta visão. Este lado da Serra era e é, lindo e acolhedor.

Silvestre Brandão Félix
21 novembro de 2017
Foto: Minha-2010 Recorte da Serra de Sintra tirada da Abrunheira