terça-feira, 15 de março de 2011

NO LUSCO-FUSCO ABRUNHENSE

E a mim não me escapavam as notícias que saíam daquele rádio de plástico de cor bege que descansava na mesa da cozinha com a antena bem esticadinha para o teto. As sílabas mais difíceis eram soletradas devagar mas já conseguia ler bem o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro

(Pergunta o inteligente) Na taberna? Mas os putos….

Sim, eu sei… mas o Ti Álvaro deixava-me ler “O século” durante o dia.

Elas, as notícias, estavam lá, podiam não estar todas porque os homens do lápis azul cortavam muitas, principalmente as que falavam do “Estado Português da Índia” que já não era, porque o Nehru, uns dias antes do Natal, tinha expulsado os militares portugueses de Nagar-Aveli, Goa, Damão e Diu. Também riscavam e cortavam todos os telegramas e telexes sobre a Guerra que tinha começado em Angola e nunca deixavam escrever sobre os nossos tropas que iam em navios para lá. Mas eu lia as notícias da Guerra do Vietname que era com os Americanos e os homens do lápis azul não se importavam.

Oh Mãe… quando o Vitor for p’a tropa já não há guerra, pois não?

Ai Filho, Deus queira que não, ai… valha-me Deus, o que te havias de lembrar.

Oh Mãe, quando eu for p’a tropa já não há guerra em Angola pois não?

Oh Filho… falta muito tempo contado em anos para ires para a tropa.

Mãe, eu não gosto da tropa.

Filho, não digas isso, fala baixinho… «diz a minha Mãe olhando à volta muito aflita, porque naquela época salazarenta até as paredes tinham ouvidos.»

À hora da última ordenha…

(que digo assim só para que neste tempo se entenda, porque em todas as vacarias da Abrunheira se dizia “mungir” e “mungidela”)

…e da última refeição de manjedoura bem cheia de palha, feno e ração demolhada com “talinhos” de alfarroba, o meu destino ficava em caminho e no banco corrido da “sociedade” conseguia ver as imagens na caixinha da televisão que o Jorge Farpela ligava à mesma hora que o Ti Américo, a mulher Ausenda, ou o Zé da Natália, abriam o “posto do leite” no sítio onde, no tempo de agora, tem um café que se chama “O Combatente”. Todos se encaminhavam, durante uma hora de tempo contado, para o “posto do leite”, levando o precioso líquido para o “grémio”. No dia seguinte, muito cedo, os úberes das vacas lá voltavam a fazer pressão nas tetas apressando a mungidela da manhã.

(E dizia o inteligente) – Vaca, úbere, tetas… mas que raio de linguagem… daqui a cinquenta de tempo contado em anos, tudo isto tem outro significado. A Abrunheira é terra pacífica e os abrunhenses estão todos de bem com a nação (por enquanto. Digo eu que sou inteligente e não pio o que sei a ninguém) mas é bom não arriscar, deixando que a “mostarda” lhes chegue ao nariz.

Na “sociedade” via, e lia, os desenhos animados. As legendas passavam depressa e eu corria atrás sem me distrair: O “Perna-longa” o “Gato Félix” e o “Gato Silvestre”, o “Bip-Bip”, o “Speed-Gonzalez”, etc., eram alguns dos heróis.

No lusco-fusco abrunhense e os postes da luz já acesos. De baixo para cima em direção ao Chafariz, a luz do interior da taberna do Ti Álvaro era amarela. Sem som, como se de mimos falássemos, mexiam os braços com copos na mão. De dois ou de três, os copos eram sempre cheios de vinho e depressa se despejavam naquelas gargantas sedentas.

Oh Filho! Espreita só, não entres!

E eu espreitava e via e não ouvia!

Na Abrunheira, os copos de dois ou de três, envenenavam a alma. As passadas trôpegas avançavam num trilho irregular e, pela noite dentro, não traziam a boa-nova, o carinho, o bom trato.

