quinta-feira, 31 de outubro de 2019

MESMO SEM TRÉGUAS... DA "MOLHA-PARVOS" E OS OUTROS


Mesmo sem tréguas da “molha-parvos e os outros também, lá fui hoje, pelos caminhos do Coutinho que era Bernardino, com muita companhia do nosso Amigo “das Sesmarias”, fazer o exercício matinal… (segue dentro de dias)

Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2019


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PELA FRESQUINHA, ACORDANDO O SOL...


Pela fresquinha, “por esses caminhos abaixo”, acordando o Sol, muito se descobre… e recorda…

O Centro Social era para ter sido e não foi, mas a rua, que estava mesmo à mão (e ao pé), não a deixamos fugir. Não havia Centro Social, mas pelo menos havia rua.

Antes da ladeira, as Maçarocas, que na semeadura não me lembro de as ver, as de milho, mas recordo-me bem do grão-de-bico. De pedras era farta e, por isso e pela secura, a adequada seara do seco e rijo grão-de-bico. E aí, pelas Maçarocas, que nunca consegui perceber, para além do grão, também havia fartura de grilos. Era uma contínua cantoria de grilos e, para entremear, também de cigarras.

Ao alto fui, e a um “passo” do Casal-da-Peça, fiquei. Não desci, porque muito longa e desprotegida, no que toca a bermas, a caminhada ficava. Que soberba panorâmica se topa de toda a Abrunheira em direção à Serra. A luz do Sol, ainda rasteira, dá-lhe um brilho que só dali se pode apreciar. 

Pela do Casal Novo em estrada velha, caminhei. Ensaibrada, desgastada e esburacada. É uma das pontas do que conhecemos por “Parque Industrial da Abrunheira”. E dali se vê tudo! São dezenas de unidades industriais e armazéns de todo o tipo. Das Maçarocas ao IC 19, muita gente ali trabalha todos os dias.

Quando, pelo final dos cinquenta do século vinte, o Rafael que não era coxo, entrou pelo portão da novíssima Fábrica de Lixas e Colas Sincal, e uns poucos anos depois, chegados da pérola do Atlântico — Madeira, o pai do Virgílio ou o pai do Costa, entraram na, acabada de construir, Fábrica de Borracha Leacock Rosa, estavam longe de imaginar que sessenta anos depois, estas já não existiam e, em vez delas, outras quarenta, cinquenta, sessenta ou mais empresas, ocupavam os antigos espaços e todo o perímetro nascente da Abrunheira.

Genérico da primeira telenovela portuguesa, nos
estúdios da Edipim
Rente ao que foi a Átil do Gomes, consigo passo ligeiro pela do Thilo Krasmann, até olhar a placa de venda da velha Edipim. Ideia e construção do saudoso Thilo. Ouve-se o genérico da telenovela “Vila Faia”, os aplausos dos “parabéns” do Herman e, finalmente, o sucesso do “Conta-me como foi”. Tudo acaba, mas é sempre melhor quando acontece com dignidade.

Ainda antes das sete da matina, já ia alinhado com os muros, a nascente, da “Quinta Lavi”. Dali, sentia o agradável cheiro a pêssego, a maça ou a pera. Estavam do outro lado do muro, mas senti-os, os cheiros, mesmo junto a mim. Os dez anos de idade, não inventavam outra maneira de me distrair do medo. Era noite escura como breu e para a escola no Cacém tinha de ir. A Helena Monteiro não perdoava atrasos. A carreira “Eduardo Jorge”, na paragem da “Adreta”, me levava até ao comboio. À minha Mãe, doía-lhe ver-me sair de casa sozinho aquela hora, mas “dos fracos não reza a história” e os putos daquele tempo, tinham de ser fortes e bem cedo, como se pode ler:  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/10/estacao-de-sintra-o-cyntia-e-lambreta.html)

