terça-feira, 27 de março de 2012

O CARNEIRO BALTAZAR!


Baltazar se chamava, o macho ovino com grandes cornaduras reviradas em caracol nas laterais cranianas que, considerando a lógica linguística e regra gramatical que atribui o género do nome, terminando com a vogal a ou o, e por isso devia ser “ovelho” (masculino de ovelha), mas que, talvez, para realçar a valentia do animal, se conhece por “carneiro”. Este, era constantemente desafiado a investir para quem à frente lhe aparecesse. A designação, aparentemente derivada de “carne”, também se escolheu para signo do Zodíaco e para identificar as pequenas ondas espumosas no alto mar. Também se diz “carneirada” para muitos carneiros juntos ou, aplicado à “raça” humana, de muitos obedientes seguidores de um líder ou de determinada ideia.

Vem esta conversa de “cornos”, “marradas” e “carneiradas”, a propósito (de muita coisa, o que não falta para aí são exemplos) do “carneiro” “marrão” do Tavinho. Antes que o meu irmão venha dizer que não era bem assim, “assado e aquel’outro”, previno já, que me apetece contar as investidas deste vigoroso macho ovino, à minha maneira, impreciso no calendário e com personagens que podem ou não ter a ver com a parte verdadeira da carneirada.
       
Baltazar bem “inteiro” vivia e, por isso, na maior parte dos dias logo pelo nascer o Sol à chegada do Tavinho para a tarefa de mungir as vacas e depois as ovelhas, posicionava-se bem no ângulo de visão do dono, maneava a cabeça bem armada como se estivesse a dizer que sim, berregava alto e arreganhava-lhe o lábio superior mostrando a dentadura ovina envolvida em saliva e espuma da remoedura, em sinal de desejo para montar as fêmeas do rebanho que de cio fossem portadoras. O Tavinho, sempre prevenido para quebrar os “desmandos” sexuais do carneiro, saca de um dos ganchos do penduricalho o avental feito da pele dum antepassado do Baltazar e, devagar, pela lateral traseira à esquerda e com a mão direita na cornadura do outro lado, aplica-lhe a correia da barriga ao lombo, bem justa ficando a pala pela frente da ferramenta reprodutora, impedindo-o de concretizar, em oportuna fugida ao rebanho, qualquer penetração estupradora, indesejada e fora de tempo.

O Tavinho, surdo aos avisos do pai Ti Veríssimo e aos conselhos da mãe Ti “Estrudinhas”, dobrava-se a rir quando o Baltazar investia no traseiro de algum distraído Abrunhense. Nos dias em que o macho ovino arreganhava a dentuça para o Tavinho, era “trigo limpo, farinha amparo”, havia marrada na certa. Os “habituês” já sabiam e nem perto do Chafariz passavam. Já não bastavam os ganços, quanto mais as marradas do carneiro. Ainda assim, muitos Abrunhenses tinham que passar mesmo pelo Largo do Chafariz; para ir ao Álvaro, ir buscar água ou levar o gado a beber ou, simplesmente, passar para o lado da Menina Emília. Ora bem, o Tavinho, com a marotice toda, tinha o pessoal bem marcado e, quando qualquer da lista passava perto, assobiava ao Baltazar e não era preciso mais nada; a vítima enfrentava e arriscava ou então tinha que se pôr ao fresco rapidamente.

O Baltazar portava-se como se cão fosse. Obedecia ao dono e guardava o seu território com as armas (cornos) que tinha. O Tavinho divertia-se com o comportamento do carneiro escondendo, claro está, a sua cumplicidade. A sua natureza bondosa, generosa e simpática, embora também divertida, levava a que os Abrunhenses pensassem que o Tavinho era tão “vítima” do carneiro como as que o Baltazar marrava.

