segunda-feira, 9 de outubro de 2017

SOMBRA DAS ÁRVORES, O FORNO, A PONTA DA ÁGUA E OS SONHOS

Fascinado ficava, com a variedade de cores que, depois de arrefecido e das pedras de cal retiradas, se via nas paredes e no poço do “forno”. Era o resultado dos escorrimentos incandescentes que, fornada a fornada, se iam verificando, digo eu, completo desconhecedor científico da matéria, mas apreciador do colorido e formas estampadas no “forno” do “Cerrado-do-Forno”.

Eu não sabia, mas o Zé Fernando explicava-me tudo. O pai dele, Ti Abílio, também era “forneiro”. Passava meses seguidos tomando conta de fornos, como este. Só voltava a casa quando a “cozedura” estava concluída e, aí, contava as aventuras ao Zé Fernando, mas também lhe dizia a parte mais séria, ou seja, a técnica de preparação e efetivação, até toda a “abóboda” de pedregulhos cair, de cozida, no fundo do “forno”.

Ele, que absorvia todas as estórias e ensinamentos que o pai lhe trazia, não descansava enquanto não as punha em prática e, muita vez, fui seu parceiro na construção de mais um “forno-de-cal” de brincadeira.

Entre uma cozedura e outra, ao contrário de quando estava em laboração, ninguém dormia no anexo existente para o efeito e, durante o dia, também ninguém lá parava. O meu pai e a minha mãe, constantemente me diziam para não ir ao forno porque era muito perigoso. E era verdade, o fundo era como se fosse um poço, só que não tinha água e, pelas beiras, podia haver sempre alguma pedra que se desprendesse. Mesmo assim, e levado pela curiosidade, algumas vezes lá fui para admirar aquela dança de cores lustrosas nas paredes.

Aquela margem direita do “Rio-das-Sesmarias”, entre a ponte e o caminho da “Colónia” e o quintal do Ti Rafael, marcaram a minha segunda infância e tornaram-me inteiramente devotado ao que lá existia: A horta, que assim chamávamos, mas que muito mais tinha, o poço e a nora, o tanque de rega, e, lá mais acima, o “forno-de-cal”. Pelo meio, o campo de cultivo e, depois da “ceifa”, muitas vezes transformado na “eira” do Silvestre-Velho, para a debulha e enfardamento dos cereais cultivados nos seus terrenos à roda da Abrunheira, e não só.

Ao abrigo dos canaviais, que separavam os talhões, e à sombra dos pessegueiros, das nespereiras, das ameixeiras, das macieiras, dos limoeiros ou das pereiras, muitas caminhadas fiz pelos regos que levavam a água do tanque até às hortícolas, que o meu pai continuamente semeava ou plantava. Corria à frente da ponta da água, e, lá adiante, com o sacho bem aconchegado de terra seca, a encaminhava para o rego lateral, tapando, como se porta fosse, o rego principal. E, depois deste, seria outro, e mais outro e sempre assim, juntinho com a fonte da vida até ficar tudo alimentado e fresquinho.  
  
Nos meus oito, nove ou dez de idade, contada em anos, olhava, praguejava e lamentava a caminhada monótona da “Carocha”, em círculos à volta do poço, fazendo com que os alcatruzes da nora se deslocassem até ao fundo, onde estava a água e, de volta, chegassem ao cimo, virando-se e despejando a água que ia diretamente para o grande tanque, contentando o grande cágado que por lá andava. Até agora, tanto tempo passado, e como me lembro bem da chinfrineira provocada pelo movimento da nora, que abafava tudo à volta, incluindo as passadas da “Carocha”.

O meu mundo estava ali.

Ao contrário, de manhã, na escola, enfiando a atenção na história de Portugal daquém e dalém mar, na geografia do império do Minho a Timor, nas linhas de caminho de ferro da metrópole, de Angola e, principalmente de Moçambique, nas dezenas de rios que desaguavam em três oceanos diferentes, nas serras, que subiam em direção a constelações do hemisfério norte e do hemisfério sul, em climas temperados e tropicais, e também na gramática, na tabuada, nos problemas e na geometria avançada para a época.