Por ali fui, pelas traseiras do “Leroy”, contornando o bem cuidado ajardinado até passar por debaixo do IC 19 com o intuito de mirar o “Chafariz da Charneca” que já não é Charneca e há de ser qualquer coisa entre a República da Coreia e a, merecida Raul Solnado. Podia estar melhor. Como a esperança fica sempre para a frente, acredito que ainda hei de ver aquele “monumento”, bem tratado, com o destaque merecido e, para fazer jus ao seu destino, a deitar água, porque agora está sequinho! Já lá vai o tempo em que a nascente da “Chancuda” lhe dava toda a água precisa. Muitas pançadas de água fresquinha do “Chafariz da Charneca”, as burras “Carocha”, mãe e filha, ali beberam como há uns anos contei no link já a seguir: https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/09/mobilidade-adiada-charneca-esquecida-e.html 
    
Esta “faladura” diz respeito à “Carocha-Filha”, mas a “Carocha-Mãe”, muito contaria e, decerto, corroboraria as façanhas encavalitadas “salvo-seja” porque, embora em correrias dadas a galope, nada tinha de cavalar, mesmo não parecendo, era só prima, uma burra, uma jumenta, mas animal inteligente. Assim que via o meu irmão, logo sabia o que havia de fazer. Ela estava sempre ao dispor das investidas do Vítor, qual D. Quixote que, por entre searas e ventanias, em pelo, “galopava” até a Carocha se cansar. Mais a sério, (naquele tempo o adjetivo ainda era masculino), todos os dias a Carocha-Mãe se deixava albardar para, devagarinho, com o meu irmão bem encaixado no lombo, levar as bilhas cheias de leite — bem entaladas em cada um dos lados da pança — que a minha Mãe tinha acabado de mungir das suas vaquinhas. Aí iam, desde o Casal Novo em Vale-de-Porcas, virado Vale-de-Flores, e que já não existe, até à Abrunheira, ao posto de receção do leite, ali, onde hoje, é o Café O Combatente. 

Chafariz da Charneca visto por mim . outubro 2019
Na volta, nem sempre os alforges iam vazios. O Vítor levava os recados que a minha Mãe lhe encomendara e a paragem no Faial servia de descanso. De regresso voltavam a passar pelo Chafariz da Charneca e, com o Casal do Ti Zé da Charneca à frente, viravam à esquerda para entrar no fundo da horta do Casal Novo, passando por cima da pequena ribeira.  

Ora, o Chafariz da Charneca, construído em 1781 a mando do Presidente do Senado da Câmara de Cintra, José Diniz de Oliveira, reinava há 4 anos a Rainha D. Maria I, está sempre na encruzilhada das nossas caminhadas, sejam apeadas ou encavalitadas nas burras Carochas, Mãe ou Filha. Neste dia também lá passei, antes de regressar, “a butes”, à Abrunheira, ainda pela fresquinha.



30 outubro de 2019
Silvestre Brandão Félix

domingo, 13 de outubro de 2019

BALTAZAR, O AUTORITÁRIO



Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”, obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado, “Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
BALTAZAR, O AUTORITÁRIO (gravura do google)

E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas aos abrunhenses, aqui evocados!

O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses, era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar, representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em duas ou três voltas, no ataque.  

O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho, encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que nem um perdido.

O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter que levar com o “cornudo” Baltazar.

Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”, (durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a caminhada para casa.

Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”, tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência, no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”. Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três tinto para O Carlos que não era “Fadista”. 

Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.

Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar, ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”, trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o chão com as quatro patas.    

Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.

Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos” se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.

À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”. Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê, nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!

Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado” para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário, resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.

— Baltazaaaaaar!!!

Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”, sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura” da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”, tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas” e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava naquele instante.

Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.

O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos” para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista” e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas e ia embora.
………………………………………….

Meio-século depois, a discriminação social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância, por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma dessas vítimas.

Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio)
O nosso Chafariz, obra da autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu — Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e, especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande abraço!

Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

PELAS ESTRADAS DE SINTRA, FUI


Pelas "Estradas" de Sintra, fui, como outras tantas vezes. "Mistérios", que procuro, nada!  

Mas, muitas evidências! 

As gruas e guindastes na paisagem de Sintra (Foto minha)
As "Escadinhas", viraram "escadonas". Muito mais me custam a subir, do que quando as subia com a minha Mãe. Pareciam muito compridas, embora de subida fácil, mas agora… mesmo assim, já voltei a conseguir subi-las, ultrapassada que está, aquela longa travessia do… dilatado perímetro abdominal.   