Muita água o Chafariz deitou, muito cântaro e bilha lá se encheu, muito gado encheu o bandulho no tanque, muitas “ciganas”, “charretes” de dois e de três, tinto ou branco se beberam, muita água o “Rio das Sesmarias” correu debaixo da ponte da Colónia, muitas vezes os ganços do Ti Veríssimo levantaram voo, muitas notícias “visadas pela comissão nacional de censura” eu li no jornal do Ti Álvaro, muitos soldados p’ra Guerra Colonial em África foram forçados porque da Índia já tinham vindo, muitos contestatários presos políticos estiveram e torturados foram, muitas Luas pelo monte descansaram, muitas solas o Ti J’oquim Caga-Chuva cozeu, muito reboco o Ti Hilário da Natália chapou, muita pedra o Coutinho que era Bernardino, com ciência a trabalhou, muito corridinho o Ti Faneca tocou e muito cigarro fumou, muita gargalhada o Rafael Coxo deu, muito cachimbo o Ti Mendes construiu e gastou, muito cabaz de fruta o Pechincha vendeu e também muito deu, muita piela o Zé da Natália apanhou, muito morcego o “Julinho” tentou apanhar na ponta da cana ensebada, muitos episódios do “Último dos Moicanos” eu vi na “sociedade”, muita…muita coisa aconteceu nesta Abrunheira que, desde a história do Francisco Borrego que virou Sacadura e do Bernardino que passou a ser o Coutinho, também ficou a chamar-se Brasil… até que um dia…embora fosse verão mas as nuvens ameaçavam chuva, talvez fosse aviso para a tragédia que se preparava…nesse dia, ainda meio-dia não era quando, o Maratecaque do nome só se percebia …teca porque o homem tão depressa falava que engolia metade das palavras – saia do Ti Álvaro depois de ter molhado a goela aplicando à tarefa, o braço e a mão direita descansando o lado esquerdo com o cotovelo no balcão de mármore rosa, seco e asseado como era costume na “Tendinha”. O conteúdo do copo de três, soube-se depois, era tinto do melhor, extraído do barril aberto pelo Ti Álvaro ainda não eram oito da manhã deste dia cinzento, embora a verão estivesse obrigado pela força do calendário.

Habitualmente, aquela hora, já a Ti “Estrudinhas” lhe chegava o almoço mas, nesse dia…a tentação era forte e o Tavinho não podia perder a oportunidade de por a adrenalina a percorrer o corpo lãzudo do Baltazar. Na verdade, hoje não lhe tinha mostrado os dentes pela alvorada e, por isso, o Tavinho, também não tinha colocado o avental na barriga do animal ficando assim “o aparelho” completamente desprotegido e pronto a “atuar” no caso lhe passar à frente alguma fêmea “carregada” de cio. Então…o Tavinho, ignorando o mau presságio do cinzento em dia de verão avançado, mirando o “estrangeiro” – que só alguns dias depois soube chamar-se Marateca – saindo do Álvaro, encarou o Baltazar e, como sempre se divertia fazendo, assobiou dando sinal de ataque com toda a carga.

O carneiro Baltazar, completando rapidamente a charada de neurónios naquela cabeçorra cornuda, e utilizando o mesmo tempo para por a adrenalina “no ponto”, inicia a debandada em direção ao Marateca, aplicando no arranque, a máxima, de rapar duas vezes com os traseiros. Levanta a “armação”, e lá vai ele! O último cliente do Ti Álvaro, que estava a iniciar o avanço para o largo em direção ao Chafariz, apercebendo-se das intenções do Baltazar, estanca…e, sem se lembrar de mais nada, levanta os braços esticados à altura da cabeça com os dois dedos indicadores bem direitos, formando um arco como se de dois cornos de tratasse, e dá dois passos para o lado donde vinha o carneiro.

Se isto estivesse a acontecer em anos contados, cinquenta mais tarde, podíamos imaginar uma cena virtual. Quem vai marrar quem? Com certeza que a playstation resolveria o dilema. Provavelmente os cornos do Baltazar se transformariam noutra coisa qualquer e os braços e dedos do Marateca, num emissor de laser’s mortíferos e demolidores que nem a troika lhes resistiria. Se este frente-a-frente, que nem 21h30m do MCrespo fosse, na certa o nosso Largo do Chafariz, alcatifado a bosta de vaca e debruado a caganitas de ovelha, depressa virava “plateau” virtual com todas as cores a que tem direito. Se o acontecimento não estivesse a dar-se com o “botas” ainda a “cavalo” no poder, perseguindo e torturando todos os que se lhe opusessem, assim como o Marateca de caras com o Baltazar, seria um tempo virtual em que na Abrunheira até jardins com o nome de “forno” existiam. Aliás, nessa distante galáxia Abrunhense, muitos “fornos” haverão; A padaria que será “o forninho”, a rua do forno e, mais tarde, ao ritmo de santa Engrácia, o jardim do forno.

