sexta-feira, 21 de junho de 2019

SOLTE-SE A FESTA. AI! AI! SÃO PEDRO!


SOLTE-SE A FESTA. AI! AI! SÃO PEDRO!
Solte-se a festa, que já se faz tarde!

Que ribombem os bombos, os tambores, as pandeiretas, que toquem as trombetas, os pífaros, as flautas, que discursem os “inteligentes”, os distintos convidados e os comprometidos, mas surpreendentes, feiticeiros!

A banda vem aí e o “povinho”, no seu canto, a vê-la passar!

O habitual cortejo das celebridades não se detém, nem um bocadinho, nos recados e mensagens que enviados são, através de desenvolvida telepatia.

As consciências abanam, mas não caiem!

O São Pedro, que é de Penaferrim, bem guardado tem o “ferrolho” para que não lhe entrem pelo “céu” adentro sem mais nem menos. Ele, que deste lado da Serra sempre nos protegeu, fazendo jus ao facto de ser “Apóstolo Primeiro” e “Maior”, está atento e pronto para resistir a todas as tentativas mal-intencionadas.

(…) Sempre gostávamos de espreitar a montra da “Bramonte” onde se compravam as modernices. Podia ser um par de sapatos, umas calças, um fogão a lenha ou um fogareiro a petróleo. Um pouco de tudo se encontrava na “Bramonte” e os irmãos, estavam sempre prontos para fazer mais uma venda, mas o que íamos mesmo fazer a São Pedro, estava do outro lado, nas traseiras. O mercado que, naquele dia 29 de junho de há quase sessenta de tempo contado em anos, era a “Feira-anual-de-São Pedro”.

Desde o Ramalhão, junto ao campo do 1º Dezembro e contornando a campa dos “Dois Irmãos” que, ao tempo, ali estava, daquele lado, já era difícil andar sem encontrões e desvios até ao alcatrão. Tal era o circular de gente, naqueles domingos de mercado antes das dez da manhã, altura do dia que a minha mãe escolhia.

Saíamos da Abrunheira antes das nove, metíamos por esses caminhos acima que, no caso, era o caminho até Ranholas, sem cortes, porque ainda não havia autoestrada nem se adivinhava tal empecilho, subíamos as escadinhas da sociedade e, depois, passando a Quinta do Ramalhete sempre juntinho à parede até ao Ramalhão.

O Mercado de São Pedro ou, neste caso, a Feira-anual, era um mundo. Havia de tudo. Junto à parede da Quinta de S. Pedro, era uma correnteza de “barracas” de fatos clássicos e tecidos para os fazer, por medida. No miolo, roupa de toda a maneira e feitio. O calçado, muitas bancas junto aos restaurantes. Na ponta da subida para Santa Eufémia, o sítio do gado. Havia: Vacas, vitelas e vitelos, ovelhas, borregos, cabras, bodes e cabritos, burros e burras e até cavalos. Antes também havia a “criação”. Todo o tipo de galinhas, frangos, franganotes e pintos. Toda a qualidade de alfaias agrícolas e todo o tipo de bugigangas se podia encontrar no mercado. No lado de cima, tudo o que se podia comer. Leitão de Negrais, pão saloio e de Mafra, fruta da época, réstias de cebola, batatas e todos os hortícolas, bolos secos, molhados e as famosas queijadas (…)

Durante as minhas “lides” autárquicas, ainda na década de setenta/oitenta, pela época dum único canal de televisão a preto e branco, dizia-se que a Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim — que deixou de ser e eu, muitos outros e até alguns arrependidos, desejamos que volte a ser — era “rica” porque tinha o mercado de São Pedro. Na verdade, para as necessidades daquele tempo, na Junta não havia problemas de dinheiro, e, a situação desafogada, devia-se exatamente à receita do mercado quinzenal.

Neste dia, abrem os festejos de São Pedro no “Largo da Feira” (D. Fernando II), muito diferentes dos de há sessenta, cinquenta ou quarenta anos. Que, pelo menos os “Festejos” se mantenham, porque o Mercado quinzenal está “moribundo”. Precisam-se “mandatários” corajosos para darem a volta ao “texto”! Não me digam que está, o mercado, fora de moda. É que em freguesias vizinhas estão prósperos e em crescimento.  

