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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

SANTO ANTÓNIO E O GALO, O RIO E PARA ONDE FOI A ÁGUA

“Outro galo (não) cantaria”, não fosse, a vontade, a dedicação e a paciência do Vicente da Colónia, de lá, ter trazido, o cata-vento que, por obra e habilidade dos dois da Virgínia, o Ti Zé e o Ti Manel, com a serventia do Albano e de muitos outros abrunhenses – incluindo o meu pai Zé, que, para todos os efeitos e conhecimento, lhe chamavam Zé Silvestre e ele aceitava, sendo o acrescentado, como era uso, nome do pai, que, neste caso, era meu avô e padrinho de batismo – o terem colocado no “carrapito” do telhado-alpendre da bica, ali armada, em honra do Santo António que, desde aquele longínquo início da segunda metade do século vinte, passou a ser, também, Da Abrunheira.

Água com fartura, muitos dias até demais porque, à volta dos bebedouros e dos tanques de lavar a roupa, se chapinhava e, quem lá fosse, cuidado tinha de ter, para não enfiar os calcantes na lama, muitas vezes bem misturadinha com o resultado da remoedura, digestão e eficaz transito intestinal, das vaquinhas, Marcina, Estrela, Bonita e, muitas vezes, também da Carocha.    

Todos eles, os mestres construtores, serventes e mais abrunhenses ajudantes e, depois, os utilizadores da bica, da mina, das pedras roçadas de tanta roupa lá ser batida, e da água limpinha que bem lavava e voltava a correr sempre nova, e bem como as minhas vaquinhas e a Carocha, se indignariam com as patifarias e sem-vergonhices levadas a cabo por prevaricadores sem rosto, se por cá voltassem agora – em tempo de (des) uniões da europa, de freguesias e com dois amalocados em cada ponta do planeta, a disputarem a sua própria destruição – e vissem como está tudo seco de água, tanto no verão como no inverno.

E a mina, de água cheia sempre estava, boa e gostosa para matar a sede, agora, se se abrir a porta, em fossa pestilenta está transformada.

Onde está a água? Para onde foi? Perguntariam a Ti Maria do Florindo, a Ti Maximina ou a Ti Silvéria.

Protestaria, e muito, pela seca, também o João Barriga ou Ti Artur Germano. Não era, que muito amantes fossem de água lisa da bica do Santo António ou de qualquer outro sítio. Como acontecia com a maioria dos homens e, porque não, de algumas mulheres da Abrunheira, para bebida ia melhor tinto ou branco, desde que estivesse cheio, o copo ou a garrafa, e amarinhasse até aos neurónios e os deixasse contentes e anestesiados para uma boa sesta.

Do mesmo mal, da falta de água de verão e da maior parte do inverno, se vem queixando aos amigos e atravessadores, o Rio das Sesmarias. Sim, o mesmo que, num projeto camarário parido à pressa e com o cordão umbilical a apertar-lhe o gasganete, lhe quiseram trocar o nome e a categoria.

Classificaram-no como ribeira e deram-lhe um nome de uma terra que está pertinho do Estoril. Aqui, na Abrunheira, sempre se chamou Rio das Sesmarias e é assim que queremos, continue. Porque “carga-de-água”, agora haveria de ter um nome diferente? Os “senhores-inteligentes”, se não sabem, venham perguntar aos abrunhenses como se chama o seu rio.

Retomando as queixas do nosso Rio das Sesmarias, constata-se que há uns tempos, o seu leito está mais tempo seco do que molhado, ao contrário do que era habitual. Mesmo no inverno, corre sempre de fininho até vir uma chuvada. Aí, sobe até meio e, em poucas horas, volta ao “fininho”. Se não chover nos quinze dias seguintes, de “fininho”, passa a parado até voltar a chover outra vez. No verão, seca completamente.

Os atravessadores agora são muitos, mas como a maioria passam encavalitados em andantes de duas ou quatro rodas, sempre cheios de pressa e a grande velocidade, não há oportunidade nem tempo de entabular uma conversa digna desse nome, para além de, nem repararem na presença do nosso Rio das Sesmarias. Diz ele, que tem saudades da companhia do “Artista-Sapateiro”, Ti Joaquim Caga-a-Chuva e do “Cabouqueiro” que tinha a “Ciência-da-Pedra”, Coutinho que era Bernardino.

Eles sabiam, tal como o Rio das Sesmarias, tanto no tempo em que a Ti Mariana Soleto, mãe do Bernardino que não era Coutinho, dele tomava conta, como depois de se ter entregue aos carinhos da Judite Caracol, e do Ti Joaquim ter vindo com a Margarida dos “ditos-e-contos”, do Linhó, para a nossa terra, que todos os viventes que acompanhavam o seu leito desde o cimo da Abrunheira, no Olival e por trás do Cipriano, em frente à horta e por baixo da ponte da colónia, por trás do Santo António, pelos quatro-donos e arroteia até à casa-da-água, passando pela Azenha do Sebastião Moleiro na Capa-Rota, e por aí abaixo iam até à foz, foram morrendo e, hoje, nem enguias que, quando passavam pelo cano até ao poço da horta, eram quase da grossura dum braço, nem ao menos rãs, sapos ou girinos, sobrevivem no pouco tempo de água.

Voltando ao Santo António, que em boa hora tem, neste tempo, cuidadores dedicados que garantem a dignidade do sítio, mesmo que a água corrente já lá não esteja. Somos gratos por esse cuidado e dedicação.

Em tempos, outras e outros cuidadores, pelo local olharam. Lamentando o meu fraco índice “memorial”, decorrente do crescente “litígio” à medida que a PDI avança, com a desorganização dos ficheiros de nomes no rígido, que cada vez está mais mole, torna impossível indicá-los sem os inevitáveis falhanços. De maneira que, quando me surgem dúvidas, não arrisco nomeação, ficando com o ónus de alguma injustiça pela omissão.

