quarta-feira, 14 de novembro de 2018

DE OLHOS FECHADOS


O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde estavam.

À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”, sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico.  Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.

E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.

O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido, certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e, fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.

Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.

E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.

Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à “Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …

Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”, para chegar à hora do chefe?

O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.

Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CHUVA, RIO DAS SESMARIAS E AS BRUXAS


— Finalmente, sinto que estou a dar uso à minha capacidade de corrente e, a aplicar as minhas competências nos limites das margens. Como me sinto “cheio” com esta abençoada água. Que chova! Que chova!

Desabafa assim o nosso amigo Rio-das-Sesmarias que, ansioso andava, pela pouca chuva caída até este último dia de outubro.

Recuando meio século, ou mais, durante este dia, já por lá teriam passado alguns dos seus amigos e parceiros.

O Artista-Sapateiro seria o primeiro porque, perna mais comprida, assente fora da enxerga e aí, que lá vai também a mais curta, depois as duas e rapidamente direitinhas à margem nas traseiras da casa, para aliviar o resultado do trabalho noturno, da máquina digestiva. Era uma visita diária obrigatória, embora “malcheirosa”, mas ainda assim, necessária ao começo de mais um dia, a maior parte do tempo sentado no tripé rústico que, num dia já distante, contado em, para mais de 30 anos, ele tinha resolvido construir. Foi há tanto tempo que a “maria-faladeira”, parceira de casa e de pouco mais, ainda não era velha.

 Já de dia, também passaria por ele, o nosso amigo e conhecido Coutinho que era Bernardino. A primeira vez ainda iria leve, pois, as sopas de cavalo-cansado que a Caracoleta lhe facultou ao levanto, não lhe pesavam assim tanto. Ao contrário do Caga-à-Chuva, que empurrado era, pela desesperada vontade de “obrar”, o Cientista-da-Pedra ia ter com os seus companheiros de vida e de ciência. Era uma motivação diferente. É claro que, com o correr do dia, a leveza da manhã, ia-se transformando no habitual “so-li-dó”, de idas à menina Emília, ao Faial ou Ramos, emborcar “ciganas” ou “charretes”, conforme a hora.

O Rio das Sesmarias tinha sempre água corrente com fartura, mas agora, o sítio do Rio está lá, mas água é que… nem por isso. Ontem e hoje correu alguma, a medo, mas se não chover mais, amanhã praticamente já não haverá água.

Será bruxedo?

Silvestre Brandão Félix
31 outubro de 2018
Gravura: Google

domingo, 21 de outubro de 2018

O FADO HILÁRIO, A LÉLÉ E O ZEQUINHA E O PEIXE FRESQUINHO


Na imaginação de puto, e porque naquele rádio a pilhas, assim, todo bege, que ficava sempre, todo “aperaltadinho”, em cima do armário da loiça na cozinha lá de casa, muitas vezes tocava fado e no meio deles, havia o do Hilário, ou seja, “O Fado Hilário”. Por isso, achava que o Ti Hilário da Natália, havia de saber cantar o fado.

Desse rádio a pilhas, ouvia-se, no Rádio Clube Português, estação que o meu pai sintonizava por causa dum programa rural que começava às seis da manhã, alguns clássicos como: O programa da manhã do Fialho Gouveia onde passava muita música portuguesa, os parodiantes de Lisboa à hora do almoço e, logo a seguir, o teatro radiofónico que podemos comparar às telenovelas de hoje porque prendiam milhares de pessoas ao rádio aquela hora e, ao final do dia, do Igrejas Caeiro, o Zequinha e a Lélé, nos Companheiros da Alegria e, também, o Comboio das seis e meia.  

Mas não! A música do Ti Hilário, era outra! Copinhos de dois, tinto, ao balcão do Ti Álvaro, que eu bem via quando por lá lia o “Século”, treinando para as leituras mais complicadas dos livros escolares.