Silvestre Brandão Félix
21 junho de 2019
Foto: Chafariz de São Pedro de Penaferrim (Google)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

AS HORAS DO LUÍS, RELÓGIOS E OS NOSSOS BOMBEIROS


Com as tripas à mostra estava, acabadinho de ser esventrado, pelo habilidoso jeito ao canivete, dado pelo Luís, para que assim pudesse desfrutar das miudezas, com atraso, pela velhice, mas todas a mexer, não fosse o aparelho, um Tissot, com quase quarenta anos.

Explicava-me o Luís, possuído duma tal fascinação que, até a mim, puto de nove ou dez anos — sem nada perceber de rodas de balanço, cordas assim e assado, dentadas d’aqui, dentadas d’acolá — me entusiasmava para ver como é que a coisa chegava ao fim, quer dizer; o arranjo! Sim! Porque se estava na mão do Luís, era sinal que estava avariado. Pois, porque aquela máquina espetacular, tinha chegado ao Luís, porque se estava a atrasar meia-hora por dia e o dono até já queria substitui-lo por um mais moderno, de pulso. O Luís tratou de o convencer que não, que o velhinho, ainda ia durar muitos anos no bolso dele, bastava que se limpasse e ajustasse o que havia para ajustar. Ele se encarregava de o fazer!

Eu gostava de o ver destripar os relógios e a arranjá-los com aquelas ferramentas muito pequeninas. Naquele dia, explicou-me tudo à medida que ia mexendo no velho Tissot de bolso. O que é certo, é que no dia seguinte estava certinho. Foi todo limpinho e uma “dentada”, que ele me tinha mostrado, foi ajustada na justa e necessária medida.

Pelas duas janelas se via, ao longe, o cimo da torre da Pena e a Cruz Alta. Mais na encosta, Santa Eufémia que, de lá, com certeza também nos observava e, se fosse caso disso, nos corrigia o caminho porque, se ela falasse, muita história contaria. Algumas, consumadas a todos os primeiros dias de maio, olharia bem para os lados antes de o fazer, porque a bufaria por todo o lado andava escutando.

Mais perto, quase a nossos pés, o Rio das Sesmarias e a saudosa horta. É como se estivesse a olhar agora; o Rio tinha água que corria… corria… na horta os pêssegos rosa estavam quase maduros.

Era dali, das janelas ou da varanda, que o Silvestre Velho, antes, via o mesmo e as searas até à beira da Colónia, desde o Cerrado da Fonte até aos Celões.    

O Luís, para além de conhecer por dentro e por fora, as máquinas que dão horas, também sabia e sabe tudo sobre os bombeiros do concelho, principalmente dos de Sintra e, ainda duma forma muito especial, dos de São Pedro, não fosse de lá, que veio.

Quando me apanhava a jeito, tinha sempre novidades dos bombeiros. Que eu saiba, nunca foi bombeiro, mas sabia (e ainda saberá) a história das associações e, de São Pedro, até dos fundadores; do Tibúrcio e do Alfredo Esteves que não era Esteves.

Neste tempo, em que tudo pode girar à volta dum telemóvel na mão, mas mesmo tudo — podemos ter a nossa vida completa numa coisa destas que, por acaso, também serve de telefone — como é que ainda temos capacidade para recordar (os mais velhos), como era importante sentirmos um relógio preso por uma corrente à casa de um botão do colete que, por sua vez, se colocava no bolsinho, quase sempre do lado esquerdo?

São as “passadas” do tempo ou,

   Faz bem que tenhamos sempre presente a importância relativa das nossas coisas ou, daquelas, de que nos servimos. Para o Luís, naquela altura, era muito importante saber dos relógios e de tudo o que se passava nos bombeiros da nossa terra. É claro que as prioridades dele hoje são outras, mas, ainda assim, continuará a avaliar, quanto importante era a “bomba-braçal” que o Tibúrcio e o Alfredo Esteves (que não era Esteves) conseguiram adquirir para o Corpo de Bombeiros de São Pedro, naqueles idos do princípio do século XX, ainda em regime monárquico da Casa de Bragança —

são as nossas “passadas” pelo tempo?