Nas “Escadinhas”, descendo, não muito longe do princípio, à direita, nunca se esquecia de me dizer; “foi ali, naquela casa, que a Mãe nasceu”. Agora… olho, olho e não sei qual delas, é!

Elas, as “Escadinhas”, eram do hospital, mas agora… porque virou “monstro sagrado” (a capela) ao abandono ou, pelo menos, vazio de tudo o que foi e deu… sim, deu vidas pela cura e pelo nascimento, porque muitos também viram a primeira luz deste mundo, dentro daquelas paredes.

A descê-las e quando se chega cá abaixo, se virarmos à esquerda e continuarmos a subir a ladeira, temos logo ali “à mão de semear”, o que foi mercado de muitas vendas. Com a minha Mãe, lá fui duas ou três vezes. Uma ou outra vendedeira, das mais velhas, ainda conheciam a Augusta dos “Ferras”. Fechando os olhos e com a mão em concha por detrás da orelha, ainda se podiam imaginar os pregões. E a minha Mãe sabia o das Camélias e das Hortênsias.

Agora, o mercado, em boa hora aproveitado porque de abandono sofreu, passou a ser, “Museu de História Natural” com o decisivo contributo do escritor Miguel Barbosa que, valorizando a sua tendência paleontológica, lá colocou a sua valiosa coleção. Soube ontem que faleceu nestes dias. Que descanse em paz. Do Miguel Barbosa conheço bem a “vagabundagem” do “Palheiro”, escrito por ele. No GITU-Grupo de Intervenção Teatral da URCA (Abrunheira), pelos idos de 1979/80, dei voz ao descrente e revolucionário, “Segundo Vagabundo”. O “Grande” Gil Matias nos ensinou e encenou para estrearmos no, ainda novíssimo, pavilhão da URCA, e, depois do sucesso, por aí andamos Concelho de Sintra afora.   

Nesses anos, a Abrunheira e os abrunhenses ou abrunheirenses, tinham sede de cultura, e agora têm sede de quê?

Voltando aos “mistérios”, aliás, evidências de Sintra e indo pela direita, no “Rio”, que também já era “do-Porto”, na ponta de água que a minha Mãe também usou, cruza-se a entrada para o “paradeiro-caça-níqueis” dos motorizados que, muito pertinho ficam do nosso “Palácio”.    

Começando a subir à direita em direção à Câmara, está um pequeno edifício de arquitetura atraente, mas muito mal-amado; era o “Dispensário”. Agora, porque os “tempos” estão “avariados”, o “Dispensário” da assistência aos tuberculosos, foi dispensado das tarefas que lhe estavam destinadas e permanece de janelas e portas entijoladas.

A meio da rampa, também do lado direito, se calçavam as “parelhas”. Era o ferreiro que ainda “bem-me-lembro”, de, por lá, o ver e ouvir aquele timmm! timmm! do martelo dando na bigorna moldando a ferradura que, em brasa ficava, depois de acamada na forja bem quente pelo “ventoso” fole. Por lá, sempre estavam parelhas aguardando “sapatolas” novas.

Os Toc! Toc! dos mesmos cavalos “ferrados” no “Rio-do-Porto”, puxando as charretes que pelo tempo do Eça andavam e passavam, viraram Tuck! Tuck’s! de barulheira infernal e cheirete a petróleo.

Os passeantes, bem vestidinhos e cheirosos a perfumes carotes, viraram turistas dos quatro, cinco ou seis cantos do mundo, de pouca vestimenta e simples, despejados aos milhares dos comboios da CP, ou dos autocarros que enchem todas as ruas e passeios do lado de cá da Serra, ou seja, do lado contrário de onde foram promovidos e feitos, grandes parques de estacionamento.   

Muitas vezes entrei, com a minha Mãe, na mercearia que havia na Alfredo da Costa, a chegar à Câmara, praticamente em frente à escola Conde Ferreira, agora Espaço do Cidadão que, salvo erro e eventual esquecimento, se chamava “Barata”. Na ida para a Serra, a minha Mãe comprava lá, para levar, um cartucho de café. Não sei a quantidade, mas era um cartucho, daqueles cinzentos às riscas encarnadas e que se fechavam em cima fazendo uma ou duas dobras e, depois, puxando e dobrando dos dois lados para o meio as duas pontas, como se fossem duas orelhas. Agora, são esplanadas até quase aos frangos.

Na mesma rua, no sentido da Estefânia, a sapataria Teixeira, mais ou menos a meio. Eram caros os sapatos. Para nós, quando os houve, só na Bramonte de São Pedro apontado no livrinho das cobranças a prestações. Veio-me à lembrança, por causa da Bramonte, o falecido Zé Carvalho com quem convivi bastante, com gosto, na Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim que, também já era, e que muito pouca vontade política existe, para que volte a ser. Foi nos mandatos do Conde de Saborosa e do João Alberto Peniche.

Lá mais para a frente, na Alameda dos Heróis da Grande Guerra que para os sintrenses sempre será “a correnteza”, conseguimos vislumbrar dos mais bonitos panoramas da “Vila de Sintra”. Como em outras circunstâncias, também aqui borraram o bonito “quadro” com salpicos de grandes gruas e guindastes que desfeiam, e de que maneira, toda a paisagem.

A bica, há mais de 50 anos (do Google)
Guardando para outras caçadas aos “mistérios” das estradas de Sintra, resta-me lembrar que a ida a Sintra não fica completa sem a indispensável passagem pelo Cyntia. Já não está lá o Ti Rodolfo que, por uma bica, muitos serões, me aturou, até que a “Boa Viagem” da “Meia-Noite” viesse, para me levar e a outros de volta à Abrunheira, depois das lições na Escola do Cacém. O Ti João, que com um sócio lhe sucedeu, manteve a bondade e a paciência a que estávamos habituados. Hoje, está lá o filho Ricardo que herdou do pai tudo de bom, acompanhado pelo Artur mais conhecido de Sintra e arredores. Agora, quando lá entro, até parece que estou num qualquer outro sítio, no estrangeiro. Raramente se fala a língua de Camões como, aliás, acontece em todos os lugares de Sintra.

Silvestre Brandão Félix
11 outubro de 2019



sábado, 27 de julho de 2019

À DISTÂNCIA DE MEIO SÉCULO


Há meio século, tudo tinha outra “cor-embaciada”.

No dia seguinte, a Ti Augusta completava mais um ano de vida. Ia nos cinquenta e cinco. “Essa vida”, cheia de trabalho e sofrimento, mas também de muitas alegrias, como fazia sempre questão de dizer. O incentivo da minha Mãe foi decisivo para aceitar a “proposta” do Chico.

E, querendo, era para o dia seguinte, porque naquele 10 de junho de 1969, como era tradição, estava o Terreiro do Paço cheio com uma gigantesca parada de militares, comemorando o “célebre-dia-da-raça”.

Muitos — a propósito dos quais o Almirante e o “Professor da oportunidade perdida” e da primavera chamada “esperança”, espetaram medalhas no peito dos pais, das mães, das viúvas ou dos filhos e filhas — não puderam responder à chamada, porque os desígnios do império os transformaram em heróis depois de os levarem desta terrena vida. Quase todos os que responderam de viva voz para receberem a medalha, os heróis vivos, foi, porque transportaram no corpo o resultado das balas ou dos estilhaços que os haviam atingido.

Parece-me, agora, que tudo se passou noutra “encarnação”. O “Botas”, demente terminal, ainda vivia. Só se “apagaria”, um ano depois, também num 27 de julho.

A hora da despedida - Ida para a Guerra - Imagem RTP
Aquela Guerra Colonial, que ao tempo se chamava (baixinho porque algum “bufo” podia ouvir) “Guerra do Ultramar”, estava ativa em todas as frentes e, do Cais da Rocha Conde d’Óbidos e de Alcântara, continuavam a zarpar “paquetes” das companhias: Colonial de Navegação e Nacional de Navegação, carregados de tropa para combater os movimentos de libertação nas franjas do império. As despedidas, comportavam o cais cheio de lenços brancos acenando aos seus, até que o mastro mais alto desaparecesse no horizonte. De todos os que partiam, e porque iam para a guerra, nem todos regressariam.    
    