Um que nunca esqueço, não sei se alguma vez assumido, o de cuidador, mas, pelo menos, guardador de proximidade, foi. A horta por cima da mina, era o seu local de trabalho preferido e, de hortelão, sabia ele. O Ti Mendes, com aquela comprida barba amarelada, por causa da fumarada que permanentemente por ela passava, dava-lhe um ar de sábio. Acho que, de verão ou de inverno, de casacão se vestia e, dos seus grandes bolsos, sacava os cachimbos que ele construía a partir das melhores canas da horta.

Grandes baforadas, deitava, em troca da ausência de faladura. O ritual enchimento da grande fornalha, caracterizava-se pela função imprescindível daquela grande unha, calcando o tabaco para o seu interior. 

Por ali, sempre se via e, se não estivesse, era porque ia até à casa da fruta do Pechincha, ou subia pelo Largo do Chafariz até ao Álvaro ou à “Menina-Emília”. 

Típica figura que associo sempre ao Santo António. Também o Ti Mendes, hoje, sentiria falta da água corrente da mina e, por consequência, do “treu-laréu” do mulherio a lavar a roupa nos tanques.

Para onde foi a água?

Silvestre Félix
18 de setembro de 2017

Fotos: Google (publicadas no extinto blog «aldeiaviva)

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

VERÃO NO FIM, COMEÇO DAS AULAS E PANFLETOS DA CAMPANHA ELEITORAL

Mais de trinta graus a caminho dos quarenta, é muito para um abrunhense ou abrunheirense, como outros afirmam ser correto dizer-se. Bom, duma maneira ou doutra, trinta e tal graus não deixa de ser calor e, ainda mais, se o nosso providencial ventinho estiver de folga. Dirão alguns; é verão, por isso natural que estejam trinta e tal graus. Pois, é verdade, digo eu. Mas então, como explicamos a um neto ou uma neta, que tem de ir para a escola durante o verão, que, em boa verdade, está associado (o verão) a férias, praia, preguiça, forrobodó, etc.?

Eu, quando pela “Quinta do Olival” passava, tomando a esquerda e, mais acima, depois da curva, virava à direita junto à taberna do (depois do Faial) Ramos e enfiava pela azinhaga da pia até um pouquinho antes da entrada para a Escola, nunca o fazia antes de 7 de outubro. É verdade, naquele tempo do “botas”, as escolas começavam todas nesse dia, desde que não fosse sábado ou domingo.

Pela Abrunheira, mesmo com ventania, o mês de setembro era de férias e o pessoal do Casal dos Icos não dava tréguas à brincadeira. Bem comandados pela Luizinha, o bando brincava, rezingava, pedalava e descansava até final do mês. 

Porque assim era, o nosso saudoso Júlio Silva, só levantava a tenda de campismo da Lagoa de Albufeira, no feriado (que uns inteligentes há pouco tempo quiseram eliminar) do 5 de outubro. Nesse dia, fazia-se o último banho salgado da época e era cozinhado o último almoço na praia, pela nossa querida Laura. Dois dias depois, os rapazes e raparigas começavam a Escola.

Ainda escrevendo sobre altas temperaturas e fortes ventanias, uns quantos contados em anos mais tarde, quando por outros mundos andava, duas principais coisas, para além da família, me faziam sempre falta: Não ter à vista a torre do Palácio da Pena e, se o destino fosse África da Lusofonia, o ventinho que pela Abrunheira passa a maior parte dos dias do ano. É claro que gostaria de ter comigo outras “serventias”, mas, estas duas, eram as mais importantes.

Voltando outra vez para trás e ao uso das fontes, chafarizes e “saudosas” águas correntes do Rio das Sesmarias todo o ano, não resisto à tentação de puxar pela imaginária de cordel e ao vício incontornável de falar de abrunhenses ou abrunheirenses que, também, muitas vezes passaram pelo Largo do Chafariz, sentindo o vento e, claro está, o saudável odor, resultado das necessidades fisiológicas que, todos os animais, enquanto matavam a seda, ali deixavam.   

Então, ainda de calor e vento escrevendo, de certeza, que as mesmas queixas tiveram, não poucas vezes, o Coutinho que era Bernardino e tinha a “Ciência-da-Pedra”, e o Sacadura que era Francisco Borrego e não se lhe conhecia ciência nenhuma, que, fiando-se no ventinho da nossa “Terra”, daquela vez lhes faltou e a tornaram Brasil do Atlântico Norte – assim como se fosse um regresso às origens como conta o Laurentino Gomes no 1822 – numa aventura que, em vez de aeronáutica, se tornou acrobática, quando foram os dois parar com os quatro costados ao chão.  

Vestígio da nossa brasilidade, o Café Brasil, lá em cima, na avenida dos combatentes. Pois então, a única razão porque o Manel batizou assim o café, foi a dita aventura, sonhada pelos abrunhenses ou abrunheirenses, Coutinho que era Bernardino e Sacadura que era Francisco Borrego, que assim se tornaram padrinhos da alcunha de “Brasil” que a nossa Terra tomou, até aos da minha geração. Daí para cá, foi-se perdendo o sentido da alcunha e, hoje, rapaz ou rapariga que, nestes primeiros dias deste mês, já será “despejada(o)” na grande escola, saberá, sim, onde é o Brasil das telenovelas, mas desconhece onde é o outro “Brasil” deste lado do Atlântico.    
   
O Bernardino que não era Coutinho, porque o trabalho na pedreira do Ti Miguel, para além da “Ciência” que aplicava em cada operação de quebradura bem medida, tinha de ter a força física requerida para que o resultado fosse o pretendido e, as temperaturas altas, não eram nada amigas desta arte da pedra, levada, muito a sério, pelo genro do Caracol Velho.

Nem a Judite Caracol, sua mulher, se dava bem com o calor. Pois é, ela, mulher de muitos quereres e saberes, quando a temperatura ia alta, logo adivinhava que tarefa extra ia ter nesse dia. Lá mais para a tardinha, espreitar pelo Faial ou Ramos, pelo Álvaro e Menina Emília, até encontrar o Coutinho que era Bernardino e lavá-lo para casa já com muitos “gãos-na-asa”, ou seja, muitas ciganas e charretes metidas no bucho.   