Silvestre Brandão Félix
12 dezembro de 2018
Foto: Relógio de Sol (Google)

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

DE OLHOS FECHADOS


O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde estavam.

À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”, sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico.  Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.

E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.

O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido, certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e, fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.

Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.

E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.

Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à “Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …

Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”, para chegar à hora do chefe?

O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.

Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CHUVA, RIO DAS SESMARIAS E AS BRUXAS


— Finalmente, sinto que estou a dar uso à minha capacidade de corrente e, a aplicar as minhas competências nos limites das margens. Como me sinto “cheio” com esta abençoada água. Que chova! Que chova!

Desabafa assim o nosso amigo Rio-das-Sesmarias que, ansioso andava, pela pouca chuva caída até este último dia de outubro.

Recuando meio século, ou mais, durante este dia, já por lá teriam passado alguns dos seus amigos e parceiros.

O Artista-Sapateiro seria o primeiro porque, perna mais comprida, assente fora da enxerga e aí, que lá vai também a mais curta, depois as duas e rapidamente direitinhas à margem nas traseiras da casa, para aliviar o resultado do trabalho noturno, da máquina digestiva. Era uma visita diária obrigatória, embora “malcheirosa”, mas ainda assim, necessária ao começo de mais um dia, a maior parte do tempo sentado no tripé rústico que, num dia já distante, contado em, para mais de 30 anos, ele tinha resolvido construir. Foi há tanto tempo que a “maria-faladeira”, parceira de casa e de pouco mais, ainda não era velha.

 Já de dia, também passaria por ele, o nosso amigo e conhecido Coutinho que era Bernardino. A primeira vez ainda iria leve, pois, as sopas de cavalo-cansado que a Caracoleta lhe facultou ao levanto, não lhe pesavam assim tanto. Ao contrário do Caga-à-Chuva, que empurrado era, pela desesperada vontade de “obrar”, o Cientista-da-Pedra ia ter com os seus companheiros de vida e de ciência. Era uma motivação diferente. É claro que, com o correr do dia, a leveza da manhã, ia-se transformando no habitual “so-li-dó”, de idas à menina Emília, ao Faial ou Ramos, emborcar “ciganas” ou “charretes”, conforme a hora.

O Rio das Sesmarias tinha sempre água corrente com fartura, mas agora, o sítio do Rio está lá, mas água é que… nem por isso. Ontem e hoje correu alguma, a medo, mas se não chover mais, amanhã praticamente já não haverá água.

Será bruxedo?

Silvestre Brandão Félix
31 outubro de 2018
Gravura: Google

domingo, 21 de outubro de 2018

O FADO HILÁRIO, A LÉLÉ E O ZEQUINHA E O PEIXE FRESQUINHO


Na imaginação de puto, e porque naquele rádio a pilhas, assim, todo bege, que ficava sempre, todo “aperaltadinho”, em cima do armário da loiça na cozinha lá de casa, muitas vezes tocava fado e no meio deles, havia o do Hilário, ou seja, “O Fado Hilário”. Por isso, achava que o Ti Hilário da Natália, havia de saber cantar o fado.

Desse rádio a pilhas, ouvia-se, no Rádio Clube Português, estação que o meu pai sintonizava por causa dum programa rural que começava às seis da manhã, alguns clássicos como: O programa da manhã do Fialho Gouveia onde passava muita música portuguesa, os parodiantes de Lisboa à hora do almoço e, logo a seguir, o teatro radiofónico que podemos comparar às telenovelas de hoje porque prendiam milhares de pessoas ao rádio aquela hora e, ao final do dia, do Igrejas Caeiro, o Zequinha e a Lélé, nos Companheiros da Alegria e, também, o Comboio das seis e meia.  

Mas não! A música do Ti Hilário, era outra! Copinhos de dois, tinto, ao balcão do Ti Álvaro, que eu bem via quando por lá lia o “Século”, treinando para as leituras mais complicadas dos livros escolares.