Durante o dia, eu lia o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro e não havia notícia que me escapasse. Mesmo as que não estavam escritas ou haviam sido riscadas a lápis azul, eu, as conseguia adivinhar …, sem que o “inteligente” desse por isso…

Silvestre Félix

quarta-feira, 9 de março de 2011

POR ESSES CAMINHOS ACIMA…

Naquela época, “Por esses caminhos acima” chegávamos ao Linhó, aos Celões, a Ranholas e, mais perto e a direito, à Colónia. Hoje, só conseguimos chegar à Colónia ou, como se diz no papel, Estabelecimento Prisional de Sintra. E lá, muito tempo passado com anos contados em quatro paredes muito apertadas pela sociedade madrasta. Os homens feitos neste tempo enviesado e ausente de valores criados pela sua mão. Incapazes de fazer a curva do sucesso socialmente aceite.

Oh filho! Vê lá, tem cuidado, porque eles andam sempre por aí.

É verdade Mãe, eles andam sempre aí, mas não é só “por esses caminhos acima”, eles estão por todo o lado, nos sítios onde menos esperamos, aí estão eles.

Na maior parte das vezes estão ao pé de nós e não os vemos, tem ocasiões que até dizem que são nossos amigos e depois de contarmos dias, meses, anos se for preciso, olhamos duas vezes seguidas, «com olhos de ver…» sim, porque muitas vezes olhamos e não estamos a ver, e assim, «com olhos de ver», conseguimos descortinar que não são eles mas sim os outros, aqueles que a minha Mãe sempre me avisava:

Cuidado filho, não acredites sempre à primeira, tens de esperar o teu tempo, não vás de repente “por esses caminhos acima”.

O tempo vai sendo contado e muita água vai correndo pelo Rio das Sesmarias…. sempre a correr…. até quando não chove, ela, a água, corre…. corre, pelo Rio das Sesmarias, e, já no verão da vida, consigo também ver, «com olhos de ver», o contrário. É como se fosse um espelho ou como se conseguíssemos olhar para dentro de nós. Eu agora quero sempre olhar «com olhos de ver». A verdade dos sentimentos é tão firme e forte, como o leito do Rio das Sesmarias depois de assoreado para se lhe tirar a sujidade e as areias que mantinham a estrada principal da Abrunheira transitável. Ainda que só por lá passassem as carroças, os carros de bois e, uma vez por ano, a máquina debulhadora dos cereais produzidos pelas searas do meu Avô Silvestre (Velho).

O Sapateiro de Manique também tirava areia para marcar a eira que o seu rebanho de ovelhas, à custa de muita pisadela, ia fazer no Serrado da Fonte. E o bacalhau cozido com batatas que a minha Avó Gertrudes se encarregava de dispor para os comensais… e o Sapateiro de Manique, naquele ano e todos os anos antes e todos os anos depois… Oh patroa, o que é que pôs no bacalhau? Está cá um pitéu! Deite lá mais uma postinha… E, no Rio das Sesmarias, na linha de partida “por esses caminhos acima”, os princípios e os sentimentos só valem se forem como o seu leito: Profundo e limpo!

Assim conseguimos ser mais felizes e acreditar que podemos ir “Por esses caminhos acima”, mesmo que tenhamos de contornar os obstáculos da vida.

Silvestre Félix

domingo, 6 de março de 2011

UM CORRIDINHO?

E o Ti Faneca toca, toca… e o pé bate, bate… e o cigarro no canto da boca, arde, arde… e os pares dançam, dançam, dançam…. até que, o Rafael Coxo, faz sinal ao Ti Faneca, a concertina pára.… o Rafael Coxo sobe ao palanque, e diz, aplicando toda a sua sapiência: "Alto e para o baile! Os Cavalheiros fazem favor de levarem as Damas ao bufete!". E o Ti Faneca volta a por a concertina a jeito e lá começa a tocar, a tocar… e o pé a bater, a bater… e tudo volta ao mesmo, só os Cavalheiros é que não acharam graça à “lembradura” do Rafael Coxo. A maior parte nem consegue disfarçar. Alguns, se pudessem, largavam já a Dama e punham-se a mexer. Ele é Mestre nestas surpresas e, por isso, quem se quer agarrar à “febra” tem de saber, ou calcular, qual é a moda em que o Rafael Coxo manda as Damas ao bufete.