 Mas não, estávamos quase na época da pedra que, mesmo assim, era matéria viva e delicada para o Bernardino que não era Coutinho e sabia a “ciência da pedra”. Voltemos então à narrativa de meados do longínquo século XX…

Na altura em que os dois (Marateca e Baltazar) quase se tocavam de frente, já alguns Abrunhenses se aproximavam para assistir a mais uma marrada do carneiro do Tavinho. Pois é, só que desta vez, mesmo no meio do Largo do Chafariz, iriam ver a lógica transformar-se numa batata. Naqueles instantes, começou a instalar-se a dúvida em muitos Abrunhenses sobre quem venceria a contenda. O próprio Tavinho que, como sempre, estava impávido e sereno esperando o desfecho do costume, começou a sentir suores frios a escorrerem-lhe pelas costas abaixo, quando, a suposta vítima, entendeu enfrentar o seu obediente e esperto Baltazar

Foram momentos de alta tensão, eram audíveis as respirações dos contendores que sobressaíam do silêncio tumular nunca sentido no Largo do Chafariz. Foram segundos de tempo contado num êxtase geral, subindo a emoção dos presentes até às nuvens que, como já se disse no início do escrito, estavam cada vez mais negras, antecipando uma forte trovoada de verão que, porventura, Baltazar adivinhou.

Os dois, Marateca ou somente …teca e Baltazar, parados, frente a frente.

De repente, o inteiro macho ovino, maneia o focinho para cima e para baixo e, arreganhando a beiça, desata uma berregadela bem forte, dá meia-volta e, começando a verter todas as águas que a bexiga armazenava e botando muita quantidade de caganitas negras como as nuvens, raspa no chão com as traseiras e arranca numa correria desenfreada na direção do Tavinho que este, estonteado e apardalado com o que via, não se lembrou de que atrás de si estava um fardo de palha que, no segundo seguinte, lhe servia de enxerga. Na horizontal, quando deu conta de si, Tavinho sentiu as patas dianteiras de Baltazar bem pousadas na sua barriga e assim ficou até perceber que a fúria do carneiro se tinha dissipado.

Ao Marateca nunca mais ninguém o viu, mas a cena ficou marcada e conhecida na Abrunheira e arredores como a “vingança do Baltazar”.

O Tavinho, a partir daquele cinzento dia de verão, nunca mais assobiou com o Baltazar por perto, não fosse, outra vez;

«o feitiço virar-se contra o feiticeiro»

Silvestre Félix

27 de Março de 2012

(Texto ficcionado pelo autor, baseado nalguns factos, nomes e lugares verdadeiros)

sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

ABRUNHEIRA E OS «CAMINHOS DE ROMA»