Ainda não tinha feito os quinze, mas lembro-me bem que por aqueles primeiros dias de trabalho na STAR, no 10 da Rua do Alecrim, que por ali ia no seguimento da boleia na lambreta do Chico até Oeiras, o comboio esteve parado alguns minutos à frente do “Cais da Rocha”, e assisti, embasbacado, a um daqueles tristes espetáculos. Naquele momento, impressionado, pareceu-me não faltar muito tempo para eu próprio, poder ser protagonista de cena idêntica.  

O meu primo Chico, depois de se ter safado das cheias do “Cacheu” e dos tiros nas emboscadas dos guerrilheiros do PAIGC, e ter tido a sorte de desembarcar em Alcântara, na volta, voltou para a marcenaria onde já trabalhava antes de “assentar-praça”.

Um dos clientes habituais onde ele se deslocava muitas vezes, era a STAR. Numa dessas idas, o Sá Rodrigues, homem da contabilidade e pessoal (ainda não tinham inventado a expressão-recursos humanos) da STAR na Rua do Alecrim, seu bem conhecido, aceitou que ele, o Chico, levasse lá o primo de catorze anos para preencher a vaga de “paquete” na secção dele. O primo de 14 anos era eu e assim lá fui! Naquele 11 de junho de 1969 e depois das perguntas e respostas, fiquei aprovado e comecei nesse mesmo dia a trabalhar e a ver o mundo pela “janela do terceiro andar”.

Tenho uma relação péssima com datas, mas, “mil anos que viva”, não me esquecerei daquele dia. Fez cinquenta de tempo contado em anos. O mesmo tempo, assim contado, do primeiro salto na Lua.

Como um simples comentário ou recado pode ser tão importante na vida duma pessoa. Se o Sá Rodrigues não se tivesse cruzado com o Chico naquele dia, o meu percurso de vida teria, certamente, sido diferente.

Desde aqueles dias e pelos outros dias, semanas, meses e anos seguintes, com o “trago” da dose de cafeína emborcada no Cyntiaantes bem medida e tirada pelo Ti Rodolfo e mais tarde pelo Ti João — e depois embalado no comboio até ao Rossio, lá ia à procura da experiência e do conhecimento que me transformaram em homem, fosse na carruagem da “sueca” e “bisca-lambida”, das “gordas do Diário de Notícias” ou de leitura em livro censurado  e “forrado” por causa dos “mirones”, ou na de bancos castanhos com os engravatados e “flausinas” com  as bochechas cheirosas e “empoadas”.

Praça Duque da Terceira (Cais do Sodré) - Google
Da “janela do terceiro andar”, via o bem e o mal. Com a “janela” aberta à minha frente, escolhia o caminho. Umas vezes bem, outras nem por isso, mas ouvia sempre um sopro atrás da orelha que me punha no certo. O Cais do Sodré ensinava tudo. Mesmo que não quisesse, aprendia sempre alguma coisa. Dos bitoques e imperiais do “Califórnia”, dos bás-bás do “Caneças”, dos pastéis de nata da “Zarzuela”, das bicas do “Recife” ou da “Brasília”, dos digestivos do “Brithis Bar”, das fresquinhas do “Atlântico, da loiça partida do “Grego”, das vieirinhas do “Porto de Abrigo”, do frango no espeto do “Rio Grande”, das sardinhas do “Carvoeiro”, das cabeças de peixe da “Tasca da Ribeira”, das bifanas do “Escondidinho”, do SG gigante da “Inglesa” e dos livros do Eduardo Olímpio.

Enfim! Sendo o ponto de partida do lado de cá da Serra, nas bordas do “Das Sesmarias” e Abrunheira dita “Brasil” por lembrança do voo escaqueirado protagonizado pelo Coutinho que era Bernardino e pelo Sacadura que era Borrego, mais tinha era de aprender.   

Desde a “janela do terceiro andar” via, ouvia e sentia tudo. Dos amores nados e desfeitos, até às debandadas à frente da Pide/DGS e seu “exército” de “bufos”, passando pelas angústias e ansiedades com a tropa e uma ida certa e obrigada para a Guerra.

Como é que, alguns, ainda podem querer dar “colorido” aquele tempo de há meio século?

Silvestre Brandão Félix
27 julho de 2019