Para a maioria dos Cavalheiros, cinco tostões é dinheiro, e uma gasosa ou uma laranjada é o bastante para lhe levarem o que sobrou para o fim-de-semana, e nem sempre a Dama o merece. Mas regra é regra e não se pode ficar mal à frente do pessoal. O cigarro do Ti Faneca está a chegar ao fim, quase lhe queima os lábios que habituados já estão destas queimadelas, e é o tempo para a moda chegar ao fim. O cigarro é como se fosse uma ampulheta, mede o tempo da tocadela assim como o bater do pé mede o compasso da moda.


Os pares desfazem-se, os Cavalheiros regressam ao seu sítio do lado da porta e em frente ao balcão do bufete, por detrás dos dois bancos corridos que estão ali exactamente para marcar o terreno. As Damas vão para o assento ao lado da sua Mãe, ou de quem está encarregada de controlar com quem a Dama dança… sim, porque essa coisa de ir ao baile tem muito que se lhe diga. Os assentos das Damas e suas acompanhantes são os conhecidos bancos corridos de madeira, dispostos em volta do recinto de dança.

Os Cavalheiros que têm tostões de sobra bebem o seu copo, olham as Damas, ensaiam sinais conhecidos ou piscadelas de olho, e um mais afoito e a atirar para o marialva barato, grita: "Oh Ti Faneca toque uma devagarinho!", e o Ti Faneca, que destes pedidos está ele farto de ouvir, e também porque tinha tanto de malandreco como de cabelo em falta na cabeça, põe a mão em jeito de funil na orelha, e responde bem alto para o Cavalheiro atrevido: "O quê ?? um corridinho ?? É p’ra já!" E antes que o interlocutor consiga reagir, já se ouvem os primeiros acordes dum corridinho do Algarve, daqueles mesmo muito rápidos.

E o Ti Faneca com a sua concertina às costas, pedalando a sua bicicleta, corre, corre… estrada acima, corre, corre…estrada a baixo, Linhó, Albarraque, Manique de Cima e Manique de Baixo, Mem Martins, Casais de Mem Martins, Ranholas, Lourel, Várzea de Sintra, Ribeira de Sintra e… até onde o chamam para tocar uma moda devagarinho ou um corridinho do Algarve….

São ambos figuras relevantes da nossa Abrunheira. O Ti Faneca era um Artista e Bom Homem conhecido em todo o Concelho de Sintra, Mafra e Cascais e deve ter morrido nos finais da década de 60 princípio de 70.

O Ti Rafael meu tio, era o "animador de serviço". Grande entusiasta da vida associativa da nossa Terra. Era da sua responsabilidade a realização dos bailes, enterro do bacalhau no Carnaval, e tudo o que era diversão. Quando havia uma festa, um baile, lá estava o "Rafael Coxo". Morreu no princípio da década de 80. O «Coxo» do "Ti Rafael" era alcunha e usada com todo o carinho do mundo, porque felizmente o "Ti Rafael" não era deficiente motor.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 1 de março de 2011

URCA – O INSUCESSO DO CENTRO SOCIAL

No princípio, e estando as negociações com o proprietário da “quinta” a correr muito bem, todos pensávamos ser possível, com umas pequenas obras nas instalações já existentes ou fazendo de novo, pôr a funcionar um posto médico até final do ano de 1975. Seria um primeiro passo para a abertura duma extensão do Centro de Saúde de Sintra um pouco mais tarde.