Nos últimos trinta de tempo passado e contado em anos, o mês de Agosto, para mim, nunca foi altura de partida e, antes ao contrário, de chegada. Lá para trás ficaram os "Agosto’s" de Lagoa de Albufeira para onde muitos abrunhenses se transferiam a banhos de lagoa, de mar, de areia e sol. Com o “sangue na guelra”, os calores prolongavam-se “luares” dentro e não havia cerveja que os afogasse, também porque não era muita em razão dos trocos (in)disponíveis que a austeridade não foi coisa agora à pressa inventada. E então, finado o Julho, lá começamos a notar que o sol se põe mais para a esquerda da encosta da Serra, ou seja, os dias diminuem à medida que o Agosto corre. Em mim não cabe aquele famoso título de singular filme; “O meu querido Agosto”. Acho que é assim que se chama, se não for, não andará muito longe do certo.
Bem, não sendo o mês de partida mas sim o de chegada, aqui me disponho para mais prosear ao “sabor do teclado” como noutros idos se dizia “ao sabor da pena”. O efeito é o mesmo – escrever – no tempo da “pena”, só a tinta e as especiarias, vinham das rotas orientais ao contrário de agora que, são poucas coisas que não vêm da China.
Quando os Romanos por aqui andavam, mesmo antes do Viriato se atrever a fazer-lhes frente, e porque para construírem caminhos e estradas não precisaram de esperar dois mil anos pelos ensinamentos dos nossos modernos governantes, trataram de empedrar os antigos trilhos desde todos os cantos do conquistado território até à sede do império em Roma. Na Abrunheira, onde decerto passaria um desses caminhos, também se aprendeu a dizer que «Todos os caminhos vão dar a Roma». Os abrunhenses aprenderam e, pelos séculos fora, usaram a expressão para se referirem à estalagem mais próxima, às tabernas e mercearias do Ramos, do Álvaro, da Menina Emília ou, depois, ao Café do Manel, do Cabaço ou ainda mais perto, à URCA.
No século XXI existem muitas “Romas” e “todos os caminhos” vão dar a cada uma delas e todas se ligam umas às outras. Desde a Abrunheira, caminhando, também se chega a todas elas. A mais modernaça, abriu portas ali para os lados do “Alto-Forte” e eu, que me tenho na conta de não ser “anti”, antes pelo contrário, por lá dou umas voltas mesmo que seja para completar o medicinal tempo diário de andamento. Como todas as “Romas” antigas, esta também se apresenta pela opulência e poder de convencer o incauto. Como nos mercados antigos, é preciso manter “um olho no burro e o outro no vendedor”, embora o cuidado aqui tenha outro significado. Mas é bom cuidar deste princípio! Muitos abrunhenses por lá encontro e, não é só neste “Agosto que para mim é mês de chegada” mas também nos outros meses, nas outras semanas, nos outros dias e a várias horas diferentes.
Para sermos uma terra invadida, já não é necessário que dos lados de “Castela” cheguem exércitos armados com intenções pouco amistosas. Agora, neste século de agudas crises, o “inteligente” arranjou forma de concretizar a “invasão” de terras abrunhenses sem que tivéssemos tempo e oportunidade de olhar para o catálogo de ofertas enganosas, como já antes tinha feito com a CEE e com os novos tratados da União(?) Europeia. A muito trabalho me obrigo tentando encontrar produtos que não sejam veículos dessa “invasão”. Até com a “porra” do leite (salvo-seja), é preciso ter olhos bem abertos. O mais barato do mercado, que eles dizem (!!!) marca branca, e que mesmo conferindo a “barra” (560) pensamos ganhar o “assalto”, pode ser importado e só tratado e empacotado cá. E a fruta? Tantas voltas tenho de dar para encontrar a nossa e, muitos dias, nem isso se consegue.
Eu gosto de ter uma “Roma” ao pé da porta e a maioria dos abrunhenses também sentem da mesma maneira, até porque alguns lá conseguiram o tão desejado e preciso emprego, mas temos de resistir à “invasão”. Cada produto, peça de roupa ou brinquedo que o abrunhense compre e não seja “Made in Portugal”, é mais um contributo para a concretização da estratégia do “inteligente” que é concluir a “invasão”.


Roma” sim, mas que seja portuguesa!


Neste "mês de Agosto que para mim é de chegada", “resistir”, é a palavra de ordem!


Silvestre Félix

segunda-feira, 18 de julho de 2011

URCA EM 1990

Quando tomei posse do meu cargo na minha última passagem pela Direção da URCA na transição da década de oitenta para a de noventa, encontramos, já a funcionar, sob a orientação de três empenhados sócios da nossa coletividade, uma escola de futebol infantil com cerca de 30 miúdos.
Naquela época, o pelouro do desporto da Câmara Municipal de Sintra, tinha protocolos com alguns clubes do Concelho interessados em criar e manter “Escolas de Futebol”. A URCA era um desses clubes.
Esta foto tem um calendário no verso e era uma forma de divulgar o excelente trabalho dos três responsáveis e premiar os “miúdos” atletas.
Vou colocar a mesma no álbum dos “Seguidores do Largo do Chafariz” no facebook para que todos possam ser identificados porque, como calculam, não o consigo fazer sozinho.


