sábado, 13 de junho de 2020

ALCACHOFRAS, CERRADO DA FONTE E O SANTO, O ANTÓNIO

Alcachofras no Cerrado-da-Fonte
Abrunheira - 06jun2020
Fosse eu conservador dum registo predial qualquer, e rebatizaria o “Cerrado da Fonte” para “Cerrado das Alcachofras”. Foi, “…da fonte”, que me ensinaram chamar-lhe ainda antes de roçar os fundilhos das calças, nas “carteiras” da antiga Escola da Abrunheira, mas devia ser “…das alcachofras”, tantas são, pela altura dos “santos” — sem respeitarem o distanciamento social nestes tempos dos “vinte” do “vinte-e-um” — no “Cerrado da fonte” e em tantos outros “cerrados” das bordas do nosso amigo “Rio das Sesmarias”.

Tantas vezes ouvi este nome, “Cerrado da Fonte” que, muito embora o meu eterno litígio com este lado do arquivo que guarda os nomes das coisas, sítios e pessoas, mil anos que viva, nunca o hei de esquecer. Ainda por cima, estava logo a seguir à “horta” por onde tantas vezes passava e passeava, umas vezes sozinho, outras acompanhado. Do lado de lá, estava (e está) o tanque de rega onde morava o meu Cágado “Manel”, pomposo nome para tão “rebaixado” ser, mas que eu adorava e ele a mim (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html ), como noutros escritos eu tenho deixado bem vincado.   

Todos os dias, pelas mais variadas razões, ouvia alguém falar no “Cerrado da Fonte”. Muitas vezes, tantas quantas um “puto” daqueles anos 50/60 do antigo século vinte, numa boa terra como a abrasileirada — por via das aventuras do Coutinho que era Bernardino e do Borrego que não era Sacadura — Abrunheira, tinha tino e curiosidade para perguntar, porque raio lhe chamavam “fonte”, se não havia por lá nenhuma? Bom, na verdade, ainda hoje o mistério, para mim, se mantém. Sempre que por lá passo, repito, mentalmente, a pergunta; porquê, “…da fonte”? Onde esteve a fonte?

Naquele tempo também havia, com certeza, alcachofras, no Cerrado da Fonte. Só que, aquela área, tinhas outras ocupações por esta altura do ano, antes de se transformar em “eira” para debulha e enfardamento dos cereais do Silvestre-Velho e do “Sapateiro-de-Manique” trazer o rebanho para pisar bem a terra e de comer, que muito bem lhe sabia, as batatas com bacalhau que a minha avó Gertrudes fazia naquela ocasião; “oh patroa, o que pôs nas batatas que elas escorregam que é uma beleza”? Repetia do “Sapateiro-de-Manique”, enquanto metia à boca, garfadas atrás de garfadas de batatas e bacalhau.  

Antes disso, havia seara de trigo, cevada ou aveia, ondulada pelo vento que ali batia e bate e, por isso, as ditas alcachofras não sobressaíam porque serpenteavam por entre os caules que engrossavam e já formavam a espiga que, numa quinta-feira da “Ascensão”, se haviam juntado, num raminho, a lindas  papoilas vermelhas, malmequeres, outras belezas campestres e um triângulo de pão, para casa levado, ficando a fartura de comer garantida até ao ano seguinte.   
  
O forno de cal também estava calado. Nesta altura, este, descansava da sua labuta mais para o tempo frio que de calor, já bastava o braseiro da fornalha a muitos graus de temperatura para transformar pedra em alva cal. 

Neste dia 13 de junho, celebra-se o primeiro dos santos, o “António”, que é também o da Abrunheira. Por todo o lado, a “pandemia” lixou tudo, incluindo as comemorações dos Santos Populares, mas as alcachofras é que não se importam com isso. Com vírus, ou sem ele, elas aí estão para que não nos esqueçamos que é junho, a passagem para o verão.   

Silvestre Brandão Félix
13 junho de 2020

sábado, 14 de março de 2020

INTELIGENTES, SABICHÕES E O NOVO CORONAVIRUS


Estou completamente banzado com a quantidade de pessoas que a toda a hora aparecem, sabedoras e com inteligência suficiente para erradicar a pandemia.

Mas, ainda mais, segundo estes “inteligentes”, o vírus nunca teria cá chegado, porque eles, os “sabichões”, tinham derrubado todos os obstáculos para aplicarem essas “sagradas” medidas infalíveis.

Tanta sabedoria perdida… como é possível que os governantes deste país não reparem neles?

Silvestre Brandão Félix    
14 março de 2020 – Época da pandemia
Gravura: Google

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

MUITO SUBI... MUITO DESCI... PELA NOSSA VILA


Vila - Palácio - Dezembro 2019
Muito subi, muito desci… pelas “Murtas” fui, pelas “Escadinhas” desci…  todos os cantos eu agora volto a ver. Alguns me parecem mais pequenos, mas é mesmo assim, o tamanho é inversamente proporcional à quantidade de tempo que contamos em anos e, nos forma a idade… bonita ou não, conforme o modo e a disposição com que a encaramos.

A nossa Vila que nunca quis ser cidade, quando caminhando pelos ditos cantos que nunca mais havia visto, mostra-me outra época romântica de verdade. Por lá, passeei sozinho, em grupo ou namorando, de dia ou até para lá do sol posto e em noites de ralis que eram mais que muitos, por essa Serra acima e abaixo. Algumas réplicas por aí vão aparecendo, com “Camélias” e tudo.

Vila - Palácio - Dezembro 2019
Por cantos que eu agora volto a visitar, caminhando, passarinhando e atravessando novos domínios do “Pai Natal”, transporto-me lá, aos verdes anos, ainda antes de abril.
Nos bancos de pedra me sentei e nos troncos lembranças escrevi. Era verde a juventude e negro o futuro. Pela Volta do Duche e na sombra dos castanheiros, muito lamento barafustado porque mancebo me tornei e com a guerra no horizonte próximo. Era o destino traçado.

Muito subi, muito desci… pelas “Murtas” fui, pelas “Escadinhas” desci… mesmo com chuva, Sintra nunca me desencanta. Bem cedo, antes dos outros caminhantes de muitos cantos do mundo, gosto de a respirar e, andando, lá vou… subindo… descendo…

Silvestre Brandão Félix
16 dezembro de 2019
Fotos minhas


sábado, 23 de novembro de 2019

UM PONTEIRO, S. MARTINHO E A ÁGUA-PÉ


Se eu fosse um ponteiro de relógio… a volta completa tinha dado… o Bernardino que não era Coutinho, no mesmo sentido e pelos mesmos caminhos, também, muitas voltas, deu.

Por esta altura do ano, com o suave aroma da “água-pé” do Pena, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/11/sao-martinho-e-agua-pe-do-pena.html) o nosso “Cientista-da-Pedra”, muitos S. Martinho’s comemorou. Dali, da “pedreira do Ti Miguel” — onde, exatamente, neste dezanove do XXI, existe um ótimo campo de jogos a nascente dum lindíssimo verde parque — o Bernardino que não era Coutinho, muito fiel ao ditado, “No São Martinho vai à adega e prova o vinho”, não provava o vinho, porque esse, já o emborcava o ano todo. Especialmente no dia de São Martinho, em vez de vinho, intervalava a labuta na “pedreira” e ia provar e bem beber, a afamada “água-pé” do Pena.

Rio das Sesmarias (Foto minha-5.11.2019)
Logo que, bem de manhã, passava pelo amigo e companheiro Rio das Sesmarias, nesta altura do ano, bem aviado estava de água das chuvas e das nascentes a montante, o motivo da conversa era a “água-pé” do Pena.

 Até antes disso, quando ao sair de casa e no mesmíssimo momento em que o melro “Simão” e a sua companheira “Micas”, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html)batismo feito a meias, pelo seu sogro Caracol Velho e filha Judite — chegavam ao poiso habitual dando-lhe os bons dias com o característico “pianço”  e desejando-lhe um ótimo dia de São Martinho, já aí, a última parte, era pura imaginação, mas a sede da “água-pé” era tanta, que até lhe soube mal o vinho que a Judite, misturando com pão duro que nem os cornos do carneiro Baltazar, transformou em “sopas de cavalo cansado”.

O Caracol Velho reivindicava a exclusividade da interação com os melros, mas sem o “velho” saber, o Coutinho que era Bernardino foi conseguindo meter-se naquela “conversa”. Depois, uma parte, o simpático casal piava como lhe apetecia, a outra parte, o Coutinho que era Bernardino, punha a sua singular imaginação a trabalhar e, do Simão e da Micas, passava a ouvir o que muito bem queria. Naquele dia, de São Martinho, achou que estavam sintonizados com a sede de “água-pé” que ele tinha.

Se eu fosse um “ponteiro de relógio”, às oito horas, tinha atravessado a Arroteia — que continua combinada com as letras do alfabeto e numerais simples — de nascente para poente até ao das Sesmarias, paredes-meias, ou melhor, Rio-meias com a Beloura, que não a do Chico, no tempo do Coutinho de era Bernardino. No sentido do “ponteiro”, lá está o início da rua que o homenageia; Rua Gago Coutinho! Como havia ele de saber que muito tempo contado em anos lá para a frente, alguém se havia de lembrar porque chamaram Brasil, à Abrunheira. Porque foi ali, por cima das “Pateiras”, que um dos Zambujeiros mais altos, serviu de rampa de lançamento para — querendo imitar o feito do Gago Coutinho e Sacadura Cabral voando até ao Brasil — aproveitando uma “rabanada” de vento, iniciarem o memorável voo. Só que, em vez de voarem, escaqueiraram-se os dois do chão.
  
