Baltazar se chamava, o
macho ovino com grandes cornaduras reviradas em caracol nas laterais cranianas
que, considerando a lógica linguística e regra gramatical que atribui o género
do nome, terminando com a vogal a
ou o, e por isso devia
ser “ovelho” (masculino de ovelha),
mas que, talvez, para realçar a valentia do animal, se conhece por “carneiro”. Este, era constantemente
desafiado a investir para quem à frente lhe aparecesse. A designação,
aparentemente derivada de “carne”,
também se escolheu para signo do Zodíaco
e para identificar as pequenas ondas espumosas no alto mar. Também se diz “carneirada” para muitos carneiros juntos
ou, aplicado à “raça” humana, de muitos obedientes seguidores
de um líder ou de determinada ideia.
Vem esta conversa de “cornos”, “marradas” e “carneiradas”, a propósito (de
muita coisa, o que não falta para aí são exemplos) do “carneiro” “marrão” do Tavinho.
Antes que o meu irmão venha dizer que não era bem assim, “assado e aquel’outro”, previno já, que me apetece contar as
investidas deste vigoroso macho ovino, à minha maneira, impreciso no calendário
e com personagens que podem ou não ter a ver com a parte verdadeira da
carneirada.
Baltazar bem “inteiro” vivia e, por isso, na maior
parte dos dias logo pelo nascer o Sol à chegada do Tavinho para a tarefa de
mungir as vacas e depois as ovelhas, posicionava-se bem no ângulo de visão do
dono, maneava a cabeça bem armada como se estivesse a dizer que sim, berregava alto
e arreganhava-lhe o lábio superior mostrando a dentadura ovina envolvida em
saliva e espuma da remoedura, em sinal de desejo para montar as fêmeas do
rebanho que de cio fossem portadoras. O Tavinho, sempre prevenido para
quebrar os “desmandos” sexuais do
carneiro, saca de um dos ganchos do penduricalho o avental feito da pele dum
antepassado do Baltazar e, devagar, pela lateral traseira à esquerda e com a
mão direita na cornadura do outro lado, aplica-lhe a correia da barriga ao
lombo, bem justa ficando a pala pela frente da ferramenta reprodutora,
impedindo-o de concretizar, em oportuna fugida ao rebanho, qualquer penetração
estupradora, indesejada e fora de tempo.
O Tavinho, surdo aos avisos
do pai Ti Veríssimo e aos conselhos
da mãe Ti “Estrudinhas”, dobrava-se a rir quando o Baltazar investia no
traseiro de algum distraído Abrunhense.
Nos dias em que o macho ovino arreganhava a dentuça para o Tavinho, era “trigo limpo, farinha amparo”, havia
marrada na certa. Os “habituês” já
sabiam e nem perto do Chafariz
passavam. Já não bastavam os ganços, quanto mais as marradas do carneiro. Ainda
assim, muitos Abrunhenses tinham que
passar mesmo pelo Largo do Chafariz; para ir ao Álvaro, ir buscar água ou levar o
gado a beber ou, simplesmente, passar para o lado da Menina Emília. Ora bem, o Tavinho,
com a marotice toda, tinha o pessoal bem marcado e, quando qualquer da lista
passava perto, assobiava ao Baltazar e não era preciso mais
nada; a vítima enfrentava e arriscava ou então tinha que se pôr ao fresco
rapidamente.
O Baltazar portava-se como
se cão fosse. Obedecia ao dono e guardava o seu território com as armas (cornos) que tinha. O Tavinho
divertia-se com o comportamento do carneiro escondendo, claro está, a sua
cumplicidade. A sua natureza bondosa, generosa e simpática, embora também
divertida, levava a que os Abrunhenses
pensassem que o Tavinho era tão “vítima”
do carneiro como as que o Baltazar marrava.
Muita água o Chafariz deitou, muito
cântaro e bilha lá se encheu, muito gado encheu o bandulho no tanque, muitas “ciganas”, “charretes” de dois e de três, tinto ou branco se beberam, muita
água o “Rio das Sesmarias” correu
debaixo da ponte da Colónia, muitas
vezes os ganços do Ti Veríssimo
levantaram voo, muitas notícias “visadas
pela comissão nacional de censura” eu li no jornal do Ti Álvaro, muitos soldados p’ra Guerra
Colonial em África foram forçados
porque da Índia já tinham vindo,
muitos contestatários presos políticos estiveram e torturados foram, muitas Luas
pelo monte descansaram, muitas solas o Ti
J’oquim Caga-Chuva cozeu, muito reboco o Ti Hilário da Natália chapou, muita pedra o Coutinho que era Bernardino,
com ciência a trabalhou, muito corridinho o Ti
Faneca tocou e muito cigarro fumou, muita gargalhada o Rafael Coxo deu, muito cachimbo o Ti Mendes construiu e gastou, muito cabaz de fruta o Pechincha vendeu e também muito deu,
muita piela o Zé da Natália apanhou,
muito morcego o “Julinho” tentou
apanhar na ponta da cana ensebada, muitos episódios do “Último dos Moicanos” eu vi na “sociedade”,
muita…muita coisa aconteceu nesta Abrunheira que, desde a história do Francisco Borrego que virou Sacadura e do Bernardino que passou a ser o Coutinho,
também ficou a chamar-se Brasil… até
que um dia…embora fosse verão mas as nuvens ameaçavam chuva, talvez fosse aviso
para a tragédia que se preparava…nesse dia, ainda meio-dia não era quando, o Marateca – que do nome só se percebia …teca porque o homem tão depressa falava que
engolia metade das palavras – saia do Ti
Álvaro depois de ter molhado a goela aplicando à tarefa, o braço e a mão
direita descansando o lado esquerdo com o cotovelo no balcão de mármore rosa,
seco e asseado como era costume na “Tendinha”.
O conteúdo do copo de três, soube-se depois, era tinto do melhor, extraído do barril
aberto pelo Ti Álvaro ainda não eram
oito da manhã deste dia cinzento, embora a verão estivesse obrigado pela força
do calendário.
Habitualmente, aquela hora, já a Ti “Estrudinhas” lhe chegava o almoço
mas, nesse dia…a tentação era forte e o Tavinho não podia perder a
oportunidade de por a adrenalina a percorrer o corpo lãzudo do Baltazar.
Na verdade, hoje não lhe tinha mostrado os dentes pela alvorada e, por isso, o Tavinho,
também não tinha colocado o avental na barriga do animal ficando assim “o aparelho” completamente desprotegido e
pronto a “atuar” no caso lhe passar à
frente alguma fêmea “carregada” de
cio. Então…o Tavinho, ignorando o mau presságio do cinzento em dia de verão
avançado, mirando o “estrangeiro” – que só alguns dias depois soube chamar-se
Marateca – saindo do Álvaro,
encarou o Baltazar e, como sempre se divertia fazendo, assobiou dando
sinal de ataque com toda a carga.
O carneiro Baltazar, completando
rapidamente a charada de neurónios naquela cabeçorra cornuda, e utilizando o
mesmo tempo para por a adrenalina “no
ponto”, inicia a debandada em direção ao Marateca, aplicando no arranque, a máxima, de rapar duas vezes com
os traseiros. Levanta a “armação”, e
lá vai ele! O último cliente do Ti Álvaro,
que estava a iniciar o avanço para o largo em direção ao Chafariz, apercebendo-se
das intenções do Baltazar, estanca…e, sem se lembrar de mais nada, levanta os
braços esticados à altura da cabeça com os dois dedos indicadores bem direitos,
formando um arco como se de dois cornos de tratasse, e dá dois passos para o
lado donde vinha o carneiro.
Se isto estivesse a acontecer em anos contados, cinquenta mais tarde,
podíamos imaginar uma cena virtual. Quem vai marrar quem? Com certeza que a
playstation resolveria o dilema. Provavelmente os cornos do Baltazar se transformariam noutra coisa
qualquer e os braços e dedos do Marateca, num emissor de laser’s mortíferos e
demolidores que nem a troika lhes resistiria. Se este frente-a-frente, que nem
21h30m do MCrespo fosse, na certa o nosso Largo
do Chafariz, alcatifado a bosta de vaca e debruado a caganitas de ovelha, depressa
virava “plateau” virtual com todas as cores a que tem direito. Se o
acontecimento não estivesse a dar-se com o “botas” ainda a “cavalo” no poder,
perseguindo e torturando todos os que se lhe opusessem, assim como o Marateca
de caras com o Baltazar, seria um
tempo virtual em que na Abrunheira
até jardins com o nome de “forno” existiam. Aliás, nessa distante galáxia
Abrunhense, muitos “fornos” haverão; A padaria que será “o forninho”, a rua do
forno e, mais tarde, ao ritmo de santa Engrácia, o jardim do forno.
Mas não, estávamos quase na
época da pedra que, mesmo assim, era matéria viva e delicada para o Bernardino
que não era Coutinho e sabia a “ciência da pedra”. Voltemos então à narrativa
de meados do longínquo século XX…
Na altura em que os dois (Marateca e Baltazar) quase se tocavam de frente, já alguns Abrunhenses se aproximavam para assistir
a mais uma marrada do carneiro do Tavinho. Pois é, só que desta vez,
mesmo no meio do Largo do Chafariz, iriam ver a lógica transformar-se numa
batata. Naqueles instantes, começou a instalar-se a dúvida em muitos Abrunhenses sobre quem venceria a
contenda. O próprio Tavinho que, como sempre, estava impávido e sereno esperando o
desfecho do costume, começou a sentir suores frios a escorrerem-lhe pelas
costas abaixo, quando, a suposta vítima, entendeu enfrentar o seu obediente e
esperto Baltazar.
Foram momentos de alta tensão,
eram audíveis as respirações dos contendores que sobressaíam do silêncio
tumular nunca sentido no Largo do Chafariz. Foram segundos de
tempo contado num êxtase geral, subindo a emoção dos presentes até às nuvens
que, como já se disse no início do escrito, estavam cada vez mais negras,
antecipando uma forte trovoada de verão que, porventura, Baltazar adivinhou.
Os dois, Marateca ou somente …teca e Baltazar, parados, frente a frente.
De repente, o inteiro macho
ovino, maneia o focinho para cima e para baixo e, arreganhando a beiça, desata
uma berregadela bem forte, dá meia-volta e, começando a verter todas as águas
que a bexiga armazenava e botando muita quantidade de caganitas negras como as
nuvens, raspa no chão com as traseiras e arranca numa correria desenfreada na
direção do Tavinho que este, estonteado e apardalado com o que via, não se
lembrou de que atrás de si estava um fardo de palha que, no segundo seguinte,
lhe servia de enxerga. Na horizontal, quando deu conta de si, Tavinho
sentiu as patas dianteiras de Baltazar bem pousadas na sua barriga
e assim ficou até perceber que a fúria do carneiro se tinha dissipado.
Ao Marateca nunca mais ninguém o viu, mas a cena ficou marcada e
conhecida na Abrunheira e arredores como a “vingança do Baltazar”.
O Tavinho, a partir daquele
cinzento dia de verão, nunca mais assobiou com o Baltazar por perto, não
fosse, outra vez;
«o feitiço virar-se contra o
feiticeiro»
Silvestre Félix
27 de Março de 2012
(Texto ficcionado pelo
autor, baseado nalguns factos, nomes e lugares verdadeiros)