Silvestre Félix
18 de Julho de 2011

sexta-feira, 15 de julho de 2011

MARISCADA

Que se estranhava tudo a que marisco se chamava e que não fosse tremoços, era verdade absoluta. O mais aproximado que o nosso aparelho auditivo admitia captar e o visual identificar, usando toda a capacidade “olhómetra”, era um bicharoco conhecido por “gamba” ou, admitiam outros, o berbigão e o mexilhão. Mesmo assim, nunca tínhamos contado as patas das “gambas” porque quando as víamos passar estavam sempre demasiado longe para que esse exercício fosse possível. O mexilhão, por tradição, não se safava pela Sexta-Feira-Santa nas rochas batidas pelas arribas da nossa costa que, mesmo não fosse, para o efeito era sempre Magoito. E agora, “diz o inteligente”: Que não, que estou a exagerar, porque nos idos últimos de sessenta e primeiro de setenta já se sabia o que eram “gambas” e outros primos pescados, todos os designados “marisco”. Pois bem, “o inteligente” até podia saber mas eu não, e pronto! Sendo pescado no mar muito me admirava que a Ti Aurélia nunca por cá trouxesse petisco tão elogiado. Lá em casa também nunca vi nem ouvi falar. Nos livros da escola, para além das sardinhas, atuns, carapaus e pargos mulatos, também me parece que não vi aqueles tidos como “marisco”.


Havia uma ou outra notícia sobre estes exóticos “nadadores” comestíveis, que nos chegavam através das histórias contadas pelos regressados heróis das guerras que pelas “Áfricas” continuavam porque em tempos o “botas” disse “depressa e em força para Angola” e, depois de ter caído da cadeira e do “corta-fitas” ter posto o “Professor” no seu lugar, continuar tudo na mesma. Diziam alguns que em Angola lhes passaram pela goela lagostas e lavagantes do tamanho duma Empala ou duma Pacaça o que, para nós, significava ficar na mesma porque os ditos como exemplo, se fossem animais, eram tão desconhecidos como os outros. Vinham outros de Moçambique que nos “emprenhavam” com iguarias em forma e nome de Caranguejos do tamanho das “gaivotas” do Tamariz e que, quando numa cervejaria ou restaurante pediam uma imperial, ainda primeiro que a bebida já lhes punham um prato de Camarões do tamanho de chicharros, à frente. Destes e doutros “filmes”, exemplares narradores era o “calhordas”, o “Pézinhos” e o Fernando e outros Abrunhenses reconhecidamente fiéis à tradição de passar boas histórias com muita “margem de progressão”, principalmente se tivessem, à posteriori, a colaboração do meu irmão.


Está bom de ver que bem instruídos e esclarecidos sobre “marisco”, estávamos todos. Ainda era o Ramos e haveria de ser o Cabaço que ainda não tinha descido à Abrunheira, que de sede servia para o nosso “clube do totobola”. O Caravaca-Pai, que gastava as vagas da Colónia tomando conta do café ao Ramos que na mercearia muito que fazer ia tendo, orientava e controlava os boletins semanais do totobola porque os “seus” consócios eram todos putos como o filho Filomeno Caravaca. É aqui, nesta parte, que me “salta-a-mola” com a qualidade deficiente do disco rígido instalado na minha “caixa-cinzenta”. Quantos faziam parte e quem eram eles? Alguns acertarei, outros inventarei ou omitirei mas, ainda assim, tenho a certeza que por parceiros tinha o Rui Simplício e o Filomeno Caravaca. Havia também, para além do Caravaca-Pai, um colega dele da Colónia e, quase que posso jurar (?), o Zé Fernando e talvez o Mário e se calhar também o Zé Costa. Será que eram tantos ou, pelo contrário, ainda falta algum?


O grande objetivo era juntarmos dinheiro para comermos uma “mariscada”. O sítio foi sendo aventado e, quando a meio do mealheiro íamos, lá nos decidimos em definitivo pelas bandas do “Onde o mar é mais azul”, a Ericeira. Quando o campeonato chegou ao fim, as moedas acumuladas eram tantas, que mais pareciam um prémio de totobola. Lá fomos, pelo menos uma parte, no “carocha” do colega do Caravaca-Pai na Colónia até à Ericeira conhecer e degustar o tão falado “marisco”. Lembro-me de ter ficado impressionado com umas “pinças-longas” que me disseram depois serem lagostas, num tanque logo à entrada do restaurante.