Pois bem, seguindo o sentido do “ponteiro” e pela da Colónia acima, à moderníssima Urbanização das Sesmarias, cheguei. Muito ali calcorreou o Coutinho que era Bernardino dando voltas e mais voltas pela pedreira do “Ti Miguel” que ali, cheia de entulho, foi!

Rua das Sesmarias, subindo a partir do Rio (Foto minha - 5.11.2019)
Com a devida vénia ao Rio das Sesmarias por cima dele passei com a lembrança do Ti Joaquim da fruta e começando a subir a rua a que o Rio também deu o nome. Tantas tropeça-delas o Coutinho que era Bernardino, por ali deu. A ânsia de chegar à Menina Emília ou lá acima ao Faial, para molhar a garganta, atrapalhavam-lhe o andamento, mas, neste dia, do que falamos é da “água-pé” do Pena. Pois bem, subindo a rua, à esquerda o Cipriano no Serrado do Penedo e à direita, o beco para a casa do Pena. Era lá, naquele dia de São Martinho, que “morava” a melhor “água-pé” da Abrunheira, deste mundo e arredores.

Muitas voltas de relógio que nem ponteiro, se podem dar, pisando as mesmas pedras do abrunhense que tinha a “Ciência-da-Pedra” — O Coutinho que era Bernardino.


Silvestre Brandão Félix      
23 novembro de 2019

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

MESMO SEM TRÉGUAS... DA "MOLHA-PARVOS" E OS OUTROS


Mesmo sem tréguas da “molha-parvos e os outros também, lá fui hoje, pelos caminhos do Coutinho que era Bernardino, com muita companhia do nosso Amigo “das Sesmarias”, fazer o exercício matinal… (segue dentro de dias)

Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2019


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PELA FRESQUINHA, ACORDANDO O SOL...


Pela fresquinha, “por esses caminhos abaixo”, acordando o Sol, muito se descobre… e recorda…

O Centro Social era para ter sido e não foi, mas a rua, que estava mesmo à mão (e ao pé), não a deixamos fugir. Não havia Centro Social, mas pelo menos havia rua.

Antes da ladeira, as Maçarocas, que na semeadura não me lembro de as ver, as de milho, mas recordo-me bem do grão-de-bico. De pedras era farta e, por isso e pela secura, a adequada seara do seco e rijo grão-de-bico. E aí, pelas Maçarocas, que nunca consegui perceber, para além do grão, também havia fartura de grilos. Era uma contínua cantoria de grilos e, para entremear, também de cigarras.

Ao alto fui, e a um “passo” do Casal-da-Peça, fiquei. Não desci, porque muito longa e desprotegida, no que toca a bermas, a caminhada ficava. Que soberba panorâmica se topa de toda a Abrunheira em direção à Serra. A luz do Sol, ainda rasteira, dá-lhe um brilho que só dali se pode apreciar. 

Pela do Casal Novo em estrada velha, caminhei. Ensaibrada, desgastada e esburacada. É uma das pontas do que conhecemos por “Parque Industrial da Abrunheira”. E dali se vê tudo! São dezenas de unidades industriais e armazéns de todo o tipo. Das Maçarocas ao IC 19, muita gente ali trabalha todos os dias.

Quando, pelo final dos cinquenta do século vinte, o Rafael que não era coxo, entrou pelo portão da novíssima Fábrica de Lixas e Colas Sincal, e uns poucos anos depois, chegados da pérola do Atlântico — Madeira, o pai do Virgílio ou o pai do Costa, entraram na, acabada de construir, Fábrica de Borracha Leacock Rosa, estavam longe de imaginar que sessenta anos depois, estas já não existiam e, em vez delas, outras quarenta, cinquenta, sessenta ou mais empresas, ocupavam os antigos espaços e todo o perímetro nascente da Abrunheira.

Genérico da primeira telenovela portuguesa, nos
estúdios da Edipim
Rente ao que foi a Átil do Gomes, consigo passo ligeiro pela do Thilo Krasmann, até olhar a placa de venda da velha Edipim. Ideia e construção do saudoso Thilo. Ouve-se o genérico da telenovela “Vila Faia”, os aplausos dos “parabéns” do Herman e, finalmente, o sucesso do “Conta-me como foi”. Tudo acaba, mas é sempre melhor quando acontece com dignidade.