Tudo isto, eu sabia que tinha de aprender, mas o que eu gostava mais, era da horta, da sombra das árvores que davam deliciosas frutas, da Carocha, da Marcina, da Estrela e da Bonita que —  tantas vezes já ditos— por esses caminhos acima, as levava a pastar até aos “celões”, fronteira com quinta do Ti Zé da Beloura e de mais caminhos até ao Linhó e à Colónia.

Gostava de ter por perto o Rio-das-Sesmarias, os melros e os pintassilgos que, por ali, muito saltitavam. E o grande rebanho de ovelhas do meu tio João que, na ida e na vinda, se abeiravam da margem para comporem do precioso líquido, a remoedura. Do meio, lá vinha em correria na minha direção, a antes, borreguinha, que eu e a minha mãe criamos em casa a biberon e que, ovelha adulta, nunca esqueceu quem lhe deu mimos e alimento quando ela mais precisava. Berregava em saudação, lambia-me as mãos e, depois de lhe fazer a habitual festa, regressava contente para o pé das companheiras.  Tanto tempo depois, o universo dos complicados sonhos que muitas noites me atormentam o sono, ainda passam, uma ou outra vez, por aqueles locais e por aqueles dias, que foram reais.

Compensando a falta dessas coisas boas que já não são, sopraram-me há tempos, que, a preservação do “forno-de-cal” do “Cerrado-do-Forno”, estava garantida. Se assim vier a ser, fico muito contente pelos motivos pessoais que aqui foram escritos, e tenho a certeza que a maioria dos abrunhenses ou abrunheirenses como outros dizem estar correto, também ficarão.

Não sei quando será nem como o vão fazer, mas, para já, o que resta do “forno” não vai ser demolido e, algures para a frente no tempo, todos poderão ver como se fazia cal, indispensável para a construção e revestimento das habitações, até à década de sessenta do século vinte.

Silvestre Brandão Félix
9 de outubro de 2017
Fotos: (1)Ruínas do Forno de Cal do “Cerrado-da-Fonte” na Abrunheira. Tirada hoje, por mim. (2) Desenho-esboço de Forno de Cal (Google).


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

ESTAÇÃO DE SINTRA, O CYNTIA E A LAMBRETA DO MEU PRIMO CHICO

Duas ou três vezes por semana, era certinho e direitinho; “Boa-Viagem” da meia-noite desde a Estação de Sintra até à Abrunheira. A espera, era quase sempre feita no “Cyntia”, com a paciência sem limites do Ti Rodolfo. Pelo gasto duma bica, deixava-nos estar ali uma ou duas horas à espera do horário da camioneta. Aproveitávamos para pôr o estudo em dia, ou passar a limpo algum apontamento das aulas do dia (noite). Não era assim, se a carteira estivesse abonada e houvesse mais alguém para rachar a corrida de táxi desde a Estação de Mem Martins. Aí, dependendo da hora da última aula, não seguia até Sintra e chegava mais cedo a casa.

Não era apelativo descer no Cacém, vindo do Rossio depois dum dia de trabalho, mas, se queria perspetivar o futuro com algum sucesso profissional, mesmo com a tropa e quase de certeza, a Guerra Colonial pela frente, tinha de ser assim. Ainda por cima, todos me ajudavam. O meu chefe, Sá Rodrigues, dava-me alguma “folga” e deixava-me sair mais cedo quando precisava de estudar para algum ponto (teste).

Mas, muito para trás disso, já o comboio e o Cacém eram destino marcado. Antes de três ou quatro de tempo contado em anos, e das boleias na lambreta do meu primo Chico até à Estação de Oeiras para apanhar o comboio até ao Cais do Sodré. Foi ele, o meu Primo Chico, o adorado filho da minha tia Ermelinda e do meu tio João e da namorada, depois mulher, adorável Júlia, que prometeu ao Sá Rodrigues da STAR da rua do Alecrim, arranjar um puto ajuizado para “paquete”, primeiro interno e depois logo se via. 