Marcante ficou a “mariscada”. Ainda durante muito tempo nos lembramos de quanto bem nos soube aquela comida com sabor a mar. Ainda nem mancebos éramos e já tínhamos comido marisco a sério. A outra grande vantagem foi termos ficado em condições de participar com conhecimento de causa, em todas as conversas que abordassem marisco. Um feito com elevação na nossa formação de putos espertos que, de agora em diante, viesse quem viesse, barretes sobre marisco, não nos enfiavam mais.


Naqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta, o desconhecimento e ingenuidade eram certezas e o assunto do dia ou da semana ainda podia ser – o que é, o marisco? Os putos da Abrunheira não eram menos sabedores que os outros, os interesses é que eram limitados ao tempo e ao terreno. Era época que nem isqueiro ou acendedor se podia usar, só com licença passada pelo Governo Civil com visa da PIDE. As mudanças também aconteceram na Abrunheira e, como em todo o mundo, tudo está ao alcance dum clique num teclado ou dum simples toque num ecrã reduzido. A curiosidade e o interesse no saber são como o ar que se respira – são, e no minuto seguinte, deixam de ser porque as bandas larguíssimas têm mais velocidade.


Num dia daqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta ficamos a saber o que era marisco!


A movimentação descrita nesta página que, quando se completar outro tanto do tempo contado em anos desde o histórico acontecimento – A MARISCADA – já constará nos documentos classificados de alto interesse gastronómico do finado império europeu e, até o nome dos sítios e dos participantes, terão tradução automática com uma simples aplicação ocular, porque os chineses nunca se adaptaram a outras escritas e leituras que não fosse o seu milenar mandarim.


(Baseado em factos reais mas muito ficcionado)


Silvestre Félix
15 de Julho de 2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

BONECOS DA BOLA

Rebuçados, laranjada, bonecos da bola e pés enfiados em botas bem cardadas com bons protetores na biqueira, era ambição suficiente para putos descalços e mal aviados de sustento para os gástricos ávidos de trabalho. Na Abrunheira também os havia como em todas as outras terras por esse País fora.
Nem mercados, nem agências de rating, nem União (?) Europeia, nem troika, nem Chineses, nem ninguém! Não tinham quem lhes calçasse as botas e lhes desse comer para a boca.
Os putos, depois de terem encontrado o boneco da bola mais difícil, lá foram à vida. Também fui à vida mas não andei descalço e nunca me saiu o boneco da bola mais difícil. A mim saiam-me sempre os mais fáceis e repetiam, repetiam que nunca mais acabava. No que respeita aos “calcantes” – sorte a minha, os bonecos da bola, nem era nem deixava de ser. A laranjada também experimentei aí com quatro anos. Não estava nada mal, mas o que eu queria mesmo era que a Burra-Carocha nunca crescesse mais. Querer de puto mas com muito carinho. Muitos Sóis e Luas passaram e continuo a lembrar-me da Burra-Carocha acabada de nascer da outra Carocha-Mãe.
E eu vi!
E o meu Irmão perguntava: Viste o quê?
Vi a Burra-Carocha nascer de dentro da Carocha-Mãe! (
Respondia Eu)
E o meu irmão: E agora?
Agora o quê? (
Dizia Eu)
Não digas nada à Mãe!
Dizia o meu Irmão mais perturbado do que eu.
E eu dizia: Eu sabia! Os cãezinhos também saíram de dentro da Mimi. Eu pensava, é que iam sair mais Burras-Carochas de dentro da Carocha-Mãe!
O meu irmão só ouvia, estava sem saber o que me havia de dizer.
Oh Mano, então porque é que os pintainhos saem dos ovos?
Uma laranjada, rebuçados e bonecos da bola faziam a felicidade dum puto de quatro ou cinco anos. Botas cardadas com um bom protetor na biqueira para chutar na bola de trapos, era luxo!
Naqueles anos, últimos dos cinquenta, o alcatrão chegava à Abrunheira. Desde a Padaria até ao Largo do Chafariz, depois para cima chegando ao Ti Miguel e um restinho fraquinho (eram mais pedras que alcatrão) pelo João Tirapicos, Cigamó, Quinta de Stº António e do Olival e a seguir pedra de calçada até à estrada nacional na curva. Para baixo do Chafariz, sempre a direito até ao fim, junto à regueira do curronquinho. Aqui acabava o lugar de baixo. A seguir era o caminho para o Caracol e antes, à esquerda, o campo da bola.
Oh Mano, a Mãe ontem estava a dizer que a “Estrela” ia parir hoje ou amanhã e queria que fosse vitela.
Oh Mano, “parir” é como a Burra-Carocha a sair da Carocha-Mãe, não eh?
Quantas vitelas vão sair? É como a Carocha-Mãe ou como a Mimi?
É pá, porque não perguntas à Mãe? (
Dizia o meu Irmão)
Já perguntei e a Mãe não disse!
Descalçava as botas para ficar igual. Os putos da Abrunheira, nos últimos dos anos cinquenta, eram mais felizes se estivessem iguais. As bolas de trapos não doíam quando se chutava.
E a minha Irmã e a minha Mãe: Onde estão as meias? Deve ter sido o vento… Será que foi a Carocha?
Os putos da Abrunheira também sentem culpa por causa das meias que enrolavam umas por cima das outras até fazerem uma bola de trapos que, com rebuçados, bonecos da bola e laranjada, faziam a sua felicidade.
Nunca me saiu o boneco da bola mais difícil e também não queria ir para a escola. Naqueles dois ou três sítios do alcatrão as cardas das botas serviam de patins. Era um escorregar que dava sermão em casa. Com o calor, era brincadeira marcar as cardas e principalmente os protetores, no alcatrão. Era a nossa marca!
Então o Mano vai dizer.
Mas tens de dizer tudo!
E disse!
Os putos descobriram como é nascer uma vitela e uma Burra-Carocha!
O que eu queria mesmo era que a Burra-Carocha ficasse sempre do meu tamanho!
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Silvestre Félix