Ainda antes das sete da matina, já ia alinhado com os muros, a nascente, da “Quinta Lavi”. Dali, sentia o agradável cheiro a pêssego, a maça ou a pera. Estavam do outro lado do muro, mas senti-os, os cheiros, mesmo junto a mim. Os dez anos de idade, não inventavam outra maneira de me distrair do medo. Era noite escura como breu e para a escola no Cacém tinha de ir. A Helena Monteiro não perdoava atrasos. A carreira “Eduardo Jorge”, na paragem da “Adreta”, me levava até ao comboio. À minha Mãe, doía-lhe ver-me sair de casa sozinho aquela hora, mas “dos fracos não reza a história” e os putos daquele tempo, tinham de ser fortes e bem cedo, como se pode ler:  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/10/estacao-de-sintra-o-cyntia-e-lambreta.html)

Por ali fui, pelas traseiras do “Leroy”, contornando o bem cuidado ajardinado até passar por debaixo do IC 19 com o intuito de mirar o “Chafariz da Charneca” que já não é Charneca e há de ser qualquer coisa entre a República da Coreia e a, merecida Raul Solnado. Podia estar melhor. Como a esperança fica sempre para a frente, acredito que ainda hei de ver aquele “monumento”, bem tratado, com o destaque merecido e, para fazer jus ao seu destino, a deitar água, porque agora está sequinho! Já lá vai o tempo em que a nascente da “Chancuda” lhe dava toda a água precisa. Muitas pançadas de água fresquinha do “Chafariz da Charneca”, as burras “Carocha”, mãe e filha, ali beberam como há uns anos contei no link já a seguir: https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/09/mobilidade-adiada-charneca-esquecida-e.html 
    
Esta “faladura” diz respeito à “Carocha-Filha”, mas a “Carocha-Mãe”, muito contaria e, decerto, corroboraria as façanhas encavalitadas “salvo-seja” porque, embora em correrias dadas a galope, nada tinha de cavalar, mesmo não parecendo, era só prima, uma burra, uma jumenta, mas animal inteligente. Assim que via o meu irmão, logo sabia o que havia de fazer. Ela estava sempre ao dispor das investidas do Vítor, qual D. Quixote que, por entre searas e ventanias, em pelo, “galopava” até a Carocha se cansar. Mais a sério, (naquele tempo o adjetivo ainda era masculino), todos os dias a Carocha-Mãe se deixava albardar para, devagarinho, com o meu irmão bem encaixado no lombo, levar as bilhas cheias de leite — bem entaladas em cada um dos lados da pança — que a minha Mãe tinha acabado de mungir das suas vaquinhas. Aí iam, desde o Casal Novo em Vale-de-Porcas, virado Vale-de-Flores, e que já não existe, até à Abrunheira, ao posto de receção do leite, ali, onde hoje, é o Café O Combatente. 

Chafariz da Charneca visto por mim . outubro 2019
Na volta, nem sempre os alforges iam vazios. O Vítor levava os recados que a minha Mãe lhe encomendara e a paragem no Faial servia de descanso. De regresso voltavam a passar pelo Chafariz da Charneca e, com o Casal do Ti Zé da Charneca à frente, viravam à esquerda para entrar no fundo da horta do Casal Novo, passando por cima da pequena ribeira.  

Ora, o Chafariz da Charneca, construído em 1781 a mando do Presidente do Senado da Câmara de Cintra, José Diniz de Oliveira, reinava há 4 anos a Rainha D. Maria I, está sempre na encruzilhada das nossas caminhadas, sejam apeadas ou encavalitadas nas burras Carochas, Mãe ou Filha. Neste dia também lá passei, antes de regressar, “a butes”, à Abrunheira, ainda pela fresquinha.



30 outubro de 2019
Silvestre Brandão Félix

domingo, 13 de outubro de 2019

BALTAZAR, O AUTORITÁRIO



Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”, obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado, “Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
BALTAZAR, O AUTORITÁRIO (gravura do google)

E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas aos abrunhenses, aqui evocados!

O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses, era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar, representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em duas ou três voltas, no ataque.  

O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho, encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que nem um perdido.

O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter que levar com o “cornudo” Baltazar.

Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”, (durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a caminhada para casa.

Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”, tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência, no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”. Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três tinto para O Carlos que não era “Fadista”. 

Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.

Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar, ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”, trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o chão com as quatro patas.    

Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.

Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos” se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.

À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”. Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê, nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!

Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado” para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário, resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.

— Baltazaaaaaar!!!

Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”, sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura” da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”, tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas” e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava naquele instante.

Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.

O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos” para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista” e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas e ia embora.
………………………………………….

Meio-século depois, a discriminação social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância, por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma dessas vítimas.

Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio)
O nosso Chafariz, obra da autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu — Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e, especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande abraço!

Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019