Ficam contadas em duas, as vezes que, depois de publicada esta no “Largo do Chafariz”, eu aqui falo da personagem mais inspiradora que nalgum tempo eu conheci na Abrunheira, que é uma Terra com História e cheia de Histórias.
Pois então aqui deito uma das prosas inspiradas no sapateiro e contador de cenas, cegadas, bailes, arraiais e outros que tais, de nome Joaquim mas dito e conhecido por: J’quim Cagachuva agarrado pelas leis do matrimónio à Margarida Cagachuva que de tudo o que se passava na Abrunheira e arredores sabia, como de profissão exercesse equiparada a uma boa repórter ou enviada especial nestes anos, em tempo contado vão onze do século vinte e um. Que de vocação pouca tenho, aqui lhe traço rimado o perfil: De namoricos e cornaduras/Era o jeito e especialidade/Mas de intrigas e benzeduras/E alguma dose de maldade/Se fazia de ternuras/Velha gaiteira daquela idade. À alcunha, não lhe conheço confirmação absoluta, mas com tão óbvia oralidade, e se bem usado o Português-Língua-Mãe-de-Camões, com ou sem acordo ortográfico que aqui não colhe, bem fácil fica adivinhar porque tal apelido lhe acrescentaram.
Sapateiro é Arte de quem faz ou arranja sapatos, de onde lhe pariu o nome, mas também botas, polainas, sandálias, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés. Agora, neste tempo de shopping’s e outros parecidos, já não sei se há Sapateiros e não há Arte ou se não há Sapateiros nem há Arte para fazer sapatos, botas, polainas, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés, porque Sapateiros que fazem chaves, carimbos e cartões de visita e dizem que concertam calçado, tudo ao mesmo tempo, não podem ser Artistas de Sapateiro.
O “J’quim Cagachuva” era universalmente conhecido. O “universalmente” está bem metido porque, quando era mais novo, este Artista ainda desgarrado e liberto da faladeira “Margarida Cagachuva”, andava de terra em terra porque naquele tempo não era o sapato ou bota que ia ter com o Artista Sapateiro, mas sim o Artista Sapateiro que ia ao encontro das botas, polainas, sapatos, chinelos, sandálias e outras coisas onde se metem os pés. É verdade, O Ti J’quim, mesmo coxeando da perna nascida desigual da outra, metia-se ao caminho desde o Linhó, que acho era onde tinha morada fixa em solteiro, e direitinho às Casas Grandes dos lavradores para aplicar a sua Arte no calçado dos patrões e dos trabalhadores. E então, lá ia o Ti J’quim pela Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Alcoitão, Bicesse , Amoreira, Manique de Baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira, etc, etc. Por todas estas andanças, muitas histórias foram acontecendo a este Contador de Cenas.
E das histórias gostava eu, que quando lá ia ter com ele, não me levava a preocupação de engraxar os sapatos. “Bom dia Ti J’quim, então como é que vai isso?? Vai bem…,” dizia ele e nunca se esquecia de… “Há por ai um cigarrito??” E então começava o ritual. Punha o cigarro nos lábios grossos e babados, pedia lume e, depois do cigarro aceso e daquela conversa em jeito de introdução, … vai chover… não vai chover…. Tá um calor dos diabos… tá bom pás batatas… tá bom pós nabos…., lá vinha, a propósito de um destes temas, lá vinha dizia eu, a invariável expressão; “’m’ocasião…” e pronto, estava dado o mote para mais uma história aí com 40 anos ou mais, e passada numa das Terras por onde o “Ti J’quim” andava; Alcoitão, Bicesse, Manique, etc, o local de ação era sempre a sociedade lá do sítio e a cena era de diversão, nunca de trabalho. A ocasião era o bailarico, e acabava em sessão de porrada e “jogo do pau” com história de mulher pelo meio.
As histórias eram intermináveis, porque este Artista Sapateiro e Contador de Cenas, fazia jus a esta última vertente, e, se fosse preciso, ligava uma à outra e nunca mais acabava, e o cigarro ardia, ardia… e o “Ti J’quim” contava, contava, até que o cigarro se apagava e ficava como se dali fizesse parte.
Ele, O Contador de Cenas e Histórias, porque tinha necessidade de falar recordando o tempo passado contado em anos que nem Ele muitas das vezes já sabia, e eu, porque as imaginava à minha maneira como se fossem de quadradinhos, e por ali ficava tempo passado em horas, porque quando ia lá visitar o “Ti J’quim” não me levava a preocupação de engraxar ou arranjar os sapatos.
A Abrunheira é uma Terra com história e estes são os seus personagens.
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(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)
Silvestre Félix
29 de Janeiro de 2011