Achávamos ser urgente o posto médico e até mais fácil de avançar do que um infantário e creche. Foram feitas várias diligências em conjunto com a Comissão de Moradores e Câmara Municipal de Sintra junto da direção do Centro de Saúde e Ministério da Saúde. Chegaram a vir cá elementos da Direção do Centro de Saúde e, a certa altura, tudo parecia bem encaminhado para a Abrunheira vir a ter uma extensão do Centro de Saúde, beneficiando do equipamento toda a zona sul da freguesia de São Pedro.

Pois bem, numa penada tudo andou para trás. A situação da propriedade ainda indefinida, o fato de não ser possível concretizar nenhuma aquisição por parte do Ministério da Saúde nem sequer formalizar um contrato de arrendamento das instalações a ocupar, veio a inviabilizar, pela raiz, qualquer hipótese de instalar tão importante melhoramento na Abrunheira. Os impedimentos alegados viriam a manter-se por muito tempo.

Foi uma grande machadada no projeto do Centro Social. A questão do posto médico aliada à dificuldade de andar para a frente com o infantário e creche enfraqueceu-nos as intenções. As malhas da burocracia cumpriam a sua missão, os mangas-de-alpaca recuperavam a sua influência e o seu poder e o nosso vigor revolucionário recuava para a estrita área de atuação da URCA, ou seja, recreio, desporto e cultura.

Para a época, era muito importante que o projeto do Centro Social tivesse vingado. Essa realidade teria, com certeza, contribuído para uma melhoria significativa da qualidade de vida dos abrunhenses ao longo destes trinta e cinco anos. Se assim tivesse acontecido, hoje, estaríamos no limiar de outro patamar de desenvolvimento.

E assim foi, e é, até hoje! O comboio passou, não o apanhamos e agora não sabemos quando voltará a passar.

Silvestre Félix

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (2ª PARTE)

As vacas no seu remanso pastam ou remoem, sim… remoem, estes animais são “ruminantes” têm um sistema digestivo diferente da maioria dos outros mamíferos, e, o remoer, é mastigar depois do alimento ser engolido, ou seja, vai a um compartimento do sistema digestivo e volta para cima outra vez, e aí, é mastigado ou, como popularmente se diz, remoído.

Bom… mas o que eu queria mesmo dizer é que, outra maneira de passar o período do pastoreio, demorando muito tempo contado em horas e às vezes dias, era tentar apanhar grilos e cigarras. Localizada a toca, pela chinfrineira do cantante, apanhava-se um “fenacho” (caule de feno seco) e enfiava-se pela toca tentando tocar no grilo ou cigarra, e eles, se isso acontecesse, rapidamente saiam da toca mesmo sabendo que corriam os riscos todos. Mas alguns destes bichinhos, também os há mais espertos que outros, tinham as tocas curvas, e aí, a coisa complicava-se.., por falar em grilos e cigarras, há muito tempo que na Abrunheira não ouço esta sinfonia, as cigarras então, de dia ou de noite nunca se calavam.

E as rãs? No rio das Sesmarias ou nos charcos, também coaxavam sem parar. E os morcegos à noite? Os morcegos de volta dos postes da luz à noite caçando os insectos, e o Julinho… com a cana na direcção do céu muito estrelado assim como se fosse sempre Agosto. Ele ia ao sebo que o Pai (o Zé da Natália) tinha para o calçado, besuntava a cana do meio para cima e, depois, naquela “lengalenga” chata, mas que o Julinho não interrompia e não deixava que ninguém o perturbasse na missão de céu estrelado e olhar esbugalhado, como sendo a tarefa mais importante do mundo… “morcego, morcego, anda à cana que tem sebo”… e no serão de Agosto, repetia, repetia… e lá estava o Julinho sempre naquilo.

