Naquela época, a profissão – substantivo quase desconhecido ao tempo usando-se na fala a designação de arte ou ofício – servia de “apelido” ao chefe de família e, por sua vez, aos filhos e enteados. Era assim que os Abrunhenses se referiam entre si, sendo hábito tão entranhado que, muitas vezes, os descendentes assumiam outros ofícios tão ou mais dignos e destacadas que os dos progenitores mas nem por isso mudavam de alcunha. Só era lícito acontecer um novo apelido condizente com a nova arte quando, por abençoado casamento, fosse constituída nova família com morada fora da Abrunheira.
Também havia outras formas de identificar os Abrunhenses com nomes mais comuns, acrescentando-lhe o nome da Mãe, do Pai, da mulher ou do marido, por exemplo: “Zé ou João da Natália” (sendo Natália Mãe) e “Ti Maria do Florindo” (sendo Florindo marido). Ainda um outro acrescento ao nome para lhe dar diferença de outros, por exemplo: Silvestre “Velho” (sendo o mais velho, Pai ou Avô).
Desde esse tempo passado e contado em anos, lembro-me de um “Zé”, “Manel”, “Chico”, António ou mais uma dúzia de nomes, seguido de: Sapateiro, Padeiro, Serralheiro, Carpinteiro, Pedreiro, Calceteiro, electricista, leiteiro, peixeiro, etc, etc.
Muito quero contrariar esta tendência de acrescentar ao já muito comprido mas, palavras são como as cerejas que eu lhas gosto, e, por isso, nunca consigo deixar de teclar no ponto previsto, largando-me à vontade dos dedos que não param de andarilhar dum lado para o outro. Na Abrunheira nasci, cresci e fiquei homem, sem nunca ter cumprido em mínimo, as introduções ou os prefácios. Assim sendo, vamos lá às lembranças que se faz tarde e porque o leitor baralhado fica, se não lhe disser rapidamente sobre que Abrunhense hoje prosarei.
Vamos lá. Muito ligado a este costume de chamar pela forma de labuta, levada todos os dias, porque ainda hoje é difícil arranjar outras maneiras honestas de trazer dinheiro suficiente para pôr comidinha na mesa, está também o abreviado do “apelido”, no caso quero destacar como se chamava “peixeira (o)”. Assim, a primeira sílaba ficava só com “pi” e o “i” muito sumido, em vez de “pei”, logo, em vez de “Peixeira” seria “Pixeira” e quase “P’xeira”.
Vem isto a propósito, não do novo acordo ortográfico, mas da nossa querida Ti Aurélia “P’xeira”. Com morada no primeiro andar da mesma casa onde vivia o Manel da Colónia, entrando pelas escadas exteriores nas traseiras. Daí saía, todos os dias de peixe fresco, sempre com a sua Filha Lucinda ou Lucília na fralda do seu avental, empurrando o carrinho de madeira e rodas de bicicleta e travessão, caminhando pelas poucas ruas da Abrunheira daquele tempo, vendendo os seus chicharros, pescadinhas de rabo na boca, J’aquinzinhos, sardinha, chocos, fanecas, cachuchos e outros sempre fresquinhos que todas as noites viajavam da Lota de Cascais trazidos pelo Ti João Pinto, para nós Ti João “P’xeiro” e seus Filhos João, Eurico ou Jaime.
A Ti Aurélia P’xeira, que só de boa gente falo eu, era uma jóia de pessoa como dizia a minha Mãe. Era das pessoas que a minha Mãe gostava muito. Desde essa juventude na idade que lá ficou, que tinha muita simpatia por esta Ti Aurélia que todos conheciam por “P’