Na altura, ainda não havia o “Plano Nacional de Leitura” nem nada que se parecesse e as alternativas eram, o jornal do Ti Álvaro e os de “quadradinhos” do Major Alvega, e outros heróis da aviação da primeira e segunda guerra mundial, mas também dos cowboys e índios, que o meu irmão comprava.
Então, é verdade, eu tinha a mania que o Ti Hilário era fadista. Assim à distância, nem entendo bem porquê, se calhar só porque se chamava Hilário. Será que o vi alguma vez cantarolar depois dalguma sequência avantajada de copinhos de “dois-tinto”? Não sei, mas assobiar, isso ouvi!
Não me lembro, que o nome de outra mulher fosse dito e ouvido tanta vez no Largo do Chafariz, como o da Ti Natália. Quando se queria falar do Ti Hilário, era o Hilário da Natália, o filho Zé, era o Zé da Natália, o outro filho João, João da Natália. Era uma mulher com um ascendente sobre os homens lá de casa, como não havia igual. Era de tal maneira que, até eu, que a ouvia gritar com eles, tinha um certo medo dela. Coitada! Não era má pessoa, mas tinha que se impor, senão, estava desgraçada.

O Ti Hilário, era aquela figura. De fato-macaco ganga-azul, pintalgado de estuque, cimento, cal ou outros produtos usados no último biscate. Sempre educado, pouco falador e muito fumador, mas realmente não cantava o fado, só assobiava.

Sentados no degrau do que naquela época era o armazém do Ti Álvaro, eu e o Zé Augusto ou o Rui, tínhamos uma visão global do Largo do Chafariz. Víamos quem entrava na mercearia e na taberna como o Ti Hilário, quem passava para, ou do lado do “Frouxo” ou da menina Emília e, acima de tudo, quem ia ao Chafariz buscar água ou dar água aos animais.

Era, como se fosse uma plateia e, daí, assistíssemos ao filme do dia-a-dia dos abrunhenses. A voz ou as gargalhadas do Tavinho com as travessuras do carneiro “Baltazar”, o bater do sacho do Ti Veríssimo no chão e o andar muito rápido da Ti “Estrudinhas”, o “quá” esganiçado dos ganços e o balir das ovelhas do meu Tio António. Também dava para observar a lida do Ti João de Leião. Ora saía com o grande tratar vermelho ou com o seu Opel que acho era Kadette. Ainda, até à curva, se descortinava o Ti João Peixeiro a chegar de motorizada com o atrelado vazio, ou com alguma sobra, isso é que nós não conseguíamos ver. Duma maneira ou doutra, à noite, lá ia ele até à lota de Cascais para trazer produto fresquinho e, depois, dividir com a Ti Aurélia, para, literalmente à porta de cada um dos abrunhenses, “vender-o-seu-peixe”.

Lembraduras que o vento ainda não levou…

Silvestre Brandão Félix
21 outubro de 2018
Foto: Chafariz da Abrunheira (de: Zé Dionísio)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

domingo, 14 de outubro de 2018

BAILES, AJUDA DO SARAIVA DA SERRAÇÃO, RECENSEAMENTO E CONSTITUINTES


Por entre; serras e outras ferramentas elétricas, grandes tábuas em madeira bruta ao alto, outras tábuas já cortadas, mais ripas e ripinhas e muita serradura pelo chão, nós dançamos, dançamos até estarmos cansados.

O Saraiva da serração, por mais duma vez, deu-nos essa “abébia”. Não era para todos, só ele. Naquela época, era especial e gostava de colaborar com a juventude. Muitas vezes recorremos à sua boa vontade e generosidade.

Pelo menos, por duas vezes, disponibilizou o espaço de trabalho da serração, para fazermos lá baile. Imagine-se à sexta feira; ele e os empregados a arrumarem tudo para, no sábado seguinte, chegar a malta nova e montar o bailarico. Os Zés encarregavam-se da “playlist” em grandes discos de vinil e depois, cada um à sua vez, para poderem dançar todos, “empapelavam-se” de DJ’s.