Aliás, o Julinho era amigo dos mistérios magnéticos e eléctricos naquele tempo de escola primária, de imaginação primária, de tudo primário. Fomos por algum tempo colegas de carteira, carteira daquelas peças únicas com tinteiros à frente cheios de tinta para sujarmos os dedos de tinta e pintarmos a bata daquela tinta que devia servir só para as canetas de tinta permanente que nos obrigavam a utilizar em tempo moderno já de esferográfica. Ali nos sentávamos todos os dias lado a lado. O Julinho, de quando em vez, quando eu estava mais distraído, juntava uma ponta da sua bata, aquelas batas aos quadradinhos azuis, juntava dizia eu, uma ponta da bata dele à minha, e, num sussurro altamente misterioso, dizia; “… está a fazer contato …, está a fazer contato”… no dia seguinte e no outro e no outro e ainda no outro, sempre o mesmo contato, até que eu deixei de me assustar com o contato. Voltando ao mamífero com asas, não tenho memória que alguma vez algum morcego tenha pousado na cana com sebo.

Quando ia com o gado para o monte, só tinha medo das cobras, e havia muitas, se calhar também acabaram. Quando sentia alguma cobra desviava-me o mais possível, embora reconheça que algumas eram bonitas, vi algumas muito bonitas, mas que fossem para bem longe. E os lagartos? Lagartões é que eram, daqueles verdes bem grandes. Quem não tinha, e com certeza ainda não tem medo nenhum das cobras e dos lagartos, é o meu primo Fernando. Lembro-me de ele levar um lagartão verde para a porta do baile na “Sociedade”. Estava muita gente como sempre acontecia quando havia baile, e ele trouxe o lagartão com um cordel como se fosse trela, e começaram a dar aguardente ao lagartão. Não me lembro do fim da história do lagarto bêbedo, mas não deve ter sido agradável.

Muitas vezes, a caminho do monte com as vacas, cruzava-me com o rebanho de ovelhas do meu Tio João. Naquela época lembro-me de cinco rebanhos grandes na Abrunheira, alguns com mais de cem animais. O do meu Tio João, do meu Tio António e do Chico, marido da Maria Augusta, o do Ti Veríssimo, o do “Espanhol” que viria a ser sogro do António “Calmeirão” e do Ti Rafael Miranda. Não gostava de me cruzar com as ovelhas porque as nossas vacas não se davam lá muito bem com elas e demoravam muito tempo até que passassem todas. Gostava e passava muito tempo a ver o meu Tio João a tratar delas no redil. Fosse a mungir, fosse a arranjar-lhes as unhas, a tratar dos borregos, etc., etc. Houve um ano em que a minha Mãe me deixou criar uma borreguinha que ficou órfã. É verdade, criamo-la em nossa casa a biberão, como se fosse um cão ou um gato. Andava atrás de mim para todo o lado e foi assim até ficar ovelha adulta, aí teve de regressar ao rebanho do meu Tio João. Chorei porque não queria, mas tinha de ser. A minha ovelha rapidamente se adaptou ao rebanho, e quando me via ou à minha Mãe, fazia um pequeno desvio abanando o pequeno rabo, ajeitava-se para lhe fazermos uma pequena festa, e voltava toda contente para o seu rebanho.

Na casa do olival, a maior festa era na época dos figos. O quintal da casa transforma-se em albergue infantil. Nesta altura de verão, servindo as figueiras de poleiro, e a pança a abarrotar de figos de capa-rota e beiços gretados do leite derramado, recuperávamos as oficinas de carrinhos de arame. O Zé Fernando, grande especialista, o Fernando Pedroso, o Zé Augusto, o Filomeno Caravaca, o Rui, quando a Mãe lhe dava soltura, também levava jeito. Eu fornecia os arames. Todos os dias, depois de minha mãe desatar os fardos de palha e feno para dar às vacas, lá estava eu atento a poupar-lhe o trabalho e, com a justificação habitual, lá levava os arames para a nossa oficina. Os carrinhos mais simples faziam-se num arame inteiro com um eixo aí de 30 centímetros e duas rodas (feitas com o arame) nas extremidades. Depois, uma cana, aí entre um metro e trinta e metro e cinquenta, conforme a altura do condutor, que uma das pontas encaixava no eixo explicado antes. Na outra ponta da cana, era aplicado um guiador feito também com arame e, de lado, também tinha a manete de mudanças. A condução era feita com a cana inclinada de forma que as rodas cumprissem a sua função.