(Foto – A minha Irmã Felicidade escreveu por trás da foto: «Silvestre com a nossa burra pequenina tirada em 26 de Agosto de 1958» e escreveu o seu nome por baixo.»)


8 de Julho de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O MANCEBO E A FESTA!

Foi a dois, porque a três de Março assentei praça na Figueira da Foz. Estava zonzo da “tola” porque se tivesse em perfeito juízo, tinha dado parte de doente.
E agora? Pergunta quem lê… Foi a dois, o quê?
Responde quem escreve… É claro (para quem tecla) que na véspera de me apresentar no quartel, mesmo sem ter feito mal a ninguém e os outros (“os”, porque naquele tempo “as”, não iam à tropa) terem ficado todos numa boa na Abrunheira, foi a festa de despedida da condição de “mancebo” para ingressar na de “militar” (salvo seja).
Sendo portador crónico (a não ser que ultrapasse os 100 de tempo contado e passado em anos de viajem) daquela “síndrome” conhecida por “entas” como me esclareceu há dias o Rui, adquiri o bom (péssimo para alguns) hábito de inventar algumas coisas, de esticar outras e de meter nomes e alcunhas, mesmo sem bucha, em diálogos que às vezes nunca existiram. Por isso, que não se incomodem os citados e não me chamem nomes os bem memorizados. Não temos que nos chatear porque a maior parte das coisas que por nós passam, são todas inventadas ou, como agora se diz, virtuais. Em qualquer dos casos, para mim, quando se toca em nomes, o registo é, quase sempre, “lacrado”. Ontem, questionava-me o Simplício que, para os meus escritos, basta Rui e toda a gente sabe quem é, como era o nome daquele fulano…tal…que lhe parece filho do Sigamó? Pois claro, é o Lucrécio! E o Lucrécio tem duas irmãs que bem me lembro, a mais velha, casada com o António da “Russa” e a mais nova que bem me lembro do primeiro marido. Vamos lá perceber: Porquê “Sigamó”? Acham que tem alguma coisa a ver com: simplesmente – siga a mó – será isto? Seguir a mó, aquela de moer das azenhas ou dos antigos moinhos de vento?
Bem, quem para aí estiver virado que esclareça, vamos mas é voltar ao que me fez, neste dia de 40º à sombra, por estas terras mouriscas do Sul, ouvindo nuestros hermanos por tudo quanto é sítio e esplanadas, até no Chico, calculem? E teclar desenfreadamente com o São João à espreita e com o gosto da sardinha assada e do robalo escalado, como não consigo, tão bem saborear em mais nenhum lado.
Uma semana antes, quando já se adivinhava um verão quente e bem entrado já no PREC, os preparativos começaram a andar. A grande preocupação era garantir convivas de ambos os sexos de forma a tornar a festança mais alegre. Não era fácil mas, considerando a reputada compostura da rapaziada em questão, que da citação de alguns me responsabilizo sem recorrer a truques de invenção: Eu, o Rui, o Zé Carmo Silva, o Zé e o Fernando Marques, o Mário e muitos outros.