Na altura, ainda não havia o “Plano Nacional de Leitura” nem nada que se parecesse e as alternativas eram, o jornal do Ti Álvaro e os de “quadradinhos” do Major Alvega, e outros heróis da aviação da primeira e segunda guerra mundial, mas também dos cowboys e índios, que o meu irmão comprava.
Então, é verdade, eu tinha a mania que o Ti Hilário era fadista. Assim à distância, nem entendo bem porquê, se calhar só porque se chamava Hilário. Será que o vi alguma vez cantarolar depois dalguma sequência avantajada de copinhos de “dois-tinto”? Não sei, mas assobiar, isso ouvi!
Não me lembro, que o nome de outra mulher fosse dito e ouvido tanta vez no Largo do Chafariz, como o da Ti Natália. Quando se queria falar do Ti Hilário, era o Hilário da Natália, o filho Zé, era o Zé da Natália, o outro filho João, João da Natália. Era uma mulher com um ascendente sobre os homens lá de casa, como não havia igual. Era de tal maneira que, até eu, que a ouvia gritar com eles, tinha um certo medo dela. Coitada! Não era má pessoa, mas tinha que se impor, senão, estava desgraçada.

O Ti Hilário, era aquela figura. De fato-macaco ganga-azul, pintalgado de estuque, cimento, cal ou outros produtos usados no último biscate. Sempre educado, pouco falador e muito fumador, mas realmente não cantava o fado, só assobiava.

Sentados no degrau do que naquela época era o armazém do Ti Álvaro, eu e o Zé Augusto ou o Rui, tínhamos uma visão global do Largo do Chafariz. Víamos quem entrava na mercearia e na taberna como o Ti Hilário, quem passava para, ou do lado do “Frouxo” ou da menina Emília e, acima de tudo, quem ia ao Chafariz buscar água ou dar água aos animais.

Era, como se fosse uma plateia e, daí, assistíssemos ao filme do dia-a-dia dos abrunhenses. A voz ou as gargalhadas do Tavinho com as travessuras do carneiro “Baltazar”, o bater do sacho do Ti Veríssimo no chão e o andar muito rápido da Ti “Estrudinhas”, o “quá” esganiçado dos ganços e o balir das ovelhas do meu Tio António. Também dava para observar a lida do Ti João de Leião. Ora saía com o grande tratar vermelho ou com o seu Opel que acho era Kadette. Ainda, até à curva, se descortinava o Ti João Peixeiro a chegar de motorizada com o atrelado vazio, ou com alguma sobra, isso é que nós não conseguíamos ver. Duma maneira ou doutra, à noite, lá ia ele até à lota de Cascais para trazer produto fresquinho e, depois, dividir com a Ti Aurélia, para, literalmente à porta de cada um dos abrunhenses, “vender-o-seu-peixe”.

Lembraduras que o vento ainda não levou…

Silvestre Brandão Félix
21 outubro de 2018
Foto: Chafariz da Abrunheira (de: Zé Dionísio)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

domingo, 14 de outubro de 2018

BAILES, AJUDA DO SARAIVA DA SERRAÇÃO, RECENSEAMENTO E CONSTITUINTES


Por entre; serras e outras ferramentas elétricas, grandes tábuas em madeira bruta ao alto, outras tábuas já cortadas, mais ripas e ripinhas e muita serradura pelo chão, nós dançamos, dançamos até estarmos cansados.

O Saraiva da serração, por mais duma vez, deu-nos essa “abébia”. Não era para todos, só ele. Naquela época, era especial e gostava de colaborar com a juventude. Muitas vezes recorremos à sua boa vontade e generosidade.

Pelo menos, por duas vezes, disponibilizou o espaço de trabalho da serração, para fazermos lá baile. Imagine-se à sexta feira; ele e os empregados a arrumarem tudo para, no sábado seguinte, chegar a malta nova e montar o bailarico. Os Zés encarregavam-se da “playlist” em grandes discos de vinil e depois, cada um à sua vez, para poderem dançar todos, “empapelavam-se” de DJ’s.