O Chico, que na Guerra Colonial pela Guiné — daquela mesmo verdadeira, com tiros e tudo que, se no mundo dos vivos ainda estivesse, dela se lembraria e muito, ao contrário de outros que, passado tanto tempo, teimam em querer branquear a injustiça de mais de uma década de sofrimento inglório — muito tinha sofrido, era um bom primo.

Lá me levou no primeiro andar do 44 verdinho da “Carris”, desde o Cais do Sodré até à avenida Sidónio Pais, onde era a sede (palácio) da STAR. Para primeira vez na Capital, não estava mal percorrer a avenida da Liberdade empoleirado no 44. E foi nesse dia de estreia que tudo começou, pouco depois do “outro” ter caído da cadeira, mas ainda antes de, definitivamente, ter embarcado para Santa Comba Dão. 
 
Antes, muito antes disto tudo; dúvidas não havia! “Exame-de-Admissão” passado, só para entrar na «Escola Industrial e Comercial de Sintra», no Cacém. «Liceu Nacional de Sintra», era outra coisa, assim para “bem-remediados” ou “ricos”, que, depois do sétimo ano, seguiriam para advogados ou médicos. Com certeza havia exceções, que confirmavam a regra.

Os outros, todos os outros que tivessem a ousadia de querer “estudar”, só no Cacém. Lá, estudavam alguma coisa e aprendiam “um-ofício”; “montador-eletricista”, “serralheiro” ou “geral-do-comércio”. Este, mais escolhido pelas raparigas que também tinham “lavores-femininos”. Acho que era isto, senão, que me desculpem qualquer coisinha.

Naquele dia, chovia muito de manhã. A Ti Augusta, com o coração de mãe, apertado, como se tivesse culpa de me deixar ir, tinha-me enrolado dos pés à cintura, papel de jornal por dentro das “calças-de-ganga-com-peitilho” (espécie de farda com identificação bordada a vermelho, no peitilho), e dos botins de borracha, assim, para o folgado.

Por cima das várias camisolas, pôs-me um capuz feito de sarapilheira, recomendando-me que, quando entrasse na camioneta “Eduardo-Jorge”, a deitasse fora. Para compor o ramalhete, deu-me, já aberto, um chapéu-de-chuva que mais parecia uma tenda de campanha. Chovia bastante e estava vento. A Ti Augusta, fazendo-se muito forte e guardando as lágrimas para quando eu já não tivesse à vista, fez-me as habituais recomendações e lá fui eu.

Falta acrescentar que tinha onze anos e ia apanhar a camioneta a “um-quarto-prás-sete” da manhã, na “Adreta-Plásticos”, e era dezembro. Quando saí de casa eram seis horas e estava completamente escuro. Fiz aquele caminho, àquela hora, muitas vezes sozinho, outras, acompanhado com mais putos, que, como eu, entravam às oito no Cacém e não havia outra camioneta que desse tempo, mas daquela vez, tive muito medo. Só eu, a chuva, o vento e todos os fantasmas que inventei no quilómetro de caminho — porque fui por detrás da Quinta-Lavi —  que me pareceram, vinte.

As mães daquela época, inquietavam-se muito. Os filhos e filhas — sim, filhas! Começava a haver raparigas a frequentar a escola para além da quarta-classe. Neste caso, e pela mesma altura, da Abrunheira, lá andavam algumas no Cacém, também — alguns dias da semana, tinham de sair de casa à mesma hora e nas mesmas condições que eu saí naquele dia. Com as filhas, ralavam-se cedo por causa dos namoricos e, com os filhos, começavam a sofrer por antecipação com a ida à inspeção militar, assentar-praça e, numa grande parte das vezes; partida para a Guerra Colonial que, na altura, se dizia “Ultramar”, como aconteceu com o Fernando, com o “Pezinhos” e com o Chico.


Não fossem tocados; “E-Depois-Do-Adeus” e a seguir a “Grândola-Vila-Morena”, naquele dia 25 de Abril de 1974 e o Joaquim Furtado e depois o Luís Filipe Costa, não lessem os primeiros comunicados em nome do “Posto-De-Comando-Do-Movimento-Das-Forças-Armadas” nos Estúdios da Sampaio e Pina do antigo Rádio Clube Português e, por qualquer razão, se tivessem atrasado e feito a distribuição dos cravos vermelhos uns meses mais tarde, talvez me tivesse tocado também, embarcar num “navegante” qualquer na Rocha-Conde-De-Óbidos, em direção a África.

Ontem fomos votar livremente e em liberdade. Por favor, valorizemos as coisas boas que temos.

Silvestre Brandão Félix
2 outubro de 2017
Fotos: Google (Fachada do restaurante Cyntia - Sintra) e (Edifício Escola Industrial e Comercial de Sintra . Cacém - anos sessenta do sec XX) 


domingo, 24 de setembro de 2017

COMBOIO DA LINHA DE SINTRA, O CURRONQUINHO E A JANELA DO TERCEIRO ANDAR

O meu segundo sono, todos os dias da semana, acontecia assim que entrava no comboio que me levava à capital, onde, “daquela-janela-do-terceiro-andar”, tantas vezes via, as últimas faluas do Tejo, os cacilheiros na sua travessia e o grande petroleiro ancorado no Mar-da-Palha, esperando vez para a doca da “Lisnave”.

De lá, “da-janela-do-terceiro-andar”, via muitas outras coisas que, antes, escrevi e reescrevi, acontecidas ou inventadas pelo tempo de calendário na despedida dos sessenta e início dos setenta, e a Abrunheira sempre ficava, quieta, esperando por mim, lá mais para a noite.  

No regresso, o sono voltava. A entrada no velho-comboio da Linha-de-Sintra, adormecia-me de repente. Para trás ficava o reboliço do Cais do Sodré que ainda não tinha ruas cor-de-rosa, da Bernardino Costa, do Arsenal e o plim! Plim! do amarelo subindo e descendo a do Alecrim. O “baixinho” apregoando a lotaria, os hóspedes do “queiroziano” Hotel Bragança, o ardina gritando “as -gordas” dos vespertinos: «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «A Capital» e, — quando os do “lápis-azul” deixavam — «O República». O Sá Rodrigues, o bitoque e o bilhar do “Califórnia”, o digestivo e o “ginger-bear” do “British-Bar”, as imperiais das cinco e “a-janela-do-terceiro-andar”, também ficavam para o dia seguinte.

A “Boa-Viagem” de Sintra para a Abrunheira me trazia e, de barriguinha aconchegada pela Ti Augusta, p’ra noite abrunhense ia, pelo “novo-curronquinho”.

Ainda antes, muito antes — pela “Primária” andaria, de mão dada com a história-de-Portugal, aritmética e gramática, e nas brincadeiras de recreio pequeno e nos simulados choques elétricos do meu parceiro de carteira, o Julinho, que, dizia, caçava pela noite, “morcegos-que-vinham-à-cana-com-sebo” (sebo, que surripiava ao Zé da Natália) e que engaiolava centenas de “caga-lumes”, só numa noite — as passadas do “curronquinho” eram dadas no que, algum tempo depois, viria a ser a Ferreira de Castro e o Cabaço. Zona da Abrunheira, destinada pela sina ou destino, em servir de poiso à brincadeira da rapaziada da terra, com predominância da numerosa prole da Ti Celeste “Pardala”.

Ervinha melhor que relva de tapete posto, era farto o curronquinho. Muitas batalhas de espadachim como nos quadradinhos, e depois, na televisão da “sociedade”, como o “Sir Lancelot” ou o “Robin-dos-Bosques” no tempo do “Errol Flynn”.

Ainda o Coutinho que era Bernardino não tinha tapado todas as valas dos canos da “nova-água”, e os postes de “nova-eletricidade” não davam todos luz, e já o “novo-curronquinho” começava a sua “nova-vida”, com bonitas casas, passeios de calçada e rua alcatroada. Ainda não era Ferreira de Castro, e já a malta se transferia do Manel para o Ramos, que, rapidamente, passaria a ser o Cabaço.

No Cabaço, muitos matrecos jogamos. A “cagadinha” do Rui Simplício, era fatal. Eu, dava-me melhor na defesa. O Caravaca também era forte e o Zé alentejano conseguia autenticas proezas no ataque. O Zé Fernando, usando a sua habitual discrição, lá conseguia defender-se. Ao contrário, sempre falando, outro Zé Fernando, mas este, C. Silva, de quando em vez, lá empurrava a bola para a baliza, mas para o conseguir, tinha de levantar a perna esquerda.

No domingo, acho, vinte e três de setembro, do século vinte eram setenta e três de tempo contado em anos (aí vão quarenta e quatro), para a Festa eu fui e o “curronquinho” e o Cabaço lá ficaram. Nos dias seguintes, de cara cheia de “escritos” de todas as cores, me perguntaram:

— Levaste porrada na campanha da “oposição”? (Havia, no final do outubro seguinte, aquilo que o regime chamava de eleições. Da “primavera”, eram as segundas)

— Eu? Não! Fui à Festa de Albarraque!

Não foi porrada, foi o para-brisas da carrinha-boleia que, na volta, encurtou caminho na esquina da padaria da Abrunheira.

“Convenções-Democráticas”, a gente, as fazia também no princípio do “Curronquinho”, bem encostados à larga porta-verde, pela noite e sem ninguém à vista. Sim! Naquela época, quando ainda não era a Ferreira de Castro, quem falasse mal do governo ou da Guerra Colonial, levava porrada antes ou depois de ser preso pela Pide. Lembram-se?

Quando a demagogia e a loucura andam por aí, convém que nos lembremos, que nada é eternamente adquirido.

Todas as “novas-ruas” da Abrunheira deviam ser construídas como o “novo-curronquinho” que, depois, passou a ser, Ferreira de Castro.

Silvestre Félix
24 de setembro de 2017

Foto: Google (Comboio da Linha de Sintra até década noventa do séc XX)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

SANTO ANTÓNIO E O GALO, O RIO E PARA ONDE FOI A ÁGUA

“Outro galo (não) cantaria”, não fosse, a vontade, a dedicação e a paciência do Vicente da Colónia, de lá, ter trazido, o cata-vento que, por obra e habilidade dos dois da Virgínia, o Ti Zé e o Ti Manel, com a serventia do Albano e de muitos outros abrunhenses – incluindo o meu pai Zé, que, para todos os efeitos e conhecimento, lhe chamavam Zé Silvestre e ele aceitava, sendo o acrescentado, como era uso, nome do pai, que, neste caso, era meu avô e padrinho de batismo – o terem colocado no “carrapito” do telhado-alpendre da bica, ali armada, em honra do Santo António que, desde aquele longínquo início da segunda metade do século vinte, passou a ser, também, Da Abrunheira.

Água com fartura, muitos dias até demais porque, à volta dos bebedouros e dos tanques de lavar a roupa, se chapinhava e, quem lá fosse, cuidado tinha de ter, para não enfiar os calcantes na lama, muitas vezes bem misturadinha com o resultado da remoedura, digestão e eficaz transito intestinal, das vaquinhas, Marcina, Estrela, Bonita e, muitas vezes, também da Carocha.    

Todos eles, os mestres construtores, serventes e mais abrunhenses ajudantes e, depois, os utilizadores da bica, da mina, das pedras roçadas de tanta roupa lá ser batida, e da água limpinha que bem lavava e voltava a correr sempre nova, e bem como as minhas vaquinhas e a Carocha, se indignariam com as patifarias e sem-vergonhices levadas a cabo por prevaricadores sem rosto, se por cá voltassem agora – em tempo de (des) uniões da europa, de freguesias e com dois amalocados em cada ponta do planeta, a disputarem a sua própria destruição – e vissem como está tudo seco de água, tanto no verão como no inverno.

E a mina, de água cheia sempre estava, boa e gostosa para matar a sede, agora, se se abrir a porta, em fossa pestilenta está transformada.

Onde está a água? Para onde foi? Perguntariam a Ti Maria do Florindo, a Ti Maximina ou a Ti Silvéria.

Protestaria, e muito, pela seca, também o João Barriga ou Ti Artur Germano. Não era, que muito amantes fossem de água lisa da bica do Santo António ou de qualquer outro sítio. Como acontecia com a maioria dos homens e, porque não, de algumas mulheres da Abrunheira, para bebida ia melhor tinto ou branco, desde que estivesse cheio, o copo ou a garrafa, e amarinhasse até aos neurónios e os deixasse contentes e anestesiados para uma boa sesta.

Do mesmo mal, da falta de água de verão e da maior parte do inverno, se vem queixando aos amigos e atravessadores, o Rio das Sesmarias. Sim, o mesmo que, num projeto camarário parido à pressa e com o cordão umbilical a apertar-lhe o gasganete, lhe quiseram trocar o nome e a categoria.

Classificaram-no como ribeira e deram-lhe um nome de uma terra que está pertinho do Estoril. Aqui, na Abrunheira, sempre se chamou Rio das Sesmarias e é assim que queremos, continue. Porque “carga-de-água”, agora haveria de ter um nome diferente? Os “senhores-inteligentes”, se não sabem, venham perguntar aos abrunhenses como se chama o seu rio.

Retomando as queixas do nosso Rio das Sesmarias, constata-se que há uns tempos, o seu leito está mais tempo seco do que molhado, ao contrário do que era habitual. Mesmo no inverno, corre sempre de fininho até vir uma chuvada. Aí, sobe até meio e, em poucas horas, volta ao “fininho”. Se não chover nos quinze dias seguintes, de “fininho”, passa a parado até voltar a chover outra vez. No verão, seca completamente.

Os atravessadores agora são muitos, mas como a maioria passam encavalitados em andantes de duas ou quatro rodas, sempre cheios de pressa e a grande velocidade, não há oportunidade nem tempo de entabular uma conversa digna desse nome, para além de, nem repararem na presença do nosso Rio das Sesmarias. Diz ele, que tem saudades da companhia do “Artista-Sapateiro”, Ti Joaquim Caga-a-Chuva e do “Cabouqueiro” que tinha a “Ciência-da-Pedra”, Coutinho que era Bernardino.

Eles sabiam, tal como o Rio das Sesmarias, tanto no tempo em que a Ti Mariana Soleto, mãe do Bernardino que não era Coutinho, dele tomava conta, como depois de se ter entregue aos carinhos da Judite Caracol, e do Ti Joaquim ter vindo com a Margarida dos “ditos-e-contos”, do Linhó, para a nossa terra, que todos os viventes que acompanhavam o seu leito desde o cimo da Abrunheira, no Olival e por trás do Cipriano, em frente à horta e por baixo da ponte da colónia, por trás do Santo António, pelos quatro-donos e arroteia até à casa-da-água, passando pela Azenha do Sebastião Moleiro na Capa-Rota, e por aí abaixo iam até à foz, foram morrendo e, hoje, nem enguias que, quando passavam pelo cano até ao poço da horta, eram quase da grossura dum braço, nem ao menos rãs, sapos ou girinos, sobrevivem no pouco tempo de água.

Voltando ao Santo António, que em boa hora tem, neste tempo, cuidadores dedicados que garantem a dignidade do sítio, mesmo que a água corrente já lá não esteja. Somos gratos por esse cuidado e dedicação.

Em tempos, outras e outros cuidadores, pelo local olharam. Lamentando o meu fraco índice “memorial”, decorrente do crescente “litígio” à medida que a PDI avança, com a desorganização dos ficheiros de nomes no rígido, que cada vez está mais mole, torna impossível indicá-los sem os inevitáveis falhanços. De maneira que, quando me surgem dúvidas, não arrisco nomeação, ficando com o ónus de alguma injustiça pela omissão.

Um que nunca esqueço, não sei se alguma vez assumido, o de cuidador, mas, pelo menos, guardador de proximidade, foi. A horta por cima da mina, era o seu local de trabalho preferido e, de hortelão, sabia ele. O Ti Mendes, com aquela comprida barba amarelada, por causa da fumarada que permanentemente por ela passava, dava-lhe um ar de sábio. Acho que, de verão ou de inverno, de casacão se vestia e, dos seus grandes bolsos, sacava os cachimbos que ele construía a partir das melhores canas da horta.

Grandes baforadas, deitava, em troca da ausência de faladura. O ritual enchimento da grande fornalha, caracterizava-se pela função imprescindível daquela grande unha, calcando o tabaco para o seu interior. 

Por ali, sempre se via e, se não estivesse, era porque ia até à casa da fruta do Pechincha, ou subia pelo Largo do Chafariz até ao Álvaro ou à “Menina-Emília”. 

Típica figura que associo sempre ao Santo António. Também o Ti Mendes, hoje, sentiria falta da água corrente da mina e, por consequência, do “treu-laréu” do mulherio a lavar a roupa nos tanques.

Para onde foi a água?

Silvestre Félix
18 de setembro de 2017

Fotos: Google (publicadas no extinto blog «aldeiaviva)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

MOBILIDADE ADIADA, CHARNECA ESQUECIDA E A LOUCA CORRERIA DA CAROCHA


Mobilidade (urbana), era, na certa, palavrão ausente do vocabulário dos abrunhenses de há quarenta ou cinquenta em tempo contado em anos.

Ainda por cima, se fosse reduzida, como é detetável e provada nestes dias do último quartel da segunda década do século XXI, depois do atrofiamento “troikadero” e no meio da pressão sobre a “geringonça”.

Tem dias, em que um abrunhense, para conseguir chegar ao Palácio da Vila, à Volta do Duche ou, ao ainda, Centro de Saúde, precisa de “suar as estopinhas”. Se levado por qualquer andante de quatro rodas, pode correr o risco de chegar a Chão de Meninos ou pouco mais abaixo, e alinhar na “bicha” até lá abaixo.

Se este abrunhense, pela zona alguma vez cirandou usando os pedantes em tempos de menos fartura, sabe que pode meter pela esquerda em pelo menos duas alternativas (não tem nada a ver com a atual maioria na AR) e ser brindado com uma das melhores vistas da Serra, o Jardim da Vigia, e deixar-se escorregar até ao “Morais”, Tuna e Estação. Se não, pode demorar meia-hora, uma hora ou mais e, lá chegado, estacionamento? Nem o cheiro, quanto mais o lugar.

Como tantas vezes já me dizia o Ti Joaquim “Caga-à-Chuva”, queixando-se da utilização da carreira “Boa-Viagem” que vinha de Oeiras e parava lá em cima a seguir ao “Café Brasil”, demorando dez minutos até à Estação de Sintra, passando por Chão de Meninos. Que continuava a preferir ir a pé até à “ajuntadeira”. Naquela época, não entendia a lógica. A carreira era muito depressa para a sua noção de tempo.

Como gostariam os utilizadores das carreiras de hoje, poderem demorar dez minutos, em percurso direto até à Estação de Sintra, por Chão de Meninos e a preço aceitável.
  
O normal, nesses idos tempos do “Artista Sapateiro”, de antes e depois da revolução, era a velocidade que a “Carocha” dava à carroça e a disposição que tinha, naquele preciso momento, para obedecer aos “mandamentos” da Ti Augusta. Atrelada que estava e decerto manifestando o seu desagrado pelo peso e desconforto dos arreios, cabresto enfiado pela cabeça abaixo e o freio na boca, assim que se lhe soltou as guias, aí foi ela “desencabrestada” e só parou quando muito bem entendeu. Saiu do quintal e difícil foi virá-la à direita e, assim que se apanhou no alcatrão, correu pela Largo do Chafariz com o Tavinho dum lado e o Ti Álvaro do outro a assistirem à corrida e, pelo Olival, que ela conhecia bem, rolou até à curva. Aí, a Ti Augusta, com muita dificuldade, lá a encaminhou pela esquerda em direção à Quinta Lavi e aos eucaliptos.
 
E então, a sorte passou-lhe à frente (da Carocha) e, a nós também, porque cambaleados na carroça, de vento na cara e cabelos voando, não teríamos tempo para nada, se, passados os eucaliptos e chegados ao cruzamento da Charneca, o mercedes 280 que vinha do lado de Lisboa, não tivesse travasse a fundo, dando primazia à que chamávamos burra, mas que de burrice não tinha nada.

Ela sabia que o caminho era à esquerda, mesmo que nunca tivesse demonstrado qualquer simpatia por essa opção ideológica e, quando se aproximou do Chafariz da Charneca (D. Maria I), saiu do alcatrão e estancou em frente ao bebedouro, metendo umas litradas para dentro do bandulho.


A Ti Augusta, que até ali nem tinha tido tempo para respirar, desce da carroça e, dirigindo-se à orelha direita da Carocha, agarrando-a e, como se estivesse a falar para dentro dum grande funil, disse-lhe, num tom bem repreendedor, daquelas boas, que ninguém gosta de ouvir.

Eu, muito quietinho, não estava a perceber nada. Então, a minha mãe subiu, agarrou as guias, destravou a carroça, puxou a guia esquerda fazendo a Carocha recuar o veículo um metro ou pouco mais e, com um ar triunfante como muitas vezes lhe via, atiçou a Carocha encaminhando-a para a estrada e aí fomos nós em trote controlado, até virarmos em Ranholas, à direita, para Vale-Porcas que ainda não era Vale Flores.

Também me lembro bem, que a viagem de regresso, carregada de erva acabada de apanhar para as vaquinhas, correu uma maravilha e, a D. Carocha, nada de aventuras. As grandes orelhas oscilavam conforme a voz da minha mãe se fazia ouvir. Quando chegamos, e depois de a desatrelarmos da carroça e de a libertarmos dos arreios, cabresto, freio e demais acessórios “prisioneiros”, a Ti Augusta teve uma longa conversa com a Carocha, deu-lhe a guloseima preferida, fez-lhe a doze certa de festinhas e, acredito eu, igual, a burra que “era esperta que nem um alho”, nunca mais voltou a fazer. 

A minha mãe foi apanhada desprevenida e teve muito medo no cruzamento. Contou-me depois, que chegou a pensar que o carro viria contra nós e que, incluindo a Carocha, ia tudo p’ro “maneta”. A Ti Augusta conversava com os seus animais. E, duma forma geral, porque os tratava bem, conseguia que lhe obedecessem. Foi o que aconteceu ali, junto ao Chafariz da Charneca.

A propósito de Charneca, ali, naquele sítio, em menos dum quilómetro quadrado, foram, do ponto de vista da toponímia, ignoradas designações originais dos locais e pessoas: Charneca, Chancuda, Casal da Charneca, Ti Zé da Charneca ou Chafariz da Charneca. Não tenho nada contra as personalidades usadas para as vias e rotundas da zona, sendo que, algumas, se calhar, até mereciam ruas, rotundas ou avenidas mais importantes. Condenável é, na minha opinião, não serem levadas em conta, para este efeito, a tradição, os nomes dos sítios e pessoas, quando é necessário colocar uma placa toponímica.

Pois é, da “mobilidade-urbana-reduzida”, fiz jus à expressão e, entusiasmado com a lembrança daquela viagem até Vale-Porcas com a minha mãe e encarroçado na velocidade louca da Carocha, escrevi pouco. E é um tema tão importante para os abrunhenses. Fica para a próxima.

Silvestre Brandão Félix
Abrunheira, 11 de setembro de 2017

Foto tirada por mim: Chafariz da Charneca (D. Maria I – Século XVIII)