Para compor e garantir o emparelhamento, chegamos a promover um “porta-a-porta” na Abrunheira e arredores, como se de angariamento partidário ou religioso se tratasse. Duma forma geral os progenitores das donzelas eleitas, principalmente as mães, acreditaram nas nossas “boas intenções”, aliás, nunca lhes demos razões para não acreditarem, e o resultado dessa jornada a abarrotar de charme, foi pleno de sucesso como se comprovou no tal dia dois, véspera de três de Março do ano do PREC.
Ainda não perdi a esperança de, com a ajuda de máquina parecida com esta onde botamos letras, formamos palavras, construímos frases e completamos textos, conseguir regredir em trinta e seis de tempo em anos contados, mostrar o desfile de abrunhenses e não só, desde o “Cabaço”, dando a volta pelo Ramos, depois pela esquerda até ao fim do alcatrão (mais ou menos onde mora o Casaca), seguindo à direita pelo caminho de terra e pedra pouco batida até ao Caracol, assim se chamava aquela zona, desde a URCA para baixo.
A adega do Zé estava a abarrotar. Muito se petiscou, muito se dançou e muito se bebeu. Desde as três da tarde daquele dia dois de Março até… não sei, perdi a conta… só me lembro que às seis e meia da manhã do dia seguinte ainda estava bêbado. Quando a minha Mãe me chamou e levantei a cabeça, tive que ir a correr para a casa de banho porque o estômago ainda rejeitava tudo, até a saliva. Foram muitas horas de “adega”. O termo está literalmente correto. Muita bebida se levou mas, também, do líquido corrido pelas goelas abaixo, muito de boleia chegou com o Ti Azevino de mares muitas vezes navegados.
Falando em navegados e navegadores, em idas e vindas, muitos amores também iam e vinham. Naquela véspera de três de Março, ano do PREC e a nove dias do célebre onze em que se proclamou – eles andem aí – algumas paixões despertaram, outras se consolidaram e também uma, pelo menos, se findou. Sem paixão, mas só por uma questão de traços e caminhos da vida, alguns se desencontraram de vez depois de ali terem estado juntos.
De decente tudo aconteceu e nem é preciso disfarçar ou negar a alegria de toda a gente menos eu, que, de inventar também me apetece. O “Custódio”, que linguado nunca tinha visto e muito menos o sabor conhecia, na minha despedida de «mancebo» alguma coisa prendeu. Depois de ter metido umas cervejolas e no meio do vinil da Jane Birkin, descobriu os lábios rosados e carnudos da carinha laroca que com ele dançava, ou melhor, fazia que dançava, e, sem pedir licença, aplacou-lhe as beiçolas selando um prazer nunca antes experimentado. Como o “Custódio”, outros e outras se aplacaram com a mesma dose porque o Zé repetiu o mesmo vinil, e, para “capitalizar” a onda, lá desencantou outros da mesma “lenga-lenga”.
Ai que festa! Saudade bem sentida naquelas noites de Março do ano do PREC e da fundação da URCA, na preparação do corpo para a “Ordem-Unida” do dia seguinte. Não foi só a celebração do último dia antes da tropa, foi também o final de algumas outras coisas. Nos dias seguintes, de farda me vestiram, o cabelo me cortaram, de espingarda me armaram e em “cego” obediente me transformaram. Obediência estratégica, pensei eu!
Silvestre Félix
24 de Junho de 2011