Todos os jovens disponíveis da Abrunheira e não só — lembro-me de um ou outro rapaz e duas ou três raparigas, de fora. Os nomes é que… ficaram no tempo — estavam lá e os bailes foram um sucesso. Se tivesse havido oportunidade para isso, o Ti Saraiva tinha sido levado em ombros e saudado pelos jovens e adultos abrunhenses ou abrunheirenses.

Por outras duas vezes, ou mais, disponibilizou-nos uma outra dependência com entrada pela que viria a ser, Rua Ferreira de Castro e onde, mais tarde, salvo-erro, serviu para “abancar” o primeiro recenseamento provisório depois do 25 de abril de 1974 e, depois, para “Assembleia Eleitoral” das primeiras eleições livres, as constituintes, no dia 25 de abril de 1975. Mas, dizia eu, que por algumas vezes nos emprestou esse espaço para fazermos pequenos espetáculos de teatro que, na prática, foi o “embrião” do que, algum tempo depois, já na URCA, viria a ser o GITU. Os jovens da Abrunheira, neste tempo, foram, culturalmente, muito ativos na Abrunheira e fora.

Não foi só, mas foi grande a contribuição do Saraiva da serração para que os abrunhenses dessa época — entre 1972 e 1976 — tivessem um envolvimento e empenhamento cultural, como nunca tinha acontecido antes, nem, com a mesma intensidade, depois.

O intervalo dos anos que mencionei (4 anos) foram, do ponto de vista cultural e político, na Abrunheira, ricos e, ao mesmo tempo, explosivos. Até abril de 1974, a necessidade de descobrir, aprender e, por consequência, de contestar, numa movimentação que tinha que ter em conta o regime de ditadura existente.

Quarenta e quatro anos depois, em que a liberdade de expressão e de associação, é tão natural como o ar que se respira, não é fácil perceber as circunstâncias em nos movíamos.

Qualquer manifestação que pusesse em causa o estabelecido pelo regime, mesmo culturalmente falando, era proibida se detetada com antecedência, ou reprimida se só descoberta na hora, com intervenção da polícia política do regime, a PIDE que, por mais pequena que fosse a suspeita, poderia transformar-se em dias de detenção com interrogatórios sucessivos e, numa grande parte das vezes, levado a sessões de tortura. Principalmente se estava em causa a “tropa” ou a Guerra Colonial que, na altura, simplesmente se ignorava o termo “guerra” e, muito menos, “colonial”.

A este propósito, lembro-me, por exemplo, de ter comprado uma coleção de livros filosóficos sobre a “história das ideologias”. O vendedor, a quem, quando tinha orçamento, ia comprando um ou outro livro, avisou-me que aqueles, os das ideologias, eram clandestinos, ou seja; em tempos tinham sido recolhidos pela PIDE, portanto, se andasse com eles publicamente, devia forrá-los, de forma a não se ver o que era. Noutras ocasiões, o livreiro Olímpio, tornou a dar-me o mesmo recado.

Até abril de 1974, os rapazes da Abrunheira, como eu, debatiam-se com a certeza de ida para uma guerra que não queriam, fosse em África ou noutro sítio qualquer e, disso, conversavam às escondidas na maior parte das vezes, durante a noite, para que os riscos de sermos vistos por algum “bufo”, fossem menores.

O 25 de abril chegou nesta fase da nossa vida (eu tinha 19 anos) e, para além de tudo o que já se disse e passou à história, mal ou bem contada, para mim e para outros rapazes da Abrunheira, foi um alívio; já não éramos obrigados a ir para guerra nenhuma!  

O nosso trabalho cultural continuou graças à ajuda de muita gente. Neste escrito, apeteceu-me lembrar a generosidade do Saraiva da Serração naqueles anos da minha juventude.

Gosto de pensar que, independentemente da evolução natural da comunidade abrunhense ou abrunheirense, homens e mulheres com nome, deixaram o seu selo no que somos hoje, mesmo que alguns, ou algumas instituições, achem que só eles sabem o que o povo precisa e quer.

Silvestre Brandão Félix
14 outubro de 2018
Gravura: Google

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O SPEED GONZALEZ E O MANEL A TIRAR UMA BICA...