Todos os jovens disponíveis da Abrunheira e não só — lembro-me de um ou outro rapaz e duas ou três raparigas, de fora. Os nomes é que… ficaram no tempo — estavam lá e os bailes foram um sucesso. Se tivesse havido oportunidade para isso, o Ti Saraiva tinha sido levado em ombros e saudado pelos jovens e adultos abrunhenses ou abrunheirenses.

Por outras duas vezes, ou mais, disponibilizou-nos uma outra dependência com entrada pela que viria a ser, Rua Ferreira de Castro e onde, mais tarde, salvo-erro, serviu para “abancar” o primeiro recenseamento provisório depois do 25 de abril de 1974 e, depois, para “Assembleia Eleitoral” das primeiras eleições livres, as constituintes, no dia 25 de abril de 1975. Mas, dizia eu, que por algumas vezes nos emprestou esse espaço para fazermos pequenos espetáculos de teatro que, na prática, foi o “embrião” do que, algum tempo depois, já na URCA, viria a ser o GITU. Os jovens da Abrunheira, neste tempo, foram, culturalmente, muito ativos na Abrunheira e fora.

Não foi só, mas foi grande a contribuição do Saraiva da serração para que os abrunhenses dessa época — entre 1972 e 1976 — tivessem um envolvimento e empenhamento cultural, como nunca tinha acontecido antes, nem, com a mesma intensidade, depois.

O intervalo dos anos que mencionei (4 anos) foram, do ponto de vista cultural e político, na Abrunheira, ricos e, ao mesmo tempo, explosivos. Até abril de 1974, a necessidade de descobrir, aprender e, por consequência, de contestar, numa movimentação que tinha que ter em conta o regime de ditadura existente.

Quarenta e quatro anos depois, em que a liberdade de expressão e de associação, é tão natural como o ar que se respira, não é fácil perceber as circunstâncias em nos movíamos.

Qualquer manifestação que pusesse em causa o estabelecido pelo regime, mesmo culturalmente falando, era proibida se detetada com antecedência, ou reprimida se só descoberta na hora, com intervenção da polícia política do regime, a PIDE que, por mais pequena que fosse a suspeita, poderia transformar-se em dias de detenção com interrogatórios sucessivos e, numa grande parte das vezes, levado a sessões de tortura. Principalmente se estava em causa a “tropa” ou a Guerra Colonial que, na altura, simplesmente se ignorava o termo “guerra” e, muito menos, “colonial”.

A este propósito, lembro-me, por exemplo, de ter comprado uma coleção de livros filosóficos sobre a “história das ideologias”. O vendedor, a quem, quando tinha orçamento, ia comprando um ou outro livro, avisou-me que aqueles, os das ideologias, eram clandestinos, ou seja; em tempos tinham sido recolhidos pela PIDE, portanto, se andasse com eles publicamente, devia forrá-los, de forma a não se ver o que era. Noutras ocasiões, o livreiro Olímpio, tornou a dar-me o mesmo recado.

Até abril de 1974, os rapazes da Abrunheira, como eu, debatiam-se com a certeza de ida para uma guerra que não queriam, fosse em África ou noutro sítio qualquer e, disso, conversavam às escondidas na maior parte das vezes, durante a noite, para que os riscos de sermos vistos por algum “bufo”, fossem menores.

O 25 de abril chegou nesta fase da nossa vida (eu tinha 19 anos) e, para além de tudo o que já se disse e passou à história, mal ou bem contada, para mim e para outros rapazes da Abrunheira, foi um alívio; já não éramos obrigados a ir para guerra nenhuma!  

O nosso trabalho cultural continuou graças à ajuda de muita gente. Neste escrito, apeteceu-me lembrar a generosidade do Saraiva da Serração naqueles anos da minha juventude.

Gosto de pensar que, independentemente da evolução natural da comunidade abrunhense ou abrunheirense, homens e mulheres com nome, deixaram o seu selo no que somos hoje, mesmo que alguns, ou algumas instituições, achem que só eles sabem o que o povo precisa e quer.

Silvestre Brandão Félix
14 outubro de 2018
Gravura: Google