quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ESTALAGEM DE MOBILIÁRIO BRANCO

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, a vida corre com sofrimento mas também com devoção e esperança.

O toque cadenciado dos monitores, um atrás do outro, embalam o sono engajado na dor e nas idas aos patamares alucinados. As imagens constantes, bem arrumadinhas em quadradinhos bem nítidos, com falas sugestionando o bem ou o mal. Quando bem, acende a ansiedade para entender duma forma racional, que mensagens os quadradinhos me transmitem. Quando mal, provocam um misto de raiva e medo e é manifesta a impotência para os retirar da zona abrangente do meu alucinogénico sono.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, os anjos não dormem. São eles ou elas, não importa, porque anjos não têm sexo, só têm bata branca. Não descansam e estão sempre cuidadores junto à cama. O gemido, o grito, o pedido, a negação. Os anjos não precisam de manual, sabem de cor os significados e nunca dormem. Religiosidade à parte, abençoados os anjos de bata branca que sempre lá estiveram.

No “modo” de observador, em fase mais consciente e pela experiência das várias estadias “na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda” a capacidade de interpretação do que vai acontecendo à minha volta, aumenta desmedidamente, e enfraquece a sensação de debilidade. Estou forte! E, na outra cama, o sofrimento é agudo. “Calma, é assim mesmo. Tem de acreditar e ter coragem” – Consigo passar a ideia mas duvido do efeito. A perturbação, o medo, o terror, não tem limite. Diz ele: “Não, não quero! Vão pôr no soro e eu fico a dormir e depois cortam-me… Não, não deixo, não quero!” A expressão facial e corporal não disfarça o pânico. As de bata branca, com aconchego carinhoso e palavras macias de psicologia simples de anjo sem sexo, controlam o desarranjo mental.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, perto da minha casa, moram anjos de bata branca sem sexo.

Silvestre Félix

SINTRA CULTURAL

Guia da atividade cultural do nosso Concelho, a Agenda cultural para Fevereiro de 2011, editada pela Câmara Municipal de Sintra, já está disponível nos locais habituais ou, online linkando PDF
Silvestre Félix
(Fonte: Site da CMS)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA – CAPÍTULO II – 2ª PARTE - DEPOIS DE 3 DE JANEIRO DE 1975

Sendo despachado para a Figueira da Foz, fico longe do que se iria passar na Abrunheira e na URCA, nos próximos tempos. Ainda por cima, Portugal entraria nestes dias num período muito conturbado que resultou só numa ida a casa, entre 3 de Março e 25 de Abril.

Oito dias depois estamos no célebre 11 de Março de 1975. A mim, maçarico com uma semana de farda, deram-me uma G3 e fui para um cruzamento algures na Figueira da Foz, revistar carros (a G3 estava descarregada). Comigo estavam outros nas mesmas circunstâncias. A minha unidade era afecta ao MFA, de maneira que o lema era "tudo pelo PREC". Os dias foram correndo na Figueira da Foz, até que nos vamos aproximando do primeiro aniversário do 25 de Abril e dia das primeiras eleições democráticas, eleição da Assembleia Constituinte. É claro que naquela época não havia telemóveis e mesmo os outros telefones não existiam em todo o lado, mas mais ou menos eu ia sabendo que as coisas na Abrunheira iam andando.

Salvo erro no dia 19 de Abril, quando no quartel já se faziam as escalas, para ver quem votava para as "Constituintes" no quartel e quem tinha que ir a casa votar, recebo correio da Abrunheira, do Zé Carmo Silva, com uma conversa completamente enigmática. Era um jogo para eu descobrir o que tinha acontecido ou ia acontecer em 18 de Abril (dia anterior). A solução do problema era exactamente a "Quinta do João da Batata". O pessoal tinha "ocupado" a quinta. Consegui telefonar e falar com a minha Mãe, que me disse, mais ou menos o que eu já sabia. Imaginem como eu fiquei. Sem poder participar, sem dar o meu contributo, e tanto que havia para fazer e eu com uma G3 na mão a aturar gente que nos obrigava a brincar aos cowboys.

Sorte a minha, a credencial necessária para votar na Figueira da Foz não tinha chegado e, por isso, tinha que ir a casa para votar no dia 25 de Abril. Ia poder estar com o meu pessoal. Vim ver e finalmente participar no acontecimento da semana; "A ocupação da Quinta". Participei no entusiasmo da quase totalidade da população da Abrunheira. Este dia 18 de Abril passou a ser comemorado como véspera do grande dia 25 de Abril.A partir daqui a história da URCA é outra, será a própria Abrunheira, pois tudo se vai passar aqui. Queríamos muito mais do que veio de fato a acontecer. O nosso grande objetivo era a criação dum Centro Social que incluísse, para além da URCA, pelo menos, infantário, apoio aos idosos, apoio escolar e uma extensão do Centro de Saúde. A este propósito, na altura da atribuição das ruas da Abrunheira, a uma das artérias que contorna a URCA, foi-lhe dado o nome de “Rua do Centro Social”.

Naquele fim-de-semana prolongado (25,26 e 27 de Abril), tive oportunidade de participar em todas essas discussões que perspetivavam um futuro de sucesso e de melhoria na qualidade de vida para a população da Abrunheira.

Ainda durante os dias que estive na Abrunheira, se iniciaram conversações com o proprietário, com a colaboração de algumas pessoas ligadas à comissão de moradores da altura e com o conhecimento da Câmara Municipal de Sintra. Pela parte que me toca, estou eternamente grato a essas pessoas mas, por razões óbvias, nunca usarei aqui os seus nomes.

Em resultado de todas as boas vontades, as coisas viriam a correr muito bem, tendo sido, mais tarde, assinado um protocolo entre o proprietário e a Câmara Municipal de Sintra em que, estabelecia uma fronteira entre a parte de terreno a utilizar pela URCA, e a parte que continuava na posse do anterior dono. A nossa parte passou para a posse da Câmara com o fim de ser utilizado pelo Centro Social da Abrunheira.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
1 de Fevereiro de 2011

sábado, 29 de janeiro de 2011

O CONTADOR DE CENAS

Ficam contadas em duas, as vezes que, depois de publicada esta no “Largo do Chafariz”, eu aqui falo da personagem mais inspiradora que nalgum tempo eu conheci na Abrunheira, que é uma Terra com História e cheia de Histórias.

Pois então aqui deito uma das prosas inspiradas no sapateiro e contador de cenas, cegadas, bailes, arraiais e outros que tais, de nome Joaquim mas dito e conhecido por: J’quim Cagachuva agarrado pelas leis do matrimónio à Margarida Cagachuva que de tudo o que se passava na Abrunheira e arredores sabia, como de profissão exercesse equiparada a uma boa repórter ou enviada especial nestes anos, em tempo contado vão onze do século vinte e um. Que de vocação pouca tenho, aqui lhe traço rimado o perfil: De namoricos e cornaduras/Era o jeito e especialidade/Mas de intrigas e benzeduras/E alguma dose de maldade/Se fazia de ternuras/Velha gaiteira daquela idade. À alcunha, não lhe conheço confirmação absoluta, mas com tão óbvia oralidade, e se bem usado o Português-Língua-Mãe-de-Camões, com ou sem acordo ortográfico que aqui não colhe, bem fácil fica adivinhar porque tal apelido lhe acrescentaram.

Sapateiro é Arte de quem faz ou arranja sapatos, de onde lhe pariu o nome, mas também botas, polainas, sandálias, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés. Agora, neste tempo de shopping’s e outros parecidos, já não sei se há Sapateiros e não há Arte ou se não há Sapateiros nem há Arte para fazer sapatos, botas, polainas, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés, porque Sapateiros que fazem chaves, carimbos e cartões de visita e dizem que concertam calçado, tudo ao mesmo tempo, não podem ser Artistas de Sapateiro.

O “J’quim Cagachuva” era universalmente conhecido. O “universalmente” está bem metido porque, quando era mais novo, este Artista ainda desgarrado e liberto da faladeira “Margarida Cagachuva”, andava de terra em terra porque naquele tempo não era o sapato ou bota que ia ter com o Artista Sapateiro, mas sim o Artista Sapateiro que ia ao encontro das botas, polainas, sapatos, chinelos, sandálias e outras coisas onde se metem os pés. É verdade, O Ti J’quim, mesmo coxeando da perna nascida desigual da outra, metia-se ao caminho desde o Linhó, que acho era onde tinha morada fixa em solteiro, e direitinho às Casas Grandes dos lavradores para aplicar a sua Arte no calçado dos patrões e dos trabalhadores. E então, lá ia o Ti J’quim pela Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Alcoitão, Bicesse , Amoreira, Manique de Baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira, etc, etc. Por todas estas andanças, muitas histórias foram acontecendo a este Contador de Cenas.

E das histórias gostava eu, que quando lá ia ter com ele, não me levava a preocupação de engraxar os sapatos. “Bom dia Ti J’quim, então como é que vai isso?? Vai bem…,” dizia ele e nunca se esquecia de… “Há por ai um cigarrito??” E então começava o ritual. Punha o cigarro nos lábios grossos e babados, pedia lume e, depois do cigarro aceso e daquela conversa em jeito de introdução, … vai chover… não vai chover…. Tá um calor dos diabos… tá bom pás batatas… tá bom pós nabos…., lá vinha, a propósito de um destes temas, lá vinha dizia eu, a invariável expressão; “’m’ocasião…” e pronto, estava dado o mote para mais uma história aí com 40 anos ou mais, e passada numa das Terras por onde o “Ti J’quim” andava; Alcoitão, Bicesse, Manique, etc, o local de ação era sempre a sociedade lá do sítio e a cena era de diversão, nunca de trabalho. A ocasião era o bailarico, e acabava em sessão de porrada e “jogo do pau” com história de mulher pelo meio.

As histórias eram intermináveis, porque este Artista Sapateiro e Contador de Cenas, fazia jus a esta última vertente, e, se fosse preciso, ligava uma à outra e nunca mais acabava, e o cigarro ardia, ardia… e o “Ti J’quim” contava, contava, até que o cigarro se apagava e ficava como se dali fizesse parte.

Ele, O Contador de Cenas e Histórias, porque tinha necessidade de falar recordando o tempo passado contado em anos que nem Ele muitas das vezes já sabia, e eu, porque as imaginava à minha maneira como se fossem de quadradinhos, e por ali ficava tempo passado em horas, porque quando ia lá visitar o “Ti J’quim” não me levava a preocupação de engraxar ou arranjar os sapatos.

A Abrunheira é uma Terra com história e estes são os seus personagens.
«««««»»»»»

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
29 de Janeiro de 2011

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

DE VOLTA A CASA

Bom da cabeça não pode estar quem – com todas as atrativas alternativas deste mundo e de falta de publicidade ninguém se queixa, antes pelo contrário – não aceita a oferta nacional, muito perto de casa, de alojamento para seis noites em regime de pensão completa, a preço de saldo em última rebaixa mas de muito boa qualidade, incluindo programa variado com calendário previamente estabelecido de aventuras e desventuras: passeios por corredores infindáveis de luz branca mas daquela mesmo muito branca, workshops sobre o comportamento humano em generosidade e na capacidade de sofrimento, experiências inimitáveis de sonos acompanhados com os sons dos mais originais que há – só possíveis em unidades deste tipo – com sequências de triliões de imagens devidamente compactadas e catalogadas incomparavelmente mais eficazes do que qualquer PS, provas de compostos e complementos alimentares na forma líquida e sólida de eficácia amplamente comprovada, utilização de SPA em regime privativo nos banhos e noutras aplicações com o acompanhamento permanente dos mais qualificados profissionais.

Com a oferta descrita, não perdi tempo e lá fui o mais depressa que pude, faz precisamente hoje, oito dias. Estou de regresso aos meus, à minha casa e, principalmente, à minha cama.

Aconteceu sempre, e penso que o mesmo sucede com a maioria das pessoas, que ao longo da vida nas ausências em trabalho, às vezes prolongadas, estabelecia uma espetativa da receção quando a casa voltava. É claro que também tinha que contribuir para isso, por exemplo: A prendinha ou recordação que se trazia deste ou daquele sítio, deste ou daquele aeroporto, e a duração da viagem.

Desta vez, também quis fazer da mesma maneira.

Na passada Sexta-Feira, lá pelo final do dia, depois de uma viagem de corredor com ida e volta, em que as florescentes do teto tomam maior velocidade que nós e em que fica sempre de fora, entre a partida e a chegada, determinado tempo contado em horas, belisquei-me nalguns sítios, abri bem os olhos, tentei salivar e senti uma das ferramentas da aventura bem enfiada pela goela abaixo. Conforme o manual de instruções, é nessa altura que se confirma o sucesso da primeira aventura.

Então, superada esta primeira, outras se seguirão e, na volta a casa, quando a porta se abrir, quem vai estar lá para me receber? A Isabel e a Sofia estiveram comigo todos os dias, Bruno alguns, mas já não mora lá. Já não pode ser igual. Os putos cresceram e não vou chegar sozinho e mesmo que o quisesse não era possível. Os programas, essencialmente físicos, condicionam uma boa percentagem da mobilidade. O único personagem da história que permaneceu sempre em casa e, pelo que me contaram, demonstrou desagrado todos os dias pela minha ausência, foi o Sunny Cat. Esse mesmo! É a ele que vou exigir o cumprimento do protocolo de receção. É inflexível nos seus quereres e agora chegou a sua vez. Assim foi, entrei em casa e, mal deu pela minha presença e sem lhe dizer nada, manifestou logo a sua satisfação com uma miadela adequada à circunstância, e roçadelas infindáveis pelas pernas, entremeadas de mios e lambidelas mas mãos a que correspondi com a mesma emoção. Só não pude aceitar aos pedidos constantes de brincadeira que, prometo, serão devidamente compensados a seu tempo.

Aqui estou, enriquecido, não na conta bancária, mas em experiência e saber, com o coração a transbordar de gratidão pela forma como todos os profissionais me acompanharam nesta estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda.
Muito Obrigado

Silvestre Félix
27 de Janeiro de 2011
Tags: Hospital Fernando da Fonseca

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A PROPÓSITO DA FUNDAÇÃO DA URCA

A propósito da Fundação da URCA, o José Carmo Silva, destacado elemento dos que, ativamente, criaram condições para o nascimento da URCA e que viria a ser o seu primeiro Presidente de Direção, fez-me chegar um texto que enquadra, acima de tudo, o sentimento de solidariedade comunitária dos jovens da época. É verdade que víamos para além das competências da URCA. A ideia do Centro Social, que era um objetivo concretizável na altura, é a maior prova disso.

“Um aspecto curioso que suportou a formação da URCA, mostra-nos como um conjunto diverso de pequenos "nadas" podem levar à criação de algo que tem perdurado ao longo de todos estes anos.A história da URCA assenta na junção de grupos de jovens, que acabavam por conviver em separado, com visões distintas mas que, talvez de modo inconsciente, partilhavam a necessidade de construir algo que pudesse servir, não só o grupo onde conviviam, mas uma comunidade mais alargada.
Existia por um lado a experiência do Grupo Desportivo, por outro o associativismo já pós 25 de Abril dos mais jovens, ainda grupos mais "maduros" que de vez em quando organizavam os tradicionais bailaricos, e pelo meio as experiências mais ou menos culturais que remontam ao grupo do Algueirão, JURA, (Juventude Unida e Recreativa do Algueirão - cujo padre da paróquia comparou com H2SO4) com antecedentes a 1973 (ou mesmo antes).Jovens em separado, ideais diferentes, mas a necessidade de fazer algo mais grandioso.
Talvez um bom exemplo de "O todo é maior que a soma das partes" e também menor, acrescento eu, por obrigar a alguma perda de individualidade a favor de um objectivo mais abrangente.É esta humildade e grandeza que permitiu cultivar a persistência, permitindo ultrapassar os desafios que necessariamente teriam de surgir.
[José Carmo Silva]”

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA – CAPÍTULO II – 1ª PARTE - DEPOIS DE 3 DE JANEIRO DE 1975

A Assembleia de Fundação em 3 de Janeiro de 1975 foi bastante concorrida. Presentes, vários membros do antigo Grupo Desportivo todos mais velhos do que nós. Eram, digamos, os irmãos mais velhos. Lembro-me, por exemplo, do António Nascimento e do Francisco Cruz. Estavam mais, mas não consigo recordar-me dos nomes.

Este foi um dia importante para a história contemporânea da Abrunheira, e, por isso, devia ser assinalado com alguma dignidade. Durante muitos anos a data foi comemorada como merecia, mas depois, a negligência e o descuido (pelo menos) foram tomando conta de algumas agendas e, com alívio de alguns, perdeu-se o hábito. Para quem não conhece a época e as circunstâncias, é importante que se saiba que o Sócio da URCA, ou melhor, a Sócia registada naquele dia com o número um, foi a Cristina Peniche. Tinha 14 anos, e a seguir era uma escadinha até aos 20, que era eu que os tinha.

Neste início de 1975, o País vivia um trajeto revolucionário, com mudanças todos os dias e que depressa chegaria ao "verão quente" de 75, ponto alto do PREC (Processo Revolucionário Em Curso).Com o aparecimento de muitos partidos políticos, a sua influência crescente na sociedade emergente e, naturalmente, em cada um de nós, começou a não ser fácil aguentar a unidade, “marca d'água” do nosso caminho até aquela altura. Continuo a pensar, que aquele núcleo duro inicial, conseguiu manter a mesma dinâmica, porque se adaptou bem à nova situação e garantiu uma prática democrática muito abrangente do ponto de vista partidário. Conseguimos permanecer unidos, resistindo a todas as tentativas hegemónicas, muito embora as conhecidas e confirmadas ligações partidárias de alguns de nós.

Entretanto aproximava-se o Carnaval, altura de brincadeiras e passeios de mascarados e realização de bailarico na “sociedade”. Naquele ano de 1975, o pessoal da URCA pensou, projetou e apresentou, um programa mais elaborado que, para além de baile num dos dias, incluía, noutro dia, a apresentação em palco, de vários “quadros” de comédia ensaiados e representados pela “prata da casa”. O nosso problema era sempre o mesmo – local para fazermos isto. Já antes, tínhamos tido a colaboração do Sr Saraiva que nos disponibilizou um anexo da serração para fazermos um baile. Para o Carnaval fomos novamente falar com ele e o Senhor, com toda a boa vontade do mundo, ofereceu-nos um armazém ao lado da sua casa. Era o ideal, ficamos todos contentes mas estava cheio de madeira para ser retirada e, depois da festa, para voltar a pôr no mesmo sítio.

O Carnaval de 1975, primeira realização a sério da URCA, foi um grande sucesso. A população da Abrunheira participou em massa e isso deu-nos muita força para continuarmos. No entanto, era cada vez mais sentida a falta de instalações, não só para sede, mas principalmente, para se desenvolver uma actividade cultural e recreativa continuada e devidamente programada.
O País estava a mudar e nós não queríamos ficar para trás. Um pouco por todo o lado, tomava forma uma onda que viria a tornar-se imparável – tantas vezes levada ao exagero - que era, a ocupação de todo o imóvel que se encontrasse comprovadamente ao abandono. Como é natural, o fato de abordarmos a temática e de falarmos de alguns locais que poderiam servir para desenvolvermos os nossos projetos, levou a que a nossa indestrutível unidade até aí, sofresse algum abalo. Claro que era um assunto polémico e muitos de nós achavam que não deveríamos ir por aí. Como se veio a verificar, a unidade resistiu e, nos meses seguintes, iria tornar-se ainda mais forte.

Entretanto, chegamos a 3 de Março daquele ano do PREC. Era Segunda-Feira, apanhei o comboio da linha do Oeste de manhã cedo no Cacém, e lá fui até à Figueira da Foz “assentar-praça” no exército deste País. Tinha o estômago às voltas, não só pela obrigação de ir para a tropa, mas também porque na véspera, a festa da minha despedida na adega do Pai do Zé Carmo Silva, tinha sido de arromba e com muito álcool.

(Continua)
(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix