O dono de um dos poucos carros existentes na Abrunheira e o único existente no grupo, o Zé Silva – condutor exímio e de brincadeira fácil na linha da estrada, desenhando com frequência rasante gincanas e, na consulta repetida do dicionário que sempre trazia consigo, nunca conseguia encontrar a palavra “devagar” – era a nossa ordem de “soltura”. A lotação era de cinco incluindo o condutor, mas quase sempre, pela escuridão da noite a dentro, metidos naquela carrinha de cor verde-folha, a marca não interessa, lá andavam sempre seis, sete e às vezes mais.
O roteiro era vasto para a nossa capacidade de escolha e de carteira, mas, naquela zona temporal, era ainda Abril uma criança, o PREC tinha acabado de nascer e a URCA já na sala de partos e nós, rezando a todos os “santinhos” – que na altura eram muitos – para que não fosse preciso cesariana, com o “vinil” de intervenção a dominar o aparelho auditivo dos portugueses, numa justa desforra dos últimos anos da ditadura em que a intervenção já existia e muita, mas, o “vinil”, era a PIDE que dele tratava, vingando em “vara larga” o chamado “nacional cançonetismo” que o “lápis azul” deixava e acolhia como hino à pátria sagrada.
Naquela véspera de «manhã com cama por companheira», o nosso destino de curta distância mas mais comprida que a adega do Zé, foi a “Quinta do Recanto” em Mem Martins. O Restaurante Chaby estava em obras e, provisoriamente, instalou-se naquele sítio porreiro. Para tão grande escassez de viaturas motoras na nossa cintura que diziam industrial de Lisboa, a coisa não estava má, é que o parque de estacionamento debaixo daqueles altíssimos eucaliptos estava cheio e não fora a perícia do Zé Silva na arrumação à primeira, que lá teria a carrinha de cor verde-folha, a marca não interessa, que ficar do lado de fora do muro da quinta, encurtando a largura da rua que já era estreita.
A comitiva era composta por seis ou sete mancebos, de nome dado e inspeções feitas, com a farda militar como vestimenta num horizonte muito próximo. O tempo passado e em anos contado, é meu adversário quando se trata de nomes citar e, por isso, mancebo para cima e mancebo para baixo, fica muito bem. As excepções contam para os papéis principais da noite que, desses, os anos contados não me desmemorizaram. Revisão garantida com nomeação no texto se, depois de conferidas e dadas como certas outras memórias, garantirem sem falhas, uma a uma, a referência baptismal de todos os comensais. Temos orgulho na nossa terra que entre: Brasil e Capa Rota, Casal da Peça e Colónia e Caracol e Charneca, tem precisão de nomes de gente que se lhe encaixe, porque de velho já pouco tem e novo vai o “Curronquinho” (assim escrito à minha maneira porque, nunca vi, nem desta nem doutra em nenhum outro lugar), com as vivendas todas certinhas, pintadinhas e alinhadinhas.
O nosso amigo das mesas tomou, como prioridade, sentar-nos a jeito da comezaina porque decerto, era para isso que ali estávamos. Cadeiras ainda não ocupadas e pedidos listados. O churrasco se avistava e não tardou que o entrecosto e as febras por lá saltitassem, enquanto o tinto escorregava, como de mangueira ligada se tratasse. O pão saloio, o queijo curado e o fresco, não deixavam que a mastigação fosse interrompida, empreendendo uma corrida sem tréguas, contando com o cocktail ácido do estômago, a esta hora, faminto e ávido de matéria, para que a máquina digestiva engrenasse no trabalho que mais sabia fazer e que ia durar a noite toda.
A conversa corria e os decibéis aumentavam à medida que o vinho diminuía. Entrecosto e febras já eram e o tempo da sobremesa aí estava, e, ao mesmo tempo, lá fora batia que não era brincadeira. «Batem, batem, levemente… Será chuva? Será Gente? Gente não é certamente e a chuva não bate assim!» Foi do que me lembrei, mas era mesmo a chuva que batia, e muito, ainda por cima, o telhado tinha zonas de zinco. Então, estavam os mancebos olhando para a carta das sobremesas, como se conseguissem ler alguma coisa… só fingiam, porque o “trotil” tinha corrido muito. Continuavam a olhar para o papel e ninguém se apercebeu que o Rui Simplício se levantou – ainda hoje tenho sérias dúvidas como conseguiu – e, sorrateiramente, foi ao balcão. Virou-se ao contrário, ou seja, deu meia-volta arrastada, que de ordem unida ainda não tinha lições, e, os presuntos, a atirarem p’ra banda, (banda normal porque ainda não havia a larga) na nossa direção ficaram.
Naquela verticalidade se manteve, para dar azo à gargalhada que, a pouco e pouco se desprendia, ao mesmo tempo que do nosso ponto de observação, a mesa comensal, conseguimos perceber o que o mancebo de pé, como se pregado ao chão estivesse, tinha apoiado nas duas mãos abertas na horizontal e com as palmas viradas para cima: uma bandeja cheia de pudins enformados. A nossa expectativa era grande: Como ia aquele gajo resolver o problema? Ficava ou andava?
Não demorou muito a perceber. Começou a ensaiar uns curtos passos na nossa direção, as gargalhadas eram cada vez mais longas e barulhentas, conseguindo mobilizar a atenção de toda a clientela do Chaby e, quando estava já bem no meu da sala, a bandeja começa a bandear-se para um lado e para outro, cai o primeiro pudin, e numa reação sistémica ao riso do nosso parceiro de mesa, um cliente atrás do outro gargalha, e, no momento seguinte, estava o restaurante inteiro rir a “bandeiras despregadas”. A seguir cai outro pudin…e mais outro, outro…, outro… e, por fim, vira-se a bandeja com o resto dos pudins, e vira-se o Rui numa meia-caída de parafuso e colocado de joelhos, continuando numa gargalhada contínua sem se perceber onde a coisa ia parar.
Não fosse o tintol já acamadinho na trabalheira digestiva, e com o vapor alcoólico vagueando pelas artérias de acesso ao interior capilar de cada um, e, decerto, não teríamos encarado a diversão da mesma maneira. Continhas feitas e “jojo” na rua, lá regressamos à segurança brasiliana com passagem certa pelo Cabaço a caminho da adega do Zé, onde uma noitada de "King", mais uma vez nos esperava.
Silvestre Félix
Abrunheira, 7 de Fevereiro 2010