Para que ninguém colha a ideia de que na década de 70 do século ido, na Abrunheira, a juventude seguia à risca todos os padrões da geração mais velha no que respeita a bom comportamento, tenho de vir aqui dizer a verdade, deixando muitas dicas para que cada um possa fazer o seu juízo.
Havia os que se portavam bem, os que se portavam mal e os assim-assim. Também havia, admito, quem não se enquadrasse em nenhuma destas situações e tudo fizesse para passar despercebido.
Eram tempos de preocupação de trabalho, de tropa e do que fazer com uma guerra no horizonte. Tempos também de namorar a sério e a brincar e de saber como elas iam convencer os Pais na saída dominical para, pelo menos, uma ida ao Cabaço.
Eram tempos de organizar bailaricos em alguma garagem ou na adega do Pai do Zé Carmo Silva e discar vinil quantas vezes necessário fosse para se sentir a proximidade do corpo do par e, com intervalos de semanas, voltar a tocar-lhe, pelo menos, nas mãos. Naquele início da década, a “química” já tinha sido descoberta, embora dando os primeiros passos na investigação. As paixões iam e vinham, passavam ao lado e de lado. Tempos também de petiscos e “pielas” de “caixão à cova”, quase sempre disfarçadas com onda bem humorada e risada incontida à sobremesa.
Eram tempos na Lagoa de Albufeira com longas noitadas de cantoria, petisco bem regado e depois com a aprendida guitarrada do Zé Barros. Nova estação em tempos de namoradas novas, água tépida, boa temperatura e muita areia agarrada ao pêlo.
Eram tempos de muitas horas levadas em torneios de matraquilhos e mesas infindáveis de king. De matraquilhos, na Abrunheira, havia a primeira e a segunda divisão. O terreno da primeira divisão era no café do Manel (café Brasil na Av. Dos Combatentes). Aí se defrontavam os melhores jogadores: Pézinhos, Fernando Martinho, Baptista, Chico Cruz, António e Zé Nascimento, José Duarte, Durães e muitos outros. A segunda divisão jogava no café do Cabaço. Os jogadores eram mais novos e, a grande ambição, era um dia poderem emparceirar ou defrontar os da primeira divisão. Eu fazia parte desse grupo com o Rui Simplício, Zé Marques, Fernando Marques, Zé Carmo Silva, Fernando Matos, Zé Alentejano, Pele e Osso, Mário Martinho, Zé Fernando, Vicente, Fernando Pedroso, Filomeno Caravaca e outros que, por causa deste meu litígio permanente com a lembradura de nomes, não me deixa acrescentar mais.
Também eram tempos de cartas. Mesmo no Cabaço jogávamos ao King. As noitadas eram muitas vezes passadas na adega do Zé e nunca tínhamos limite de tempo para terminar.
Eram tempos de coisas sérias e nunca ajuntamentos suspeitos antes de 74. Eram também tempos de medo. Eles, os da pide, andavam sempre por aí. Aprendíamos cedo a mudar de conversa quando alguém com perfil de “bufo” se chegava perto. Depois dos da pide terem arreado as calças, os espíritos se abriram, começamos a ir mais ao cinema e até podemos finalmente ver “O último tango em Paris” com o Marlon Brando e a Scheneider, o “Garganta Funda” e todos os que apareciam da série “Emmanuel”. Na mesma onda, os bailaricos do Zé começaram a ser mais frequentes, cada vez havia mais vinil e os pares já se tocavam mais. Os tempos eram de ventos fortes com um novo ar e, todos nós tomamos bebedeiras desse novo ar e de tudo o que nos punham à frente – às vezes até demais.
Eram tempos para pôr em prática as ideias boas. Antes o JURA no Algueirão e depois a URCA aqui na Abrunheira passaram a dominar as vidas da nossa juventude que continuava a namorar, a apaixonar-se, a ir para a Lagoa, a jogar aos matraquilhos, a jogar ao king, à lerpa, ao futebol e a portar-se bem, mal ou assim-assim!
Silvestre Félix