E assim se percorriam os caminhos da Abrunheira, ora para baixo, ora para cima, e o tempo contado em horas… em dias… meses… em anos… e os Pais e as Mães e os “Putos da minha Terra”.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

URCA – E A SUA MATRIZ CULTURAL

Depois daquele período inicial da URCA, inigualável na forma e no contudo, com entusiasmo desmedido e vontade de querer fazer sempre mais, entendendo ser a forma de se recuperar o tempo perdido, houve duas fases muito marcantes na vida da coletividade e da Abrunheira: A apresentação da obra de Miguel Barbosa “O Palheiro” pelo GITU, com direção, encenação, cenografia e tudo o mais necessário de Gil Matias, estreado em 1979, e o encontro de Grupos Corais Alentejanos, salvo erro, em 1983, organizado pelo Grupo Coral Alentejano da URCA.

Para entender alguns acontecimentos é necessário contextualizá-los. Nos finais da década de 70 e princípios da de 80, cerca de 60% da população da Abrunheira era de origem alentejana. As razões sociológicas desta movimentação de famílias inteiras do interior para o litoral são do conhecimento geral, a que não é alheia a procura de melhores condições de vida com a industrialização da nossa região. Para laborar nas fábricas que iam aqui nascendo como cogumelos, era necessária mão-de-obra e, com a vinda dos primeiros no início da década de sessenta, logo outros foram chamados até que a Abrunheira mudou, até na maneira de falar. Dizia-se, na altura, que a Vila alentejana do Alvito se tinha transferido para a Abrunheira. Naturalmente que, dizendo isso se pecava pelo exagero, hoje, no início da segunda década do século XXI, há alturas do ano em que a Abrunheira se transfere para Alvito. Ou seja, estas duas Terras enriqueceram-se mutuamente.

Voltando ao Encontro de Grupos Corais Alentejanos de 1983, eu na altura não estava em Portugal e por isso não assisti a este, só aos posteriores, mas pelos relatos que li e ouvi e pelas fotos, foi, pela quantidade e qualidade de Grupos presentes, um acontecimento impar na história cultural da nossa Terra.

O êxito da apresentação de “O Palheiro” foi, acima de tudo, uma aposta arrojada do Gil Matias. A experiência dos componentes do GITU era “autodidata” e, mesmo assim, havia necessidade de recrutar muitos mais elementos. Cada reunião, cada ensaio, eram autênticas lições sobre a arte de representar. Gil Matias foi encenador, diretor, professor, Pai, irmão e sei lá mais o quê. Mais de metade do ano de 1978 foi necessário para dar corpo ao espectáculo. A peça é grande e a criação das personagens muito trabalhosa. Não foram poucas as vezes que tudo esteve quase a parar mas, com a nossa vontade e com a coragem e sabedoria do Gil Matias, lá conseguimos chegar ao dia do ensaio geral. Os nervos eram muitos na estreia. Sentados na plateia, estavam “olheiros” importantes e a população da Abrunheira em peso.

Fomos selecionados e concorremos ao Festival de Teatro Amador do Concelho de Sintra em 1979 e ficamos nos primeiros lugares. Lembro-me de termos representado a peça, para além das duas vezes na URCA, em várias locais dos Concelhos de Sintra, Cascais, Oeiras e Mafra. Esteve em cena todo o ano de 1979 e parte de 1980 e foi o grande sucesso do GITU. Era a consagração da motivação cultural da nossa coletividade e da nossa Terra. O Gil Matias continuou a colaborar com a URCA durante mais algum tempo, dando lugar depois a outras pessoas.

