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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

ESTAÇÃO DE SINTRA, O CYNTIA E A LAMBRETA DO MEU PRIMO CHICO

Duas ou três vezes por semana, era certinho e direitinho; “Boa-Viagem” da meia-noite desde a Estação de Sintra até à Abrunheira. A espera, era quase sempre feita no “Cyntia”, com a paciência sem limites do Ti Rodolfo. Pelo gasto duma bica, deixava-nos estar ali uma ou duas horas à espera do horário da camioneta. Aproveitávamos para pôr o estudo em dia, ou passar a limpo algum apontamento das aulas do dia (noite). Não era assim, se a carteira estivesse abonada e houvesse mais alguém para rachar a corrida de táxi desde a Estação de Mem Martins. Aí, dependendo da hora da última aula, não seguia até Sintra e chegava mais cedo a casa.

Não era apelativo descer no Cacém, vindo do Rossio depois dum dia de trabalho, mas, se queria perspetivar o futuro com algum sucesso profissional, mesmo com a tropa e quase de certeza, a Guerra Colonial pela frente, tinha de ser assim. Ainda por cima, todos me ajudavam. O meu chefe, Sá Rodrigues, dava-me alguma “folga” e deixava-me sair mais cedo quando precisava de estudar para algum ponto (teste).

Mas, muito para trás disso, já o comboio e o Cacém eram destino marcado. Antes de três ou quatro de tempo contado em anos, e das boleias na lambreta do meu primo Chico até à Estação de Oeiras para apanhar o comboio até ao Cais do Sodré. Foi ele, o meu Primo Chico, o adorado filho da minha tia Ermelinda e do meu tio João e da namorada, depois mulher, adorável Júlia, que prometeu ao Sá Rodrigues da STAR da rua do Alecrim, arranjar um puto ajuizado para “paquete”, primeiro interno e depois logo se via. 

O Chico, que na Guerra Colonial pela Guiné — daquela mesmo verdadeira, com tiros e tudo que, se no mundo dos vivos ainda estivesse, dela se lembraria e muito, ao contrário de outros que, passado tanto tempo, teimam em querer branquear a injustiça de mais de uma década de sofrimento inglório — muito tinha sofrido, era um bom primo.

Lá me levou no primeiro andar do 44 verdinho da “Carris”, desde o Cais do Sodré até à avenida Sidónio Pais, onde era a sede (palácio) da STAR. Para primeira vez na Capital, não estava mal percorrer a avenida da Liberdade empoleirado no 44. E foi nesse dia de estreia que tudo começou, pouco depois do “outro” ter caído da cadeira, mas ainda antes de, definitivamente, ter embarcado para Santa Comba Dão. 
 
Antes, muito antes disto tudo; dúvidas não havia! “Exame-de-Admissão” passado, só para entrar na «Escola Industrial e Comercial de Sintra», no Cacém. «Liceu Nacional de Sintra», era outra coisa, assim para “bem-remediados” ou “ricos”, que, depois do sétimo ano, seguiriam para advogados ou médicos. Com certeza havia exceções, que confirmavam a regra.

Os outros, todos os outros que tivessem a ousadia de querer “estudar”, só no Cacém. Lá, estudavam alguma coisa e aprendiam “um-ofício”; “montador-eletricista”, “serralheiro” ou “geral-do-comércio”. Este, mais escolhido pelas raparigas que também tinham “lavores-femininos”. Acho que era isto, senão, que me desculpem qualquer coisinha.

Naquele dia, chovia muito de manhã. A Ti Augusta, com o coração de mãe, apertado, como se tivesse culpa de me deixar ir, tinha-me enrolado dos pés à cintura, papel de jornal por dentro das “calças-de-ganga-com-peitilho” (espécie de farda com identificação bordada a vermelho, no peitilho), e dos botins de borracha, assim, para o folgado.

Por cima das várias camisolas, pôs-me um capuz feito de sarapilheira, recomendando-me que, quando entrasse na camioneta “Eduardo-Jorge”, a deitasse fora. Para compor o ramalhete, deu-me, já aberto, um chapéu-de-chuva que mais parecia uma tenda de campanha. Chovia bastante e estava vento. A Ti Augusta, fazendo-se muito forte e guardando as lágrimas para quando eu já não tivesse à vista, fez-me as habituais recomendações e lá fui eu.

Falta acrescentar que tinha onze anos e ia apanhar a camioneta a “um-quarto-prás-sete” da manhã, na “Adreta-Plásticos”, e era dezembro. Quando saí de casa eram seis horas e estava completamente escuro. Fiz aquele caminho, àquela hora, muitas vezes sozinho, outras, acompanhado com mais putos, que, como eu, entravam às oito no Cacém e não havia outra camioneta que desse tempo, mas daquela vez, tive muito medo. Só eu, a chuva, o vento e todos os fantasmas que inventei no quilómetro de caminho — porque fui por detrás da Quinta-Lavi —  que me pareceram, vinte.

As mães daquela época, inquietavam-se muito. Os filhos e filhas — sim, filhas! Começava a haver raparigas a frequentar a escola para além da quarta-classe. Neste caso, e pela mesma altura, da Abrunheira, lá andavam algumas no Cacém, também — alguns dias da semana, tinham de sair de casa à mesma hora e nas mesmas condições que eu saí naquele dia. Com as filhas, ralavam-se cedo por causa dos namoricos e, com os filhos, começavam a sofrer por antecipação com a ida à inspeção militar, assentar-praça e, numa grande parte das vezes; partida para a Guerra Colonial que, na altura, se dizia “Ultramar”, como aconteceu com o Fernando, com o “Pezinhos” e com o Chico.


Não fossem tocados; “E-Depois-Do-Adeus” e a seguir a “Grândola-Vila-Morena”, naquele dia 25 de Abril de 1974 e o Joaquim Furtado e depois o Luís Filipe Costa, não lessem os primeiros comunicados em nome do “Posto-De-Comando-Do-Movimento-Das-Forças-Armadas” nos Estúdios da Sampaio e Pina do antigo Rádio Clube Português e, por qualquer razão, se tivessem atrasado e feito a distribuição dos cravos vermelhos uns meses mais tarde, talvez me tivesse tocado também, embarcar num “navegante” qualquer na Rocha-Conde-De-Óbidos, em direção a África.

Ontem fomos votar livremente e em liberdade. Por favor, valorizemos as coisas boas que temos.

Silvestre Brandão Félix
2 outubro de 2017
Fotos: Google (Fachada do restaurante Cyntia - Sintra) e (Edifício Escola Industrial e Comercial de Sintra . Cacém - anos sessenta do sec XX)