O Francisco Borrego que não era Sacadura, também não se embeiçava com o calor e com a falta de vento. Se assim fosse, não teria dito: “empurra agora que faz vento”. E, como todos já sabemos, embora eles tivessem atirado as culpas para a falta de vento, não foi por isso que foram direitinhos ao chão.

O reclamante abrunhense ou abrunheirense, para o caso tanto faz, que, no que toca ao calor o faz pelo excesso e no extremo, já, no que ao frio diz respeito, a coisa vai pelo contrário. Não há frio que “chegue-aos-calcanhares” dos dias em que, de manhã, encontrávamos as covas do jogo do bilas, cheias de gelo. E também, a caminho da Escola, junto à “Vivenda Juveniana”, onde ainda está o sítio, mas de azulejos nada, a nascente que ali corria, ficava coberta de gelo. A gente quebrava-o e, dali a bocado, já estava outra vez na mesma.

O companheiro Rio das Sesmarias deixava que, nos cantinhos, junto às margens, a sua água gelasse um bocadinho e, passando, com sua licença, para a outra margem junto à horta do Manel da Colónia e à casa do Ti Joaquim, as pedreiras do Ti Miguel, lá mais acima, laboratório da “Ciência-da-Pedra” do Coutinho que era Bernardino, no inverno formava pequenas lagoas cobertas de gelo. Havia anos em que o Zé Augusto, atreito à aventura, conseguia andar por cima do gelo sem que se partisse.

Relendo a prosa que já vai longa e, quando digo, «altas temperaturas e forte ventania», alguns dos meus amigos, com certeza, pensarão que de campanha eleitoral, irei falar.

Não! Estejam descansados que a minha disposição, neste particular, é igual à dos candidatos. Tudo calmo e sem se falar de nada. Completamente ignorados e esquecidos. Curiosamente, nem promessas há. Claro, estou a referir-me à nossa Terra, quanto muito, à antiga (que espero ainda seja recuperada) freguesia de São Pedro de Penaferrim. 

Silvestre Félix


Abrunheira, 6 de setembro de 2017 

Fotos: (Google)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

NORTE DA ABRUNHEIRA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA AO PÉ DE CASA.

— Desnorteado estou eu, com a ventania que por aí anda! Diz que não, diz que não te tira o sono e depois queixa-te!
— Oh Coutinho, mas então, o que me interessa a mim, o que vai acontecer daqui a cinquenta ou sessenta anos?
— Ai não te interessa, não?
— A mim, não! Nessa altura já sou tijolo bem ressequido.
— Pois a mim interessa-me, e muito. Estão a meter-se com o nosso amigo Rio-das-Sesmarias. Eu cá, já estou habituado às “trocas e baldrocas”; tanto me chamam Bernardino que não sou Coutinho, como Coutinho que sou Bernardino e outros nomes e alcunhas que agora não vem ao caso, mas, com o Rio-das-Sesmarias, “fia mais fino”. Nortadas à parte, não posso “levar à paciência” que lhe troquem o nome.
— Concordo contigo mas …
— Mas o quê??!! Não me digas que não te importas que, passando muito tempo lá para a frente; contado em anos pr’aí uns cinquenta ou sessenta, venham uns gajos de gravata dizer que não eras Artista-Sapateiro, que ignoravas a “geografia-ao-pé-de casa”, que não usavas boné, que te chamavas Manel e que cagavas ao sol em vez de o fazeres à chuva?
— Tens razão, Coutinho! Mesmo já não andando por cá, sabendo duma aldrabice dessas, não ficava nada satisfeito. Estou disposto, contigo e com quem mais tu achares de valia, a lutar pela verdade, eliminando, com quantas cajadadas for preciso, a ignorância e o desnorte que por aí abunda.

E os dois “Abrunhenses” lá foram andando, do “Lugar de Baixo”, a sul, para o “Lugar de Cima”, a norte. Passaram o Santo António, o “Espanhol”, o “Silvestre-Velho” que, como comandante à proa do navio, do alto da varanda, olhava os trabalhos a decorrer nas terras abaixo da Colónia e até ao Linhó, pela esquerda e, à direita, até aos “barros” — sessenta, contados em anos de tempo para a frente, os “inteligentes”, chamar-lhe-ão: Norte da Abrunheira-Norte — mesmo à beirinha da estrada, do lado de cá da “chancuda” que, para além da nascente, ainda recebia muita água da regueira, desde o “penedo”, rentinha ao fundo do “Casal-Novo”. Tão absorvido estava que nem respondeu à saudação dos dois passantes. Aproveitando bem o tempo solarengo, em conluio com o São Martinho, o “Silvestre-Velho” mobilizava as suas duas juntas-de-bois e todo o pessoal disponível, acelerando o amanho para que, antes do Natal, grande parte das sementes estivessem na terra. Da varanda, e como se todos o ouvissem e vissem, bracejava e gritava os impropérios do costume — Ah, “almas do diabo”; “raios-os-partam”; “filhos duma égua”; etc., etc.,.

Caminhavam pela “principal”, com o amigo Rio-das-Sesmarias à esquerda, correndo no sentido inverso ao deles; de norte para sul. Podiam ter metido pela “Azinhaga do Rio”, à esquerda, a seguir ao quintal do Rafael Coxo e junto à escolha da fruta do “Pechincha”, mas não o fizeram. Sob o olhar e cumprimento do Ti Mendes, que muito fumo pelas beiças e ventas deitava, por cada forte puxada no bocal do cachimbo de cana feito, rumaram na direção do Chafariz e o destino era a taberna da “Menina Emília”. O Coutinho que era Bernardino estava com ganas de emborcar uma “charrete” e, o “Artista-Sapateiro”, também.

Ambos sabiam que “o norte” era o caminho daquele dia e daquele tempo. Por aquela que, vinte, mais tarde, contados em anos, seria a “Travessa do Norte”, e a desembocar na “Rua das Sesmarias” filha adotiva do nosso RIO que, pelo menos, lá pelos tempos de D. Fernando “o primeiro”; se passou a chamar, aqui, na Abrunheira; “Rio-das-Sesmarias”. Que não se contem os anos, desde o princípio do último quartel do século XIV, que são muitos e tempo suficiente para que, para lá da profecia; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, não se admita tamanha ofensa ao nosso RIO; chamar-lhe “Caparide” e, ainda-por-cima, “ribeira”??!!