Miguel Barbosa, que recentemente doou ao Museu de História Natural de Sintra o seu espólio arqueológico recolhido ao longo de mais de quarenta anos de que fazem parte peças e fósseis únicos no mundo, é autor de uma vasta obra literária nas várias especialidades, a saber: Mais de trinta títulos de poesia editados em português, Italiano, Francês e Inglês; cinco novelas em Portugal e nos Estados Unidos; oito contos em português; mais de uma dezena de romances policiais com o pseudómino de Rusty Brown e três romances com o pseudómino de J. Penha Brava e participação em mais de cinquenta revistas literárias em Portugal, Brasil, Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra, etc., etc.. A sua biografia preenche muitas páginas com referências a todos os cantos do mundo e, bem lá no meio, referindo-se à peça “O Palheiro” e aos grupos que a representaram: «“O Palheiro” foi representado pelos… (vários grupos) e pelo GRUPO DE INTERVENÇÃO TEATRAL DA URCA (ABRUNHEIRA), SINTRA».

Também esta circunstância é motivo do nosso orgulho!

Silvestre Félix

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (1ª PARTE)

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto. Naquela época, quase todos os rapazes como eu, contados em tempo de idade nos 7,8,9 ou 10 anos, tinham algumas obrigações domésticas que passavam, invariavelmente, pelos cuidados ou acompanhamento dos animais da casa. Não proso de cães e gatos que de estimação ou companhia já o eram há 50 contados em anos de tempo, mas, das vacas, ovelhas ou cabras, que de estimação também seriam mas de serventia essencial no sustento da barriga e no mealheiro acolchoado. Na mesma onda e garantia de subsistência, era carinhosamente passado pela engorda o porco engraçado e inteligente que, ao engano, lá caminhava para o cadafalso traiçoeiro e tornado no centro das atenções pelos seus carrascos, antes, alimentadores. As coelheiras e capoeiras sempre abarrotadas completavam a galeria zoológica de grande parte das casas da nossa Terra.

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto e carinho pelos animais que a minha Mãe criava. Esta Abrunheira, Terra de abrunhos e Abrunhenses, abraçada pelo rio das Sesmarias, era, até há 50 anos, zona agrícola como toda esta nossa região de Sintra e Saloia.
Por esta altura começaram a aparecer as primeiras fábricas. Aqui mesmo na Abrunheira, a SINCAL. Os edifícios ainda lá estão como eram, em frente à rotunda da bomba de gasolina, embora de uso e marca diferente. Muito perto, junto à antiga estrada Lisboa/Sintra do lado de Mem Martins, a Resiquímica e logo depois a Adreta Plásticos. Ambas ainda de pé e empregando muitos moradores da Abrunheira ao longo de todos estes anos até hoje. Logo rápido se seguiu outra… outra e mais outra e, nunca mais parou até meados da primeira década do XXI. Agora, nestes tempos de aperto e de crescimento do número de furos no cinto, resta-nos os templos do consumo – Retail Park e futuro Forum Sintra.

Voltando ao antes da nossa revolução industrial, a Abrunheira era 100% agrícola. Percorríamos a única rua, que é hoje a MFA, e tínhamos um autêntico tapete de saudável bosta de vaca e caganitas de ovelha, que, aumentava de altura, junto ao bebedouro do chafariz e do Stº António. À volta da Abrunheira víamos todas as terras cultivadas. Da janela da minha casa, na altura, ou da varanda da casa do meu Avô, via, em direcção à Colónia (EPS), à direita a quinta do Anjinho os “Barros” e Ranholas, à esquerda o Linhó e ainda mais à esquerda, até ao Chico da Beloura. As searas dançavam ao sabor do vento, e com tonalidades diferentes, porque se no "Serrado da Fonte" se semeou cevada, na "Mulata" se semeou aveia e nas "Ferreiras" trigo, ao longe os tons são ligeiramente diferentes. Os "Celões", de tão grande que era, (parte considerável do que hoje é a Qtª da Beloura) havia anos que se dividia em, uma parte de trigo, outra de cevada e outra de aveia. E a debulha ?? Quinze dias no "Cerrado da Fonte" aquela máquina enorme, com rodas enormes, com uma correia enorme, que não se cansava de debulhar grão e enfardar a palha. Quinze dias para o meu Avô de quem herdei o nome, e a máquina sempre, sempre a trabalhar, sempre a fazer barulho muito barulho e os homens sempre a trabalhar e as mulheres sempre a trabalhar, sempre, sempre.... sacos de trigo, cevada, aveia, fardos de palha, muitos, muitos, depois, de repente, fica só o silêncio... e os homens trabalham e as mulheres trabalham, sempre, sempre....
Todas estas parcelas eram percorridas depois das colheitas e debulhas pelo gado que acabava com a esteva e o restolho até virem as primeiras chuvas de Setembro. Muitas vezes eu fiz parte dessa caminhada com a "Briosa", a "Malhada" a "Bonita", a "Carocha", a “Estrela”, a ...., nomes que a minha Mãe dava às suas vacas mães e depois às filhas e depois netas... sempre, sempre pelos anos fora, e eu, que lhe dava jeito porque tinha gosto, repetia os nomes e os carinhos e festas como a minha Mãe fazia. Levar as vacas ao monte…, levar o gado ao monte, era assim que se dizia e eu levava e gostava e ficava o tempo que fosse preciso, até a sombra do pauzinho espetado na terra atingir o risco que eu de manhã tinha feito na direcção da Quinta do Anjinho, ou, se fosse à tarde, na direcção de casa. Era o primitivo relógio de sol que eu sabia regular e marcar conforme o sítio onde estivesse. Algumas vezes as minhas vacas também sabiam contar o tempo, e, quando isso acontecia, mais ou menos no tempo do pauzinho espetado no chão, encaminhavam-se para o sítio de saída, na direção de casa.
Como eu, havia outros rapazes que levavam o gado ao monte. O Marinho, uma vez, adormeceu com as suas ovelhas e já era de noite e toda a gente, de lanterna na mão, à procura do Marinho. A Abrunheira mobilizou-se inteira buscando o Marinho e lá estava ele são e salvo. Mas só adormeceu, não aconteceu mais nada.
Enquanto o gado pastava, e andava, e descansava e voltava a pastar outra vez, eu tinha as minhas brincadeiras e não dormia. Brincava (construía) aos fornos de cal, esta brincadeira podia demorar vários dias, porque era preciso sustentar a abóbada com pedras bem a jeito para a função. Daí ser empreitada iniciada quando sabia que ia alguns dias para aquele sítio. Por vezes era necessário levar pedras pelo caminho, e chegado lá, continuar a paciência. Sim! Era uma brincadeira de paciência. Quem sabia melhor fazer (brincar) fornos de cal era o Zé Fernando. Ele às vezes ia com o Pai, o Ti Abílio, ao forno onde estava a trabalhar e o Pai dizia-lhe tudo, explicava em pormenor os segredos de construção do forno de cal. Lembro-me que o Ti Abílio tinha muito jeito para a rapaziada nova. Às vezes eu ia brincar com o Zé Fernando e gostava muito de ouvir as histórias do Ti Abílio. Há muitos anos que não falo... falar, conversar mesmo, com o Zé Fernando, e quando damos por nós, já passou muita idade, sim, idade que é aquele tempo contado em anos de vida vivida. Naqueles fornos de cal, para o Ti Abílio, o tempo eram meses e meses contados em molhos de lenha para a fornalha que do lume infernal se queria que derretesse a pedra que havia de ser cal para construir e caiar de branco as paredes das casas dos muros dos prédios e para as valas dos defuntos sem campa sua. “Não vás filho, o forno está muito quente e é perigoso, não te chegues perto!” O cuidado de minha Mãe. Ela tinha medo dos fornos de cal. Falava sempre de um desastre há muito tempo contado em anos e em sítio indefinido. Caiu e as chamas queimaram tudo à volta. Está bem Mãe, eu não vou para lá. Na ponta de cima dos “Celões”, os limites do horizonte pareciam não ter fim. Tudo admirava e tudo via lá de cima. A sombra do “pauzinho” não pára – anda devagar… devagar… no silêncio…

(Continua)

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix