quarta-feira, 4 de maio de 2011

EU, O PATO E O JOÃO BARRIGA

Por artes mágicas com pozinhos perlim-pim-pim e tudo, o que antes se chamava “Vale de Porcas” ou “Vale Porcas” sem “de”, virou “Vale Flores”. A origem do primeiro nome tem a ver com a existência de muitas cortes suínas de que até a realeza se recorria para abastecer as despensas e as salgadeiras dos Palácios da Vila e da Pena e, também, o de Queluz, desde a época dos desvarios de Carlota Joaquina que consorte rainha se tornou quando o regente D. João foi Rei com o número VI.


Este “Vale”, agora “Flores” e antes “Porcas”, corresponde à parte antiga com entrada por Ranholas ou Chão de Meninos, na banda de cima do A 16. Do lado de Mem Martins, fica então a parte nova de “Vale Flores” que nunca chegou a ser “Vale Porcas” e, antes, “Chancuda” e “Casal da Charneca” do Ti Zé da Charneca e mulher, pais da Lucinda, viúva do Ramos com o café dos quatro onde nasceu a antiga mercearia que me estreou no trabalho fora de casa, armado em ajudante do Ti Ramos. A Lucinda tem uma irmã que no Casal da Charneca também nasceu, esposa do Comandante Gaspar dos Bombeiros de São Pedro. Ainda de mercearia falando. Arrumado no sítio certo ainda tenho a lembrança duma tarde do Verão de 1966. Não tinha costume, mas, naquela tarde, o Ti Ramos ligou a telefonia quando os “magriços” já perdiam por dois a zero. De alegrias carenciados com tal resultado e, com o fôlego ainda meio entupido, os coreanos do norte marcam mais um, encolhendo rapidamente a esperança de virarmos o resultado. Na pele de marçano ajudante, muito contente fiquei, com os cinco espetados à Coreia do Norte.


Deixando a mercearia e o futebol, matérias intrometidas na sequência do escrito que de “Vales” e seus limites falava, esta dualidade na designação do “Vale” diz respeito ao que quero contar. Agora é “Flores” mas a época que vou reportar era “Porcas” de forma que, para o escrito, vai ser Vale Porcas” e ponto final.


Depois de eu ter nascido mesmo em frente do Rio das Sesmarias, decerto de seco leito que o estio já ia forte, a família decidiu ir tratar da vida para outras paragens e eu, que comer e sujar fraldas mais não faria nem entendia, lá fui. E para onde? Para “Vale Porcas”. Os meus pais tomaram de renda o “Casal Novo” que de fruta e horta não pedia meças. A estadia por lá muitas histórias tem que alguma vez poderão ser contadas mas, o fio do meu escrito vai direitinho para o nosso regresso à Abrunheira passados 4 anos e meio.


Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959 e o dia a acabar, quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Ainda meio atordoado com a viagem que me pareceu maior que o costume e porque com os balanços da carroçaria me embalaram para mais um sono…ouvi atrás de mim:


Olha o “pato bravo”!


Gritou o João Barriga quando se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Minha Mãe ou com a minha irmã Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. Mas, o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? E o que era isso de pato e ainda por cima bravo??


A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a vermelho e verde, com as pegas atadas para o animal não fugir. Eu, a Minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.


Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssimaResiquímica, ou, naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem a minha família e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.


O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, não me lembro de ver aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver alguns cães em cerâmica que, decerto, a sua mulher lá colocou para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.


Pois nós tínhamos vindo do dito “Casal Novo” em “Vale Porcas”. Enquanto a casa para onde nós íamos morar esteve indisponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi aí que chegamos de carroça cheia. Outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da Minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.


Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e, o João Barriga, está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."


Silvestre Félix
4 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

ARTES E OFÍCIOS

Naquela época, a profissão – substantivo quase desconhecido ao tempo usando-se na fala a designação de arte ou ofício – servia de “apelido” ao chefe de família e, por sua vez, aos filhos e enteados. Era assim que os Abrunhenses se referiam entre si, sendo hábito tão entranhado que, muitas vezes, os descendentes assumiam outros ofícios tão ou mais dignos e destacadas que os dos progenitores mas nem por isso mudavam de alcunha. Só era lícito acontecer um novo apelido condizente com a nova arte quando, por abençoado casamento, fosse constituída nova família com morada fora da Abrunheira.


Também havia outras formas de identificar os Abrunhenses com nomes mais comuns, acrescentando-lhe o nome da Mãe, do Pai, da mulher ou do marido, por exemplo: “Zé ou João da Natália” (sendo Natália Mãe) e “Ti Maria do Florindo” (sendo Florindo marido). Ainda um outro acrescento ao nome para lhe dar diferença de outros, por exemplo: Silvestre “Velho” (sendo o mais velho, Pai ou Avô).


Desde esse tempo passado e contado em anos, lembro-me de um “Zé”, “Manel”, “Chico”, António ou mais uma dúzia de nomes, seguido de: Sapateiro, Padeiro, Serralheiro, Carpinteiro, Pedreiro, Calceteiro, electricista, leiteiro, peixeiro, etc, etc.


Muito quero contrariar esta tendência de acrescentar ao já muito comprido mas, palavras são como as cerejas que eu lhas gosto, e, por isso, nunca consigo deixar de teclar no ponto previsto, largando-me à vontade dos dedos que não param de andarilhar dum lado para o outro. Na Abrunheira nasci, cresci e fiquei homem, sem nunca ter cumprido em mínimo, as introduções ou os prefácios. Assim sendo, vamos lá às lembranças que se faz tarde e porque o leitor baralhado fica, se não lhe disser rapidamente sobre que Abrunhense hoje prosarei.


Vamos lá. Muito ligado a este costume de chamar pela forma de labuta, levada todos os dias, porque ainda hoje é difícil arranjar outras maneiras honestas de trazer dinheiro suficiente para pôr comidinha na mesa, está também o abreviado do “apelido”, no caso quero destacar como se chamava “peixeira (o)”. Assim, a primeira sílaba ficava só com “pi” e o “i” muito sumido, em vez de “pei”, logo, em vez de “Peixeira” seria “Pixeira” e quase “P’xeira”.


Vem isto a propósito, não do novo acordo ortográfico, mas da nossa querida Ti Aurélia “P’xeira”. Com morada no primeiro andar da mesma casa onde vivia o Manel da Colónia, entrando pelas escadas exteriores nas traseiras. Daí saía, todos os dias de peixe fresco, sempre com a sua Filha Lucinda ou Lucília na fralda do seu avental, empurrando o carrinho de madeira e rodas de bicicleta e travessão, caminhando pelas poucas ruas da Abrunheira daquele tempo, vendendo os seus chicharros, pescadinhas de rabo na boca, J’aquinzinhos, sardinha, chocos, fanecas, cachuchos e outros sempre fresquinhos que todas as noites viajavam da Lota de Cascais trazidos pelo Ti João Pinto, para nós Ti João “P’xeiro” e seus Filhos João, Eurico ou Jaime.


A Ti Aurélia P’xeira, que só de boa gente falo eu, era uma jóia de pessoa como dizia a minha Mãe. Era das pessoas que a minha Mãe gostava muito. Desde essa juventude na idade que lá ficou, que tinha muita simpatia por esta Ti Aurélia que todos conheciam por “P’xeira”.


O Ti João, tinha aqui na Abrunheira a sua morada e entreposto, mas vendia em Mem Martins. Todos os dias, com o seu inseparável cigarro e bigodinho à maneira, lá ia na motoreta e atrelado com o seu peixinho fresco para Mem Martins.


Nestes dias de “marca-crise” económica, financeira e também de valores, não podemos comer peixe fresco da Lota de Cascais porque, como outras coisas, acabou. Há 20 ou 25 anos atrás, tivemos políticos que acharam ser melhor para nós, e também para os Abrunhenses, receber dinheiro da antiga CEE para deixar de cultivar, de pescar, de transformar metais, de fazer comboios, de reparar grandes petroleiros, de construir navios, bacalhoeiros e barcos de pesca, etc., etc..


Pois bem, há 25 anos, o peixe que a Ti Aurélia P’xeira vendia na Abrunheira, era pescado por pescadores portugueses com barcos construídos nos nossos estaleiros e revendido na Lota de Cascais todos os dias normais de trabalho. O peixe era fresco e de boa qualidade. Em todos os portos de pesca era assim. Hoje, o peixe consumido na nossa Abrunheira e em todas as outras Terras pelo País fora, é quase todo importado do estrangeiro, pesa muito no deficit da balança de pagamentos é menos fresco e, muitas vezes de qualidade duvidosa.


Já há alguns modernos dicionários onde não consta o substantivo “peixeira (o)”.


Dos Abrunhenses se fez e faz a nossa história. A Ti Aurélia P’xeira lá tem o seu lugar de destaque.


Silvestre Félix
27 de Abril de 2011


(Extraído dos textos "Abrunheira, Terra com História" de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue "Aldeia Viva" durante 2007 e 2008.)

(Correção e atualização do autor em 2011)






quarta-feira, 20 de abril de 2011

O NOSSO RIO DAS SESMARIAS

Muito discurso se constrói hoje partindo do substantivo “parceria” percorrendo caminhos de prosa arrebatadora para plateias entusiasmadas ou, então, para despachar em grande velocidade magotes de jornalistas e repórteres inconvenientes. As parcerias podem ser muitas mas as que estão mais em voga são as famosas “público-privadas”.


Na Abrunheira, e por razões que nada têm a ver com as que são referidas nas linhas passadas, até porque há 60 ou 70 anos ainda não tinham inventado tal forma de ganhar (roubar) dinheiro, para além disso, os Abrunhenses tomavam banho de ”honra” e a parceria tinha o peso substantivo que a gramática lhe atribui; Era reconhecidamente uma "parceria estratégica", ele (O das Sesmarias) precisava de ser limpo e as ruas precisavam da areia para serem transitáveis.


Estou a falar duma parceria ambiental e que, nos dias de hoje, faria muitas bandeiras que as associações de defesa do ambiente não perderiam a oportunidade de usar; Ainda de asfalto vazias, as ruas da Abrunheira recebiam do parceiro Rio das Sesmarias, pelo menos uma vez em cada ano contado em dias duros de trabalho, as suas areias corridas nas correntes de água de invernos e primaveras chuvosos. O das Sesmarias era limpo do leito às margens e as ruas da nossa Terra eram arranjadas.


O começo da ceifa pelos campos cercados da Abrunheira trazia, de outras terras, ranchos de homens e mulheres que, usando foices, gadanhas e outros utensílios do ofício, desbastavam as searas aloiradas e dispostas ao sabor da nortada chegada a partir de Março. Antes da debulha suada em Verão ainda sem aquecimento global acelerado, o desassoreamento do leito do nosso “Amigo”, tinha as funções bem definidas. Areia, terra e restos dos verdes na água corrente criados – Se fosse neste tempo de agora, limpas de produto final de combustíveis fósseis que nos oferecem em super e mini - mercados, para lhes fazermos o fazer de consumir o necessário e o desnecessário – eram (as areias e o resto) distribuídas ao longo das ruas mais utilizadas com destaque para a principal.


Tudo ficava preparado para receber o aumento de tráfego que mais parecia o IC dezanove em hora de ponta. Nas boas vindas à debulhadora e máquinas acessórias, corrupio de carros de bois e carroças, a rua principal da Abrunheira Que muitos anos depois contados em tempo de vida difícil, haveria de chamar-se “Av. Movimento das Forças Armadas” em homenagem aos obreiros da libertação porque o Salazar demorou muito tempo a cair da cadeira e porque a Primavera Marcelista já não era e porque a guerra não acabava sozinha e porque a PIDE ou DGS ainda era – poucos buracos devia ter para não ser preciso força braçal a desempenar alguma roda.


Ao longo de grande parte desta vida, o Rio das Sesmarias fez parte da minha rotina visual. Para mim, Abrunheira sem rio, não era. Importa lembrar como de longe vem o nome do nosso Rio – Sesmarias!


Por todo o nosso País, pelo Brasil e em todas as outras Terras que foram colónias deste que já foi império, há referências a este nome, comprovando assim a importância desta lei, promulgada a 28 de Maio de 1375 pelo Rei D. Fernando I em Santarém. Pelo mundo há cidades, vilas e aldeias, rios ou serras que se chamam – Sesmarias! A nossa região não é excepção, e, decerto, o nome dado ao rio aqui na Abrunheira, é uma herança de há 636 anos.


Tal como acontece por todo o lado e com tantas outras coisas, o nosso Rio das Sesmarias, neste início da segunda década do século XXI, já não tem a importância que tinha. Na época em que a “parceria estratégica” era praticada, tratávamo-lo com todo o cuidado, estava sempre limpinho. Era da sua água que se regavam as hortas, que se dava de beber à sede dos nossos animais, na sua água, em sítios bem definidos, as nossas Mães/Avós lavavam a roupa, ainda num ou noutro local, faziam-se pequenas represas para que, quando o calor apertasse, a gente conseguisse disfarçar a distância da praia do mar. Neste mesmo rio, lá pró Carnaval, podiam-se apanhar enguias às dezenas e também os bons agriões porque da outra salada era preciso comprar semente, deitar na terra e esperar que crescesse.


O nosso Rio das Sesmarias, que muito morador da Abrunheira nunca viu e muito menos sabe o nome, tem nascente lá pelas bordas da chamada “Serra de Ouressa”, engrossa nas sobras da “Chancuda”, passa por baixo da estrada velha de Sintra e continua a correr entrando na Abrunheira por detrás da Quinta do Olival e saindo entre a Arroteia e a Beloura. Continua atravessando a estrada na Capa Rota junto à antiga “Casa da Água”, mergulha no vale do “Sebastião Moleiro” fazendo-lhe mover a azenha, roça por Manique de Cima e continua serpenteando, sendo mais respeitado nuns sítios que noutros, até encontrar a foz na Costa de Carcavelos.


Silvestre Félix

segunda-feira, 18 de abril de 2011

OS MARCHANTES DA QUARESMA!

Em casa dos meus Pais, a época em que mais sentia a regra religiosa, era a Semana Santa. De forte tradição e cultura católica, a minha Mãe, embora sendo uma praticante moderada, levava a sério as condicionantes da Quaresma muito acentuadas nestes dias que antecedem a Páscoa. Havia restrições no tipo de comida e a carne só voltava à mesa a partir de Domingo. Desde Quinta-Feira que o ambiente era de enterro e, nestes dias, vi muitas vezes a minha Mãe de “Terço” na mão rezando as correspondentes orações.

Muito mais celebrado do que, por exemplo, o Natal, no Domingo de Páscoa a minha Mãe fazia filhoses, arroz-doce e “fatias-paridas” (rabanadas). As minhas lembranças do Natal são vagas, até porque não havia brinquedos nem qualquer outro tipo de prendas, mas a Páscoa era diferente. Também era neste dia que a minha Mãe me vestia uma peça de roupa “nova” A Tia Alice, (Tia-Avó paterna) tinha um negócio de roupa e calçado em segunda-mão e aqui, o “novo”, já tinha sido usado por qualquer outro menino de família mais endinheirada – e também foi num Domingo de Páscoa que estreei os meus primeiros sapatos da Tia Alice, muito diferente das botas cardadas com protetores atrás e à frente, do mercado de São Pedro.

A Páscoa também tinha outro atrativo para os putos da Abrunheira. Todos sabíamos que no domingo antes da Páscoa, que se dizia de pascoela e que, para efeitos religiosos, lhe chamam o Domingo de Ramos, aí pelas 10 da manhã, no Largo do Chafariz em frente ao Álvaro, chegava uma camioneta de passageiros que hoje se diz auto-carro, despejando umas dezenas de pessoas vestindo trajes coloridos e que, depois de formarem uma grande roda no meio da multidão de Abrunhenses, e com o acompanhamento de alguns instrumentos musicais de sopro, iam progredindo em danças e cantorias bem balanceadas e depois, em postura mais retilínea, a que chamavam – Marchas!

No Domingo a seguir, o da Páscoa, lá vinham eles outra vez de Bicesse, da Galiza ou do Estoril. Os Abrunhenses voltavam a responder à chamada. Eu era dos primeiros a chegar mas, ainda antes, já lá estava o Zé Fernando o Rui e o Vitor do electricista com as irmãs que moravam mesmo ali, o Zé Augusto, se a Maria José deixou, a Manuela se a Tia Alice deixou, o Julhinho, o Filomeno Caravaca, o Fernando Pedroso, o Mário, os irmãos Pardal; O Zé, a Albertina, a Isilda,Venâncio, Filipe, Fernando, Chico, Anabela, Isabel e o Carlos Fadista. O Octavinho, de geração diferente da minha, mas figura admirada na nossa Terra naquela passagem dos anos 50 para os 60, que a ocupação do largo complicava a rotina dos bovinos e ovinos a seu cargo. O Valentim com a irmã Isabel e a mais nova, o Carlos Jorge e a Teresa, a Maria Adelina e o irmão, o Domingos e Teresa do Souto, os meus primos; Rafael, Chico da Ti Ermelinda, Gina e o Zé, o Pézinhos e o irmão Fernando e o Pai Rafael Coxo, o meu irmão Vitor, a minha irmã Felicidade, os irmãos Nascimento; O David, o António, o Zé e a Dulce. O Alfredo do Barroso, o Fernando e o Vitor ginete, o Chico Cruz e a Clara, a Graça e a Elisabete, os Irmãos Balagueiras, o João careca e a Júlia, a Maria Augusta, a Zézinha e o Luís, e Pedro bicanka, a Teresa e a Isabel Maria, o Zé do Florindo e a Irmã, a Maximina e a Graciete, o Urbano, o Adrião, o Lucrécio sigamó e as duas irmãs, o Zé e o João da Natália, a Madalena do Ti Joaquim da fruta e a irmã, o Zé grande, o Miguel Frade e mulher que por cá já andavam, o Eurico, o Jaime e João Pinto, o João Barriga e o António calmeirão. Também sempre lá estavam o Ti Joaquim Cagachuva e a mulher Margarida, o Coutinho que era Bernardino e a Judite Caracol, o Zé de Celorico e a mulher, o Caladinho e o Faladura. Muito mais gente vi mas, o tempo passado contado em anos vai absorvendo os pormenores das lembranças. Que me perdoem todos os que, estando, não foram assinalados de merecida forma.

E então os marchantes que cantaram, dançaram e marcharam, dum momento para o outro, fazem o movimento inverso, assim como um vídeo a andar para trás, entram na camioneta, e ainda antes de estarem todos sentados, o andante começa a rolar em direção ao próximo ano. A Abrunheira volta à calmaria habitual ansiando por outra visita.

Para que o gosto não pare, e a Páscoa seja lembrada durante vários dias, ficava sempre o sabor das “fatias-paridas”, das filhoses e do arroz-doce.

Silvestre Félix

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA - Capítulo Um

Aquela manhã preparava um dia de calor a sério, nem vento a norte, nem véu na Serra com direito a ver a ponta do Palácio da Pena. O Coutinho que era Bernardino já tinha no bandulho as sopas de cavalo cansado que a Judi Caracoleta lhe havia preparado. O descanso da noite tinha passado depressa e, na cabeça ainda zonza, martelava aquela conversa de ontem à noite na taberna. Dizia aquele fulano “bem-posto”, que parece trabalha na fábrica nova de Mem Martins e lhe chamam “o caladinho”, porque nunca diz nada e de vez em quando sai-se com umas que a gente não percebe, que tinha começado uma guerra nas “Áfricas” e que os nossos tropas iam começar a ir para lá combater. O pessoal ficou todo de orelhas em pé e de roda dele, todos quisemos saber mais, mas ele, como era costume, ficou muito assustado a olhar para todos os lados e para a porta, pagou a rodada de “ciganas”, e pôs-se a andar.

Bem, o Coutinho que era Bernardino, com aquelas “marteladas” na cabeça, lá saiu de casa e a passar o Santo António, cruza o caminho com o Chico da Beloura que lhe fez a conversa do tempo… que vai estar muito calor, que as ovelhas estão cada vez mais gulosas, que assim, que assado... - nesta altura a Beloura ainda era só Casal da Beloura e quem lá punha e dispunha era o Chico e família e o seu rebanho de ovelhas. Lá muito mais para a frente o Casal virará Quinta - e, entretanto, o Coutinho que era Bernardino, lá ia arrojando o esqueleto até à pedreira do Ti Miguel, com o peso da picareta e ao dependuro no cinto de couro, aquele que o Joaquim Cagachuva lhe arranjou vai para cinco anos, ainda antes de se ajeitar com a Judi Caracoleta, (tomando o fio) o martelo de corte, o escopro de pedra e a marretinha, tudo que lhe fazia falta naquele dia, para aplicar, com toda a sabedoria, a sua arte. Não havia um único santo dia que o Coutinho que era Bernardino, com mais ou menos charretes e ciganas na pança, não dissesse a alguém que;

«Eu sou cabouqueiro… eu tenho a ciência da pedra!»

(A solidão era rainha e, por isso, muitas vezes tinha que o dizer para a própria pedra ou para as ferramentas)

«Olha lá oh Marretinha …(soluço) eu já te disse que tenho a ciência da pedra? (soluço

«E a Marretinha: Sim, já me disseste!»

«E o Coutinho que era Bernardino continuava; Oh Martelo de Corte… (soluço) Eu já te disse que sou o melhor cabouqueiro da Abrunheira e arredores?»

«E o Martelo de Corte lhe dizia; Já, e muitas vezes. (continuava o Martelo de Corte) Oh Coutinho que és Bernardino, com o calor que está e porque as pedras não fogem, porque é que não vais à Menina Emília meter mais uma ou duas charretes no bucho? Assim refrescavas e davas descanso à gente.»

«E logo, o Coutinho que era Bernardino; Olha, se calhar até é boa ideia.»

A última palavra ainda não estava dita, (só precisava dum pretexto) e já o Coutinho que era Bernardino, ligava os andantes para atravessar o Rio das Sesmarias e meter pelo caminho do Cipriano acima.

«Oh Amigo Rio das Sesmarias, deixas-me passar outra vez?»

«(Diz o Rio das Sesmarias) Podes oh Coutinho que és Bernardino. Eu quase que cá não estou, só está o sítio. Nesta altura, a menos de um mês do Silvestre Velho começar a debulha, como é que queres que eu cá esteja? Agora só lá para meados de Setembro com as primeiras águas. Mas… ainda falta muito tempo contado em horas, para o sol de esconder por detrás da Penha Longa, onde é que vais?»

«Meu velho Amigo Rio das Sesmarias, vou molhar a goela à Menina Emília. Tem de ser, se não, a ciência da pedra não sai.»

«Olha lá, Coutinho que és Bernardino, vê no que te metes! Não te descuides, porque senão lá vem a Judi Caracoleta à tua procura.»

E o Coutinho que era Bernardino deixando o Rio das Sesmarias para trás, lá vai subindo o caminho e, quando ia mais ou menos a meio, do lado esquerdo o Cipriano e do lado direito o Pena. Quase os dois ao mesmo tempo, mas cada um a seu jeito;

«(O Cipriano) Então Coutinho que és Bernardino, com o sol ainda tão alto, onde é que vais?»

«Vou até à Menina Emília molhar a goela que a secura está a dar cabo de mim.»

«(Diz o Pena) Vai direitinho e não te demores, se não, a Judi Caracoleta vem fazer-te companhia…»

«(O Cipriano) Oh Coutinho que és Bernardino, olha que o Ti Miguel precisa que acabes aquelas cantarias para as janelas da obra.»

«Eu sei, daqui a meia hora já passo para baixo.»

Passou a esquina do Abílio mas… para a Menina Emília, tinha de passar para as bandas da casa do Ti Miguel. Para não haver chatices, nem dum lado nem do outro, decidido logo ali. Em vez da Menina Emília, ia beber uma charrete ao Faial que agora é o Ramos. Metia em frente pela quinta do Santo António, á esquerda pela do Olival e pronto, já lá estava na curva.

Quando estava a chegar à esquina, e de ouvido o Coutinho que era Bernardino continuava melhor que todos, começou a ouvir uma fala assim… como um discurso bem falado. Quem havia de ser, o “Caladinho”. Lá estava ele… mas…

«O fulano está a falar sozinho. Pois claro, se estivesse alguém, como de costume estava calado. Deixa lá ouvir o que este marmanjo diz…»

É verdade, e os soldados lá iam, todos certinhos, em bicha pirilau, a subir a escada do navio, e no cais, uma multidão a dizer adeus…, eram as mães, os pais, as mulheres, os filhos e toda a família. Era um mar de lenços brancos e uma choradeira sem fim. Os soldados, à medida que iam chegando lá acima, voltavam-se, e tentavam corresponder aos acenos. Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados, nos que ficaram e nos que foram e as famílias estão destroçadas. A maldição tinha batido à porta de cada soldado que embarcava – Daqui a 50 anos, depois dos cravos e de hossanas à Liberdade, ainda vai haver um Presidente da República que elogiará o desígnio da Guerra Colonial a que ele vai voltar a chamar “Guerra do Ultramar” – Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e o “inteligente”e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega, ainda mandam, e o Zé, não consegue reverter a situação, ainda…

(Qualquer dia continua)

Extraído do escrito – “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” – de autoria de Silvestre Félix

Dicas: Charrete – Garrafa de mais ou menos 40 cl cheia de vinho tinto do barril; Cigana – A mesma coisa, mas a garrafa é de 33 cl; Marretinha – Marreta pequena para trabalhar pedra.

sábado, 9 de abril de 2011

DIREITO DE SONHAR!

Pelos traços e caminhos da minha juventude, acontecidos dentro do apertado perímetro da Abrunheira que muitos sempre gostavam de lhe chamar – Brasil e encavalitado nos andantes de ferro abarrotados de outros e outras que, depois de concluído o sagrado complemento de descanso noturno, me despejavam na grande cidade louca de andarilhos logo pela manhã.

Nas minhas andanças, fosse pela borda do Tejo com ou sem “Tallon” sempre à vista daquela janela do terceiro andar, fosse na ida e volta dos andantes nos carris de ferro, na romântica beira da nossa serra com cheirinho a sintrenses queijadas e travesseiros ou na tranquilidade da nossa Terra, sempre me acompanhavam o “Faladura” e o “Caladinho”!

“Cuidados e caldo de galinha, nunca fizeram mal a ninguém!”

O Faladura era bem mais descuidado e muitas vezes inconveniente num tempo de domínio pidesco. Muitas vezes o alertávamos para as possíveis consequências, mas ele pouco ligava. O Zé Carmo Silva era o mais sabedor das técnicas de despiste da “bufaria”. Tinha a experiência do sítio universitário onde a pide atuava em permanência. Eu era aprendiz e, a pouco e pouco, ia aplicando, à laia de teste, algumas dessas técnicas. O Faladura abusava, principalmente, quando estávamos no café do “Manel” ou no “Cabaço”. Ainda por cima havia pessoal mais novo que, embora já nos acompanhasse, ainda não estava consciente do mundo salazarento em que vivíamos. O Faladura era aquilo a que costumamos chamar – “Espalha-brasas”. Houve ocasiões em que ficamos com dúvidas que a indiscrição do Faladura não tivesse trabalhado nos tímpanos de algum zeloso servidor da pide. Não foram poucas as vezes que nos sentimos perseguidos nas nossas andanças. Alguns cantos da Abrunheira conheceram bem as nossas tertúlias secretas em que, muito mais tranquilos estávamos, sem a participação do Faladura.

O Caladinho era o contrário. Quando o Zé Carmo Silva chegou ao seu convívio, já ele dominava tudo o que era “resistência” à pide e aos seus “bufos”. De tão cuidadoso, até metia impressão. Não dizia uma palavra que fosse, sem olhar em redor pelo menos duas vezes cruzando o movimento do pescoço para se certificar que não havia mais ninguém num raio de 100 metros. Fazia sempre isto, mesmo que o tema de conversa não tivesse nada susceptível de ser considerado subversivo pela ditadura. O Caladinho conhecia bem a situação e, da Abrunheira, conhecia bem as moradas que deram serventia a opositores do regime. Sabia até quem se tinha escondido em cada uma delas e o tempo que lá estiveram, com datas e horas das entradas e saídas. Na verdade, o Caladinho, como a própria alcunha diz, estava quase sempre calado. Era mais de: Olhar para ver, ouvir, ler e escrever. Andava sempre com um pequeno bloco de notas onde, quando menos se esperava, desatava a escrever. Havia dias em que trazia também um livro debaixo do braço. Era estranho porque o livro tinha sempre a mesma capa – totalmente branca! Claro que não era a capa do livro. O que o Caladinho fazia era forrar com uma folha branca qualquer livro que trouxesse para a rua. Assim, os “bufos” não conseguiam ver que livro era e, no caso do Caladinho, quase sempre se tratava de leitura proibida. Lembrando-me do Rui, do Caravaca, do Fernando Pedroso, do Mário, do Zé Fernando, do Carmo Silva, do Zé Alentejano e dos mais novos Zé e Fernando Marques, Paulo, etc., etc. a quem nem sempre encaixava bem este comportamento. Depois das explicações que o Caladinho – com muito cuidado e olhando bem em redor – lhes dava, toda a gente entendia e, ao mesmo tempo, ficavam com mais uma lição aprendida.

Nas sessões de matraquilos, por exemplo, enquanto o Faladura dava largas à sua capacidade vocal, estivesse a jogar ou na posição de espetador, o Caladinho que jogava bem e preferia a defesa onde, em muitas partidas, metia mais bolas na baliza adversária que o parceiro do ataque, não festejava as bolas a seu favor nem comentava os golos que sofria. Eu, embora na altura visse as diferenças entre um e o outro, só muito mais tarde percebi bem o significado de uma e de outra atitude.

Naqueles anos de crescimento demográfico da Abrunheira em que o pouco alcatrão da (hoje) MFA, só ia até 100 metros antes da delegação da Junta e que a do Forno ainda não era porque o forno do Cipriano ainda lá estava e fumegava, em que a Ferreira de Castro ainda era “curronquinho” e, vinda de cima, parava logo a seguir ao Cabaço, em que URCA era sonho e muito menos a Humberto Delgado que de carrascos e silvas se via farta e batizada de Caracol, em que o “clandestino” Carrascal que toda gente sabia e via, viria a vestir-se de símbolos de LIBERDADE com a rua 25 de Abril, 1º de Maio e da Liberdade. Naqueles anos em que se aproximava rapidamente a minha hora da tropa e, quem havia de saber, da Guerra Colonial, não fora o: E depois do adeus” e a “Grândola Vila morena” com um mar de cravos vermelhos nos canos das espingardas.

Naqueles anos, UM Faladura e UM Caladinho eram meus companheiros inseparáveis.

Tenho a certeza, no entanto, que muitos outros abrunhenses da minha geração tiveram também por companheiros outros tantos “Faladuras” e “Caladinhos”.

Na Abrunheira, em 2011, também há juventude com muitos problemas e, uma boa parte, identificar-se-á com os movimentos contestatários que ensaiam a grande ação de indignação que, mais tarde ou mais cedo, se mostrará.

Em momentos diferentes, com medidas de grandeza muito distantes, a minha juventude e a de 2011 tiveram e têm o direito de sonhar!

Silvestre Félix

9 de Abril de 2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

AGRADECIMENTO

Estamos em Abril – mesmo que este esteja um bocado nublado com a frente negra que se aproxima vinda do fundo europeu de estabilização financeira (FEEF) e doutras siglas menos recomendáveis – e é o tempo adequado para saudar os amigos.


Tenho a obrigação de transmitir o meu agradecimento pela forma como o “Largo do Chafariz” tem sido acompanhado, comentado e partilhado por parte considerável dos membros do grupo de seguidores no FB e também diretamente no blogue.


Aproveito para incentivar os membros do grupo de seguidores a sugerirem a adesão de pessoas interessadas e que não seja do meu conhecimento. Sempre que isso aconteça, enviem-me mensagem FB para eu poder adicionar.


Um Abraço

Silvestre Félix