Vagarosos, como se queria naquele verão emprestado de novembro, lá foram, com a “charrete” da Menina Emília e mais — porque assim que meteram ao “Cipriano”, viraram no beco para a adega do Pena — duas ou três canecas da melhor água-pé deste planeta e de todos os outros que o universo tenha, em direção à passagem de pé-posto, do nosso querido Rio-das-Sesmarias. Ele estava no seu sítio, corria bem direitinho, de norte para sul e sem solavancos, que o chovido não era assim tanto mas, muito acabrunhado.

Chegou primeiro o Coutinho, pois a perna aleijada do “Artista-Sapateiro” — e mais o que lhe passou pela goela, a caminho dum estômago bem atestado de acidez e ávido de matéria para desfazer, e mandar rapidamente para o “delgado”, ganhando velocidade no trânsito, mesmo sem mesinhas e outras artimanhas, para que não estacione muito tempo no “grosso” — fizeram com que viesse mais atrás. 
 
— Então, amigo Rio-das-Sesmarias? Como vais correndo?
— Vou levando a minha água, dando passagem de ida e volta, com direito a recreio, às enguias do poço da nora, na horta e pomar dos pêssegos-rosa que o “Zé Silvestre”, trás. Levo água para que os “girinos” nasçam, cresçam e, lá para março, despontem lindas e coloridas rãs, que coaxam sem parar; para que os animais dos Abrunhenses se satisfaçam do líquido precioso; para que os agriões que crescem nas minhas margens, completem saborosas saladas verdes, enfim; da encosta de Ouressa, engrossando com o “fio” nascido no Penedo, irmanado com a da Chancuda, que pelos “Barros” vêm a mim: “Rio-das-Sesmarias”, antes e depois da Abrunheira até à “Azenha” do Ti Sebastião, na Capa-Rota. Depois, já não me importo, porque pelos “Bernardos” vou tomando outros nomes que, de mim, só a água levam. E vocês? Como vão encarando as notícias que, do norte, nos trazem?

Cada pé em sua pedra, com a anuência do “acabrunhado” RIO, passaram, como sempre faziam, para o lado da pedreira que, do Ti Miguel, ainda seria, por muito tempo contado em anos. O Bernardino, que Coutinho não era, tomou como assento a, que dizia sua; pedra. Pegou no bornal, que se quedava no ombro esquerdo, e posou-o no chão, com muito cuidado. Num dos alforges, trazia ferramentas de trabalhar a pedra, como se fossem tubos de ensaio do mais moderno laboratório. A “Ciência-da-Pedra”, que era a sua, só podia ser “manobrada” pelos mais delicados instrumentos. No segundo alforge, que balançava à frente, o Coutinho que era Bernardino, trazia o seu farnel que a Ti Mariana Soleta lhe tinha preparado antes de sair de casa, ao mesmo tempo que lhe recomendava — Ai “Be’nardine filhe, nã me vás pa’taberne embo’car vinhe” (aqui não entra a ”história” do Coutinho, por razões óbvias. Se, para quem lê, não for assim tão óbvio, espere por outro escrito ou vá ver os antigos) e que tinha; Uma “cigana” cheínha, um quarto de pão-escuro e um bom naco de toucinho-entremeado que, logo chegado à pedreira, lhes daria o devido tratamento que, mesmo correndo o risco do “Artista” me acusar de desvio do tema ou matéria, como lá muito para a frente, no longínquo século XXI (se, a dois mil passarem) os políticos velhos e os aprendizes, vão gostar de dizer muitas vezes; não resisto a “mostrar”, por antecipação, aquele que, sempre era, um laudo banquete!  

Na principal bancada do seu “laboratório”; a pedra que servia de mesa para comer e poiso para as ferramentas, Bernardino que não era Coutinho, tira do bornal o papel-pardo do costume, estende-o na “mesa”, e coloca-lhe em cima; o pão-escuro, o naco de toucinho e a “ciganita”. Como comer e beber, ritual sempre foi e será, respeitando o cerimonial, saca do bolso a sua indispensável navalha-curva (de enxertar), com jeito e delicadeza que só mãos e dedos habituados a “tocarem” a ciência, mesmo que, de pedra seja, abre-a e, com um gesto certeiro de tantas vezes repetido, passa os dois lados da lâmina da navalha, pela ganga das calças da perna direita, logo acima do joelho, e inicia o corte preciso dum bocado de pão. Findo este, idêntico manuseamento faz ao toucinho e, juntando os dois pedaços, mete-os na boca, iniciando uma função de mastigação que, só viria a ser completa, com um trago de vinho emborcado diretamente da “cigana”.

Noutra, bem ao feitio e tamanho da “padaria” do Artista-Sapateiro, lá se sentou ele, segurando, num repente, a beata presa ao beiço de baixo, que lhe ia caindo. O único dente que despontava da “cavidade” bocal, bem espetado na gengiva de baixo, não era suficiente para lhe prender, bem, o cigarrito. E, como que reagindo ao tropeço, meteu “estopa” e iniciou faladura sapiente sobre viagens há muito empreendidas; Não fosse, ele, Artista-Sapateiro, dos bons, contador de histórias e cenas que ele sabia e repetia. Muito ele calcorreou, perseguindo clientela de meias-solas para patrões das quintas e jornaleiros, desde a(s) Malveira(s) (dos bois e da Serra) até aos “Estoris”, passando pelas Azenhas e Janas, subindo para Almoçageme, Penedo, Eugaria até ao outro lado em Paço-de-Arcos, Quinta da Estribeira, Leião até Belas, pelo outro lado em Odrinhas, São-João-das-Lampas, Linhó ou Parede, Caparide, Murtal, etc., etc.. O Artista-Sapateiro conhece o percurso do nosso Rio-das-Sesmarias, até à foz, na Costa-do-Sol entre São João e São Pedro do Estoril. Por acaso até passa junto a Caparide, a mais-ou-menos três quilómetros da foz e quinze da Abrunheira mas, chamarem ao nosso amigo Rio-das-Sesmarias, “ribeira de Caparide”, não lembra a ninguém que saiba um pouquinho de “geografia”.

— Oh Coutinho, tive agora uma ideia de “estalo”; vamos teletransportar lá para a frente, cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, uma “Petição pública” para reposição da verdade e recuperar os nossos valores históricos, exigindo que, no âmbito dos estudos e planos “nortenhos” para a Abrunheira, se chamem as coisas pelos nomes, como é o caso do Rio-das-Sesmarias.
— Oh Artista-Sapateiro, essa de “teletransportar” não é no gozo comigo, não?
— Não! Estou mesmo a falar a sério, Coutinho! Não tem nada a ver com a tua tentativa de travessia do Oceano Atlântico até ao Brasil com o Sacadura que era Borrego.
  
E o Rio-das-Sesmarias lá corre com toda a lisura, mas acabrunhado.

Só quer a verdade!

Silvestre Félix
4 de Dezembro de 2014


terça-feira, 22 de julho de 2014

CALCORREANDO

Muito calcorreávamos as ruas da nossa Terra porque de máquinas andantes ainda nem o inferno estava cheio, quanto mais o céu. Mesmo as bicicletas só chegavam a bolsos mais aconchegados. O alcatrão ainda era pouco porque as ruas, a principal e as outras, «nos dedos duma mão, bem cabiam»! O caminho era negro desde a entrada, à padaria, em direção ao Chafariz e um pouco mais “ralo” (via-se mais pedras que alcatrão) no largo até à menina Emília, pelo Sigamó até ao Olival. Daí para cima até à estrada na curva, era calçada à portuguesa um bocado mal- amanhada. Para baixo do Chafariz, pela principal, o alcatrão era melhor até acabar a seguir à curva do Ti Faneca. Até onde vai a lembradura desta descrição, o “Curronquinho” ainda não tinha alcatrão e muito menos vivendas. Era o caminho mais apetitoso para calcorrear. Tinha sempre uma erva muito rentinha, parecia relva plantada. Da curva até ao nosso castelo em ruinas era sempre relvinha fofa. Esta fortaleza, onde espadeirávamos horas a fio, estava um bocadinho a seguir, onde muito tempo depois, com a construção do bairro, havia de ser plantado o “nosso” café – primeiro do Ramos e depois do Cabaço.

Também de relvinha fofa calcorreava, com o Zé Fernando, Zé Augusto, Rui, Fernando Pedroso, Filomeno e, se calhar, com mais outros que a minha memória negligenciou no ficheiro do tempo, aquela que era azinhaga desde a esquina da casa da fruta do “Pechincha”, junto ao Rio das Sesmarias, até ao passadouro para o lado da pedreira do Ti Miguel. Onde agora, na segunda década deste desgraçado século XXI, existe uma ponte, O das Sesmarias autorizava que o atravessássemos colocando os andantes nas pedras altas que, uma-a-uma, nos levada à outra margem. Muitas vezes, pela relvinha, calcorreávamos com os nossos “carrinhos-de-arame”, para desembocar, não no Rio, mas subindo à direita até à oficina (dos carrinhos-de-arame) do Zé Fernando. Aí, reparávamos todas as avarias endireitando as rodas e reforçando as ligações ao eixo de direção que era uma cana bem comprida que levava o volante até à altura do condutor. Também na oficina preparávamos os atrelados que, quase sempre, derivavam de “dignas” e, antes, nutritivas latas de conservas nacionais. Naquela época, já de arreliados dias bélicos pelas colónias e onde, irmãos ou primos mais velhos, por obrigação, guerreavam a mando do salazarento regime, as conservas eram sempre nacionais. Não carecia de verificarmos a origem do atum, da sardinha ou das enchovas. Não corríamos o risco de utilizarmos atrelados que tivessem vindo dos “nuestros hermanos”, como agora, neste desgraçado século XXI que já vai na segunda década e onde, cada vez mais, sinto inglórias as grandes batalhas nos céus da Europa em guerra, protagonizadas (do lado dos que aprendi a serem os bons nos muitos “quadradinhos” que devorei) pelo Major Alvega. 

Muito andávamos a pé e, alguns de nós, “dos putos”, literalmente. Nem todos tinham o “privilégio” de poder usar, nos pés; botas, sapatos ou, simplesmente, chinelos. Calçados ou descalços lá calcorreávamos os caminhos da Abrunheira, juntos ou sozinhos, com a maior das naturalidades. Os calçados, para trabalho dos sapateiros que, cá na Terra, eram verdadeiros artistas. Não contando com outros também famosos que já não eram, que deles se dizia e eu ouvia «tivessem a alma em descanso» como o “Sapateiro de Manique” porque era de Manique, claro está! Muitos contos (de histórias, não de dinheiro) me narraram deste sapateiro que por companhia tinha o “Cabeço de Manique” e que, para além de amanhar botas e outro calçado, também tinha rebanho de ovelhas que lhe completava o rendimento no leite, lã e na feitura de eiras para debulha de cereais durante o verão. Por isso mesmo, o Silvestre Velho não prescindia da sua vinda. “Velho” no meu avô não era nome, era da idade e dos cabelos e bigode brancos. Os filhos homens que com ele andavam na lida do campo e os que por outras bandas se governavam, eram conhecidos pelo nome próprio mais o do pai que, assim, funcionava como alcunha, sendo que, quando se referiam ao verdadeiro Silvestre, acrescentavam o “Velho” para não se confundir com os filhos.

Ainda na onda dos sapateiros, outros havia que a alcunha não tinha nada a ver com o nome do pai ou avô, como o Ti J’aquim (Cagachuva), mas decerto com outras circunstâncias nada simpáticas para o simples olfato de qualquer abrunhense. Bom artista de calçado e muito bom contador de histórias. Sempre as ouvia com gosto mesmo sendo uma segunda, terceira ou décima vez contada. É assim como aqueles filmes que vemos vezes sem conta, e sempre gostamos como se, de primeira, sempre seja. Outro artista sapateiro havia, que se foi deste mundo há bem pouco tempo já neste desgraçado século vinte e um. O Zé Celorico, como a minha Mãe lhe chamava porque veio de Celorico da Beira. Com o Ti Zé partilhei labuta – a minha primeira na condição de assalariado. Na Atil, que já não é, eu e muitos rapazes da minha idade, na dita, com catorze de tempo contado em anos – um puto, aprendíamos a disciplina e as agruras do operariado. Não é do meu “ser”, nem teria razões para me queixar. Era bem tratado e por lá, na secção de pintura, o Ti Zé Celorico pintava tudo o que de embelezamento precisava.

A adesão à classe trabalhadora naquela altura foi por vontade própria, porque, acreditava, a alternativa estudantina, para mim, era bem mais dura. A Ti Augusta fez tudo o que lhe estava ao alcance para me convencer do contrário, mesmo sofrendo todos os dias com o meu começo de jornada desde a Abrunheira até ao Cacém…

“Escuro, mas muito escuro e a chuva caía às dez para as seis da manhã como já caía às dez da noite de ontem.
— Não filho, assim não! Descalça lá os botins primeiro! Isso! Põe o pé aqui no banco. A Mãe vai enrolar o jornal nas tuas pernas para não ficares com frio. Já podes calçar este botim. Agora a outra perna, põe aqui o pé! Isso! Assim ficas mais quentinho!
— Oh Mãe! Deixo ficar assim, todo o dia?
— Sim! Não tires antes de chegares a casa!
— Com a saca bem presa à cintura, não molhas as pernas! Segura bem o chapéu-de- chuva junto à cabeça. Quando vires a camioneta a chegar, desatas o cordel e deitas a saca fora!
— Tá bem Mãe, até logo!  
— Tem cuidado, vai sempre p’la beirinha e olha bem quando atravessares para os “plásticos”. Dá cá um beijinho!

A chuva caía sempre! Gostava mais de ir pelos eucaliptos até à Charneca, embora mais longe e descampado, porque pela quinta “Lavi” até aos “plásticos” era muito escuro e no pinhal parecia que estava sempre lá alguém escondido…tinha medo! Os botins pesavam e chapinhavam na água acumulada. A camioneta do “Eduardo Jorge”, muito amarelinha, passava às seis e vinte da manhã. Quando entrava às oito no Cacém, não tinha outra hipótese. E os botins frios e pesados. E a professora de Matemática… que raio de lembrança. Corredores, escola velha, escola nova, oficinas, recreio e sandes de mortadela no Ti Rodrigues com sobremesa de cigarrito a dois, cinco tostões. O fulano da “Mocidade Portuguesa”, o “chefe de castelo” ou lá o que era, não nos largava. Insistia comigo e com outros para não faltarmos no sábado. Desde que o tipo me obrigou a marchar sozinho, nunca mais lá pus os pés. Andavam sempre a dizer que contava para a “nota” mas era mentira.”

Calcorreando uma vida inteira por esses caminhos. Chegados ao largo, que pode ter “Chafariz” ou não, que deveria ter todas as saídas embelezadas e de piso direitinho sem pretextos para tropeções, deparamo-nos com um muro fechado a toda a volta e, na maior parte das vezes, a azinhaga donde viemos também se fecha atrás. 

É urgente encontrar uma brecha no muro para continuarmos o “calcorreamento”. Tem de haver uma falha!

— O que achas oh Bernardino que não és Coutinho? Consegues guiar-me para esburacar a parede? (pergunta de picareta – ferramenta da caixa do Coutinho que era Bernardino)
— Acho que sim! (diz o Coutinho que era Bernardino). Com a minha força delegada em competência, pelo povo da nossa “Terra”, e com toda a “ciência da pedra”, arte minha aperfeiçoada em muito tempo de anos contado, e com a tua rijeza de bom ferro fundido em forja bem quentinha, vou conseguir enfiar-te pelo muro dentro e encontrar uma saída, mesmo que seja muito estreita!

Silvestre Félix

(Factos e outros não, ficcionados na minha onda incluindo alguns nomes reais e outros inventados.)


22 de Julho de 2014  

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O CIPRIANO E O FORNO!


Pelo Largo do Chafariz, menina Emília, Cipriano, atravessando o das Sesmarias e ao lado da pedreira do Ti Miguel, lá agarrávamos os “caminhos por aí acima” até ao Mercado passando antes pelo Fetal no caloroso abraço de saudades de primas rodeadas das flores descidas da Tapada do Roma onde, por aí acima, ainda na mesma manhã chegaríamos. A olhadela pelo Mercado era rápida que de compradora a minha Mãe raramente estava. Gostava de ver o gado, dos viveiros, o cebolo, couve – galega e portuguesa. O destino era mesmo a Serra e, descendo até à Vila e voltando a subir, lá vinha o cheirinho do café da Ti Franquelina. A Serra dos Brandões marcou a minha geração e sugere ainda hoje, viajar sem descanso pelos tempos.

Antes dos “caminhos por aí acima”, fiquemos do lado de cá da Serra e olhemos para os “caminhos por aí abaixo”. Às vezes lembro-me do Cipriano. Era mais ou menos pedreiro ou mestre de obras e também trabalhava a pedra e negociava cal que cozia no forno. Lá, no tempo de trás, o Cipriano ainda sente o braseiro das pedras recebendo o fogo da lenha atirada para o forno. As pedras irão caldear para ajudar a subir as paredes das moradias e até do caminho que levará a placa “Rua do Forno”. Era do Cipriano, o forno e, vendo agora para o futuro, embasbacado ficará, como se já não chegasse a rua, dar de caras com um “Jardim do Forno”.
  – Jardim? E do forno? Será o meu ou o outro ao pé da “rigueira” do sogro do João de Leião?

 (eu sei que “rigueira”, mesmo sem acordo ortográfico é “regueira” mas, se sempre disse e sempre ouvi dizer “ri”, porque hei de escrever “re”? Para mim é “Rigueira”, pronto!)

  – A quarenta e tal anos em tempo contado para o futuro, não vou conseguir descobrir, de certeza. Bom, vou dar como certo que se referem ao meu “Forno”. Assim, como assim, eles só têm lá escrito “Jardim do Forno”! Não têm “Jardim do Forno do Cipriano” ou “Jardim do João de Leião”. Mesmo assim, tive que virar o desenho ao contrário porque a placa do jardim está do lado do “Corronquinho”.

Saltando para o outro lado da Abrunheira e antes dos “caminhos por aí acima”, na pedreira do Ti Miguel, labuta o Homem que tinha a “Ciência da Pedra”. Tanto nas pedreiras como no forno do Cipriano ou, de outros, que lhe pagassem o suficiente de comida e, principalmente, bebida. Já algumas vezes tinha prometido à Mãe, Ti Mariana Soleta, que “queria acabar com o vinho mas, que não conseguia porque era sozinho a trabalhar para isso”. A rotina habitual do Coutinho que era Bernardino incluía uma conversa com o Rio das Sesmarias quando por lá passava e, se o das Sesmarias não o retivesse muito tempo ou não o desafiasse para meter uma “charreta” na menina Emília, enfiava-se na pedreira e demorava tempo até de lá sair.

    – Oh Coutinho que és Bernardino, ouvi dizer que ontem à noitinha na taberna do Osvaldo quiseste levantar um barril de 50 litros de tinto só com os dentes, é verdade? (perguntou o martelo de corte)

    – E então? Pensas que não sou capaz? Ontem é que já tinha muitas “charretes” bebidas e a coisa não correu lá muito bem mas, um destes dias, levo-te comigo e vais ver se levanto ou não! (respondeu o Coutinho que era Bernardino)

O homem que tinha a “Ciência da Pedra” não era de muita conversa e, como toda a gente, também olhava, pensava e sonhava no tempo lá para a frente. E, mesmo nas profundezas da pedreira do Ti Miguel, tinha dificuldade em ver que o Largo do Chafariz já não era o sítio onde todos os abrunhenses iam.

  – Mas como é que pode ser?

A antiga casa do Caracol Velho onde, daqui a uns anos contados em tempo e depois da Ti Mariana Solena e do Ti Vitro se finarem, iria morar e dormir na mesma cama com a Judite Caracola, já lá não está!

  – Homessa? Olha, olha…um prédio dos grandes? Então e as galinhas e os coelhos? E o caminho do caracol agora tem alcatrão, não tem silvas e estão a soprar-me ao ouvido que é uma rua e se chama Humberto Delgado. É o tal que vai dizer aos jornais que «não tem medo» e, ao “botas”, que «se ganhar, o demite».

O escopro, ouvindo a faladura sozinha do Coutinho que era Bernardino, estava danadinho para entrar naquele exercício do futuro e, antes que se iniciasse outro monólogo, desferiu, com a mesma subtileza com que torneava a cantaria:

  – Deixa lá o “botas” e o que “não tem medo” e ouve o que eu consigo ver com a lâmina voltada para cima, muito mais para a frente em tempo contado em anos: A rua principal desde o Osvaldo até ao caminho do Caracol, passando pelo Largo do Chafariz, com o nome de avenida do “Movimento das Forças Armadas”. Pelo reflexo, consigo ver que foram milhares, “os que não tiveram medo”. 
  
O Coutinho que era Bernardino, entretanto calado, fechou os olhos e, com “futuro” à sua frente, só queria saber mais e mais. Com esforço de concentração, lá começaram a correr mais imagens da nossa Terra:

O tempo saltou, pulou e deixou-se ficar uns instantes naqueles anos redondos e de classe operária feita. Com muita pintura e cartazes nas paredes já nem o Largo do Chafariz se livrava. Abrunhenses mobilizados pelos partidos e movimentos cívicos, já muitos havia e nas listas à Junta de Freguesia de São Pedro, eram incluídos. Ah, mas lutavam pela eleição e transpiravam a camisola pelo que acreditavam. Nesses tempos, que, vistos do futuro para o passado até parecem meio estranhos, porque, toda a pirâmide democrática a nível local era graciosa para quem a praticava. Muitos cadernos eleitorais se descarregavam e muitos votos se contavam com “mata – bicho”, almoço e lanche dos votantes. Voluntários sempre sobravam e a alegria não tinha nada a ver com vitória ou derrota eleitoral.

O caminho do tempo não para. Continua sempre “por aí acima”. Até o Alto da Bonita é “por aí acima” e, quando à frente do Coutinho que era Bernardino passou Ranholas com a padaria do Ti Américo e o Pocinhas, a barbearia do Ti Guilherme e, uns contados em anos mais adiante, mesmo na curva em frente à Quinta do Ramalhete, no Lanterna Vermelha, o fio da história passou a ser mais concreto e pormenorizado:

Imperador era o bacalhau, bom de gosto e farto em quantidade. Simpático e amigo era o Conde com responsabilidade republicana e o dia, melhora fora o de 1º de Dezembro, mas não, logo tinha de ser o 5 de Outubro que, no salto dos setenta para os oitenta do século XX, não nos passava pela cabeça que lá mais para a frente no tempo contado em trinta e tal anos, acontecesse roubo à cidadania republicana com a supressão do feriado popular e nacional. Era vida complicada mas de muita esperança e o Conde que de Saborosa tinha o nome e com a guitarra portuguesa seguia na fadistagem a voz única da esposa Maria Teresa de Noronha. No Lanterna Vermelha, eu, o Peniche e o Conde – Presidente de Penaferrim. Naquele dia de comemorar a implantação da República, degustamos e trabalhamos sem senha de presença ou aposentação garantida.

Não sei se alguma vez o Conde que de Saborosa tinha o nome, provou o néctar único que na Abrunheira se fazia e consumia bem perto do Cipriano. O Coutinho que era Bernardino bem lhe tinha o gosto e o proveito porque, na altura certa do ano, na ida, passando pelo Largo do Chafariz, Menina Emília, Abílio e, antes do Cipriano, engatilhava para o Pena na onda do São Martinho e até ao Natal. Era a melhor água-pé da Abrunheira e arredores. Não era para putos mas, rapaz que se prezasse, tinha de saber que o Pena era o maior (em altura) em água-pé! Petisco se organizava e de lá só saiam a cambalear ou mesmo de gatas. O Coutinho que era Bernardino não! O bandulho era a preceito e não havia bebida que o deitasse abaixo. Quando pesado já estava, metia a espinhela a três quartos e lá comandava os andantes a direito até ao fundo do alcatrão.  

Pelo Largo do Chafariz e por “alguns desses tempos”, vivíamos o azedo do medo e ansiedade que apertava os nossos peitos.

Pior nunca podia, e melhor sempre seria!

Muitos anos em tempo contado lá para frente, esta máxima mudou! O Largo do Chafariz continua no sítio, a Abrunheira já tem um Jardim do Forno que era o do Cipriano e que se chama só – Forno, mas os abrunhenses e todos os portugueses estão a ficar mais pobres, passam muito mal e estão tristes.

Melhor nunca será, pior sempre estará!

Silvestre Félix
25.10.2012
Editado em 26 outubro de 2017 com a colocação da gravura de um forno de cal

sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PREÇO DO VINHO

Mesmo debaixo dos cobertores dava para ouvir o barulho do vento e, assim que pôs a cabeça fora da porta, levou com o sopro do lado de Manique e confirmou o canavial da horta em frente toda dobrada para o lado da serra. Ainda era escuro e alguma claridade já se via lá do lado do Alto Forte mas, o céu estava escuro, não se via uma estrela e era certo e sabido que ia dar chuva. Lá vinham as preocupações do costume, estava o caldo entornado para a Ti Mariana Soleta e dia de festa para o filho.
O Coutinho que era Bernardino tinha acabado de sair de casa para pegar na picareta e continuar a entrar pelas entranhas da terra até chegar à água, que deverá encher até acima, e que logo se vai chamar poço. É esta a sina do Coutinho que era Bernardino. Cabouqueiro era assim que se chamava a arte do homem que tinha “a Ciência da Pedra”. Na verdade, tinha saído de casa como de costume, mas, o destino daquele dia estava traçado, o tempo tinha virado e o trabalho da arte do Cabouqueiro não se dá quando ele, o tempo, entende deitar chuva, até parece que é de propósito, porque já se passaram uns dias que o Coutinho que era Bernardino, não metia umas “charretes” na taberna da “Menina Emília”, e, como o hábito faz o Monge, era bom que de vez em quando o tempo virasse de Manique e deitasse água de chuva, para que o Coutinho que era Bernardino pudesse também deitar vinho pela goela abaixo. E assim foi, neste dia de Janeiro de há muitos anos passados, mais dos que eu já contei nesta vida.
O personagem principal da prosa, Coutinho que era Bernardino ou Bernardino que não era Coutinho, não carece de apresentação, porque por aqui já mereceu essa deferência. Nesta altura da vida do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”, embora ainda solteiro, já tinha dado à estampa da “gazeta” do “boca-a-boca” e do “diz-que-disse” dos Abrunhenses, aquela cena de, em parceria com o Francisco Borrego, quererem imitar o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral voando até ao Brasil num aeroplano construído em cima de um zambujeiro. Por essa e por outras, muitos achaques a Ti Mariana Soleta sofria e rezava terços e mais terços para que lhe calhasse em sorte uma mulher que lhe pusesse tanto juízo na cabeça, como tonéis de vinho ele bebia.
A Ti Mariana Soleta continua na história porque o Coutinho que era Bernardino já casou tarde, e, nesta altura, ainda era a Mãe que tomava conta dele naquilo que naquela época estava destinado às mulheres. Como acontecia noutros sítios, também na Abrunheira, a mulher nunca podia ir chamar o marido à taberna, mas se fosse a Mãe, havia uma certa tolerância e era isso que acontecia com o Coutinho que era Bernardino. Os caminhos das tabernas da Abrunheira eram tão percorridos pelo filho, que por lá enchia o “bandulho”, como pela Mãe que pelos mesmos caminhos se arrastava para o levar de volta a casa a cair de bêbado.
Tal como já acontecera tantas outras vezes, também neste dia, já lusco-fusco, o Coutinho que era Bernardino, nada de chegar a casa. A Ti Mariana Soleta, mete uma saca vazia à cabeça, que ainda chuviscava, e lá vai para o circuito do costume. Começa pelo Osvaldo/Faial, espreita com jeito, e Coutinho que era Bernardino nem vê-lo, vem descendo e chega à “Menina Emília”. Ainda estava a meia dúzia de passos e já ouvia a voz arrastada pelas “charretes” e ”ciganas”, que o Coutinho que era Bernardino tinha metido no “bucho” durante toda a tarde. A Ti Mariana Soleta, espreita à porta e começa com as pragas do costume que, o Coutinho que era Bernardino, mesmo empaturrado de tintol, já as sabia de cor e respondia com a sapiência do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”.


(Dizia a Ti Mariana); “Ai filhe! Quizera Deus que o vinhe acabe…”
“Oh Mãe…… Eu faço o possível., mas o quer…, sou sozinho!”
(
E lá continuava a Ti Mariana Soleta); “Ai valha-me Deus... Porque é que o vinhe nã aumenta para um conte de réis o litre?”
(
Responde o Coutinho que era Bernardino); “ Oh Mãe, até que eu não me importava…”
(
E a Mãe); “ Nã te importavas Filhe?”
Eu cá não… desde que o litro fosse do tamanho da água da Lagoa Azul!”


Este dia de Janeiro de há muito tempo contado em anos, nesta Abrunheira; Que de superfícies ditas comerciais tinha, com muita honra e prestação social, as suas tabernas e mercearias, que de luz, só a petróleo, água só do chafariz, do Santo António e de outros poços, fogão ou forno só a lenha, estrada só de pedregulhos, bosta de vaca e caganitas de ovelha, notícias só do jornal “O século” e visado pela comissão de censura e trabalho/emprego só na agricultura e sazonal… Como dizia, este dia, como tantos outros, “passou à História” porque por cá passaram e vão continuar a passar personagens Abrunhenses como a que foi o Coutinho que era Bernardino, o homem que tinha a “Ciência da Pedra”.


Silvestre Félix
11 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)