Este fim-de-semana, estive a arrumar arquivo. Ou seja, aliviar de ficheiros e mesmo, pastas de arquivo, do PC para o disco externo e pen’s. A minha “velha” e muitas vezes, maltratada massa cinzenta, muita dificuldade teria, se eu tivesse a ousadia, de a levar a imaginar mudar de sítio, o equivalente, em folhas papel A4, álbuns de fotos e respetivas caixas de cartão. Como seria e quanto tempo demoraria.

Esta reflexão transporta-me no tempo…

Antes de abrir o café do Manel, só víamos televisão na “Sociedade”. Todos os dias, ao começo da noite, alguém da direção abria a porta, varria as beatas da noite anterior, alinhava os grandes bancos-corridos de madeira com o necessário corredor ao meio e, com alguma paciência e sapiência, ligava o aparelho de televisão.

Era um grande “caixote” colocado numa prateleira larga, no topo da empena poente e tinha uma imensidão de coisas lá dentro. Quando botava as coisas cá para “fora”, eu, nos meus 7 ou 8 anos, matutava como os tipos conseguiam pôr tudo lá dentro. A caixa era grande, mas caber lá tanta coisa, era obra! 

Estive lá muitas vezes aquela hora porque, até aos meus 10 anos, morávamos na atual Rua do Olival, entre a Quinta de Santo António e a Quinta do Olival. Era uma casinha antiga de traça saloia, com um grande quintal, meia-dúzia de figueiras, um grande cedro e dois grandes eucaliptos. Foi o sítio onde gostei mais de morar. 

Então, enquanto a minha mãe acabava de tratar dos animais, eu esperava-a na Sociedade. Era a hora daquelas séries antigas ou desenhos animados: Robim dos Bosques, o Último dos Moicanos, Gato Silvestre, Gato Félix, Speed Gonzalez, etc., etc. É claro que era preciso, primeiro, que a televisão fosse ligada. Quando recordo estes momentos, vejo sempre o Ti Jorge Farpela. Ele era alto, mas não tanto que tocasse na televisão. Puxava um banco, subia para cima e, assim, chegava ao aparelho. Lá ligava o interruptor, mas nunca dava à primeira. Era sempre uma carga de trabalhos. É preciso ver que estávamos no início da década de sessenta. Mas, jeitinho daqui, pancadinha dacolá, as válvulas aqueciam e lá “começava a jorrar a corrente elétrica” como se canalização de água se tratasse.

Depois do jantar, a Sociedade enchia-se de gente e de fumo de tabaco. Naquela idade, não eram muitas as vezes que tinha autorização de lá ir aquelas horas. Só quando, na qualidade de “pau-de-cabeleira” da Felicidade e do Alfredo. O que é certo é que uma parte considerável da Abrunheira daquela altura, incluindo já, algumas mulheres, despejava ali. Os donos das tabernas, no que respeitava aos homens, começaram por não achar graça à coisa e, lá mais para a frente, também tiveram que “abrir-os-cordões-à-bolsa” para comprarem aparelhos de televisão. Nos primeiros tempos, para além da televisão da Sociedade, só havia uma outra na Abrunheira. Era do Raposo, um abrunhense que morava ao lado do que é hoje, o café “Combatente”. Acho que o Raposo também era “Rádio Amador” e muito dado às “novas” tecnologias da época.

O Manel, quando abriu o “Café-Brasil”, para nós sempre o “Café-do-Manel”, já lá tinha o dito aparelho, bem alto, na parede do lado direito quando se entrava a porta. A primeira televisão, já era bem mais moderna que a velhinha da Sociedade. Para além disso, o pecúlio do — em boa-hora achado e aconselhado — sogro Ti Sabino, era muito mais “atestado” do que o dos sócios da Sociedade.

O Café do Manel passou então a ser a “plateia” preferida dos abrunhenses, para ver televisão. Com uma bica ou um garoto, ambos servidos num copinho de vidro sem asa, com as calmas do Manel, dava direito a assistir, a toda a programação ao longo do serão.

O Manel era único a tirar os cafés. A máquina era daquelas quase manuais; ele metia o pó de café — sempre muito devagar — dentro do recipiente da máquina com uma colherzinha, só para aquele efeito, depois pegava num calcador e, devagar, calcava o pó na medida exata. Só depois — passavam uns minutos — levava o manípulo à máquina e, com um jeito que só ele tinha, encaixava-o devidamente. Depois de bem medida a distância a que o seu corpo estava da máquina, puxava, de cima para baixo, um “braço” da máquina, que fazia pressão e provocava a saída do café. Ele manobrava o tal braço, para cima e para baixo — sempre devagar — até o café estar como queria. Era uma manobra complicada e demorada. Se alguém protestasse com a demora, tinha sempre resposta: — Se tens pressa, vai ao Cabaço! (ou ao Ramos, conforme a altura).

A partir de determinada hora, não era fácil arranjar uma cadeira para alguém se sentar. As cadeiras e as mesas eram grandes, pesadas e de madeira. As mesas tinham um tampo em mármore.

Pouco tempo depois, o Manel arranjou uma sala interior onde se jogava bilhar, laranjinha de mesa e matraquilhos. Na sala principal, havia sempre um ou dois tabuleiros de damas que, especialistas, ignorando o espetáculo da “televisão”, jogavam em silêncio. Das “damas”, arrisco nomes, mas por antecipação, peço já desculpa por algum engano ou esquecimento. Lembro-me, por exemplo; do Durães, do Xico Chamiço e do Caracinha. Havia mais, mas não consigo recordar-me quem eram. Na sala interior, nos matraquilhos, e considerando o pessoal mais velho, recordo: O Baptista, os meus primos Fernando e António (Pézinhos), Xico Cruz, Xico Pardal… e não consigo mais…

Aquela caixa, que penduravam em prateleiras altas e tinha a suas manhas para trabalhar em condições, começou a mudar a nossa vida.

Como podíamos imaginar que, passados quase 60 anos, tudo o que a televisão nos dava, poderia ser multiplicado muitos milhões de vezes em capacidade, e apresentado num pequeno “chip”, numa “pen” ou, vá lá, num vulgar telemóvel?

Silvestre Brandão Félix
8 de outubro de 2018
Gravura: Google

domingo, 30 de setembro de 2018

LIVRA-NOS OS "INTELIGENTES"... LAGARTO! LAGARTO!


Devia ser por esta altura do ano porque, poucos dias depois, sempre a 7 de outubro, comecei a escola na 3ª ou 4ª classe, lá, na velhinha, naquela que deu o nome à atual Rua da Escola.  
 
Tudo como costume, saia para o “monte” com a Marcina, a Branquinha, a Estrela e a filha que ainda não tinha nome, e a nossa espertalhona, Burra Carocha. Aguentei-as um bocado do lado de dentro do portão porque o Ti João estava a sair com o seu rebanho de ovelhas.

A Belinha, porque me sentiu, saiu do meio do rebanho a balir, toda contente, e veio ter comigo pedir uma festa. Não lhe dei uma, dei-lhe várias. Na forma de comunicação dela, balindo, lá me disse alguma coisa, carinhosa decerto, e voltou para junto das suas companheiras de rebanho. A Belinha ficou sem mãe quando nasceu e eu comprometi-me com o Ti João a criá-la.

A Ti Augusta ao princípio não ficou muito contente, mas depois… não queria ela outra coisa e fartou-se de chorar quando a “borreguinha” voltou para o rebanho. Ela e eu! Andava em casa como se fosse um gato ou um cão, lá bebia o biberon e, muitas vezes, ia ter comigo à cama. Claro, cresceu rapidamente e não podia lá continuar. Mas todas as vezes que nos via ou sentia, não se calava e só, se não podia, é que não vinha ter connosco.

Bem, entretanto, o rebanho lá foi e, a seguir, mandei o meu “pessoal” sair, devagar. Elas já sabiam que, antes de mais nada, iam beber água ao Santo António. A Carocha era sempre a primeira e quando lá chegava com as vacas, ela já tinha meio bandulho cheio de água.

Como acontecia todos os dias, o tanque estava cheio de vizinhas a lavar a roupa, com aquele som característico de “tagarelisse”. Lembro-me de muitas caras, mas os nomes, é que é, pior; como é “público”, tenho uma relação muito conflituosa com a lembrança de nomes de pessoas e de coisas. Que hei de fazer? É com certeza a PDI. Mas consigo sempre lembrar-me da Ti Maria do Florindo, da Ti Ilda do Zé N’olas, da Ti Maximina e é melhor não arriscar mais.

Bom, bandulhos cheios, respostas educadas para as “lavadeiras” e, ala que se faz tarde, até aos Celões, mesmo nas "bochechas" do Linhó. Naquela altura, a erva já tinha rebentado o suficiente para o saboroso pasto das “minhas-ruminantes”, e elas, mais ou menos, já sabiam o caminho, era só preciso dar um toque na altura certa porque havia mais do que um destino possível.


Naquele caso, o destino era o mais longe, mas também o preferido porque tinha muita escolha. Do Santo António virávamos à direita, mais à direita ao Ti Alexandre, depois de passar as “Pateiras” outra vez à direita passando ao Chamiço e, mais à frente, atravessando o nosso Rio das Sesmarias e, um pouco acima, a regueira dos barros que lá à frente, antes dos “Quatro-Donos”, desaguava no Rio das Sesmarias. 

Quando estávamos a chegar à esquina dos “Celões”, a Carocha, que já ia lá à frente, parou e recuou dois passos, ficando assim a olhar para as silvas com as orelhas bem esticadas e, arreganhando os dentes, zurrou! O caminho não era muito largo, mas consegui que as vacas a contornassem e passassem à frente, continuando até à entrada dos “Celões”. Ela, a Burra espertalhona, tinha “pegado ali de estaca” e continuava com os dentes arreganhados e, de vez em quando, batia com a pata direita.

Depois das “outras” estarem em segurança da parte de dentro dos “Celões” e a iniciarem a função do pasto, olhei para o mesmo sítio da Carocha e o que vi: Um lagartão bem verde, especado e feito parvo a olhar para ela. Desde a ponta do rabo, até à cabeçorra, tinha aí meio metro. Antes que ela lhe pusesse a pata em cima, fiz barulho com o pau e o nosso amigo acordou daquela letargia hipnótica, e arrastou-se para dentro das silvas e carrascos.     

Teve muita sorte, o lagartão, de não estar por perto o meu primo Fernando ou, até, o Zé Augusto, porque senão, não se safava assim.  

Tempo bem controlado pelo relógio de sol antes construído no cantinho onde costumava passar o tempo, e, vamos lá embora de regresso. Chamado o “pessoal”, lá vieram e, como sempre, a “dona” Carocha à frente toda lampeira. Quando passamos pelo sítio onde antes estava o “lagartão”, todas passaram, mas a burra-espertalhona parou. Ela sabia que, há duas horas, tinha estado ali a namorar o “rastejante”. Eu quis entender o que ia naquela cabeça que eles diziam ser de burra e, quando a vi arreganhar a dentuça e zurrar na direção que o lagarto tinha tomado e bater duas ou três vezes com a pata direita no chão, percebi que de “burra”, como nós entendemos, não tinha nada. Fiz-lhe uma festa no pescoço e dei-lhe uma carinhosa palmadita no quadril, e lá arrancou, genuinamente contente, com o “tempo de glória” que lhe tinha dado.

Esta lição, ainda a trago hoje comigo.

Até os “burros” gostam de ter o seu tempo de glória e de antena, quanto mais os “inteligentes”!

Ao longo da vida, infelizmente, muitos “inteligentes” por mim passaram… e ainda conheço alguns!

Silvestre Brandão Félix
30 setembro de 2018
Gravura e Foto: Google