Cágado Mediterrânico |
Aquele dia de quaresma, nascia com borriceira “molha-parvos”,
e molha os outros também, digo eu. Não se tinha ficado, a borriceira, pela
Serra. Desceu à Abrunheira, até ao lugar-de-baixo e mesmo ao “Caracol”.
Que o diga o Coutinho que era Bernardino que, ainda
“lusco-fusco”, esticou a cabeça pelo postigo da porta da cozinha, como sempre
fazia ao levantar-se, e logo sentiu o borriço na cara que, em boa hora,
substituiu a ida matinal à bacia de esmalte, para, com dois dedos da mão
direita, chapinhar na água gelada, diligentemente colocada pela Judite antes de
se deitar, e esfregar, devagarinho, os dois olhos que a terra lhe havia de
comer.
Na certa, seria mais um dia igual aos outros daquele mês,
fazendo jus ao ditado que muito se dizia e se ouvia: “Março, marçagão, de manhã inverno e à tarde, verão!”. Ou seja,
ele, o dia, acordava molhado, mas, a pouco-e-pouco, ia abrindo e, ainda antes
do almoço, estava limpo e solarengo.
A primeira quinzena de março anunciava a primavera e, já no
dia anterior, a Judite lhe tinha dito, ter visto andorinhas a esvoaçar pelo
lado do Peixoto, que é onde têm ninhos na varanda. O mesmo teria sido reparado
pelo patriarca “Simão”, de negro brilhante e lindo bico alaranjado, e pela sua companheira,
matriarca “Micas”, de negro menos brilhante quase castanho, e também bonito
bico, mas amarelo, que, ao contrário do que os dois fazem durante o outono e
inverno, desde há uns dias, já não passam a noite no cedro do muro, onde
apanham os primeiros raios do sol nascente.
Quando as andorinhas chegam, eles, os dois inseparáveis, costumam
passar mais tempo no cedro do lado do “zambujeiro” onde, durante duas ou três
semanas, trabalham que nem uns desalmados, reabilitando o ninho do ano anterior
nos “carrascóides” mais altos para, quando chegar a altura, ela lá pôr os
ovinhos cinzentos quase azuis, donde, uns tempos depois, sairão os filhotes
que, crescidos, aumentarão a família residente fixa de três casais ou, então,
novos melros ao mundo darão, para outras paragens. Os outros dois casais,
correspondem a duas fêmeas filhas do Simão e da Micas que, juntando os
trapinhos com dois outros machos de fora, regressaram ao acolhimento dos seus
pais e por aí têm feito a vida.
Tem dias que aparecem outros, mas, só vêm de visita.
Sabe o Caracol, que, de entre esses outros casais, vem com alguma frequência,
um também diferente. O macho, tem o bico com um tom alaranjado mais carregado,
quase vermelho e, a fêmea, do seu lado direito a seguir ao bico bem amarelo, trás
um conjunto de penas ou penugem, quase brancas. São inconfundíveis. Acha o
Caracol que eles também o conhecem bem e que, se o Simão e a Micas não
estivessem cá, eles ficariam por aí a fazer-lhe companhia.
De todas estas andanças, é sabedor o Caracol Velho que, em
virtude da constante presença a três, desde que por ali apareceram aquelas
lindas criaturas, os olhares e rotinas ocorrem como se fossem bons entendedores
da mesma espécie.
As dobradiças já andam um bocado ferrugentas e, as botas, já lhe
pesam muito, de maneira que, boa parte do dia, de cachimbada sempre ativa e
fumegante, senta-se no banco à entrada do alpendre, bem abrigado da aragem
corrente e com o sol a bater-lhe só nos pés e nas pernas, reparando e
apreciando tudo o que se passa com a “passarada”. Foi ele que batizou o casal
de melros que, adora. Na brincadeira disse à filha Judite e, ela, nunca mais
deixou de falar do Simão e da Micas, como se da casa fizessem parte.
Quando estão à vista, vão reagindo conforme ele se senta ou
se levanta, anda ou está parado, acende o cachimbo, levanta o sacho ou o poisa.
Todos os movimentos têm uma resposta. Mais interação têm os dois, mas o Simão
primeiro, quando o Caracol ou mesmo a Judite, metem pevides, cevada, milho ou
trigo num vaso de barro que está, para o efeito, encostado ao muro antes do
portão de baixo. Ele, o Simão, deixa passar um bocado para dar tempo a que se
afastem e esvoaça logo direto ao vaso. Ela, a Micas, também voa na mesma
direção, mas só vai ao vaso quando o Simão, sai. Raramente ficam os dois
juntos no vaso. Curiosamente, nenhum dos outros melros, que alguns serão filhos,
filhas ou netos do Simão e da Micas, vão ao vaso, mesmo que lá tenha alguma
coisa.
Eles, naquele dia logo cedo, ainda antes do Caracol aparecer,
observaram o Bernardino que não é Coutinho que, alheio a toda esta vivência,
depois de ter esfregado os olhos e emborcado as sopas de “cavalo-cansado” que a
Judite lhe preparou, saiu porta fora, coberto com o oleado para não se molhar e
rumou ao lugar de acima como era costume, para laborar mais um dia na abertura
da vala que havia de transportar a água para as casas dos abrunhenses. O Simão
e a Micas, como acontece quase todos os dias, miraram os passos pesados do
marido da Judite, até aos zambujeiros acima das “Pateiras”. Há uns meses que o
Coutinho que era Bernardino andava nisto e, o grande buraco, ainda estava agora
a sair do Largo do Chafariz e a chegar ao João de Leião. Muita terra e muita
pedra aqueles fortes braços removeram, desde que, de picareta ao alto, se
decidiu por este trabalho.
Perto do almoço, paredes-meias com o Rio-das-Sesmarias antes
de passar debaixo da ponte da Colónia, na horta, gozando os prazeres da água
quase corrente que, alcatruzes abaixo e acima à custa das rodadas que a
“Carocha” dava à volta do poço, o Manel, que naquela época era cágado, bem
sossegado na beira do tanque, esperançado em apanhar uns minutos de sol por
cima da borriceira da manhã, levantou devagarinho a cabeça, para olhar bem nos
vivos olhos dos melros mais bonitos que alguma vez tinha conhecido.
E as bonitas aves, ele e ela, beberam água no tanque e, o
Manel, que naquela época era cágado, observou, seguro e contente a presença
daqueles dois. Junto a ele, no tanque, vinha este casal de melros,
pintassilgos, rolas, pitinhas e até pardais de telhado. Ele gostava!
Quando o puto, “atirado” a hortelão lá ia, ele, simulava
mergulhar, mas, conhecendo-lhe a bondade da companhia, não o fazia e até se
deixava pegar e olhava nos olhos do puto que se ria a “bandeiras-despregadas”.
O Manel, que naquela época era cágado, gostava do puto e sabia
do Caracol e da sua filha Judite. Sabia, que lá, no fundo do lugar-de-baixo
onde eles moravam, a paz reinava no coração deles. Até o Coutinho que era
Bernardino, rude e bruto nos seus modos, era do bem. Outros eram do mal e o
cágado Manel, sabia.
Ele, o Cágado, que naquele tempo se chamava Manel, não via
televisão, não lia jornais nem revistas, não tinha internet e, por incrível que
pareça, nem Facebook, mas sabia tudo. A Abrunheira não tinha segredos para ele,
mas como? Sendo o Manel, naquela época, cágado, como poderia saber das
promessas não cumpridas e das mentiras constantemente metidas?
Oh inteligência! Então e o que iam fazer os melros, os
pintassilgos e a outra pardalada, todos os dias, à beira do tanque da horta?
Silvestre Brandão Félix
6 de março 2018
Foto: Cágado
Mediterrânico (Google)
(Escrito ficcionado.
Alguns nomes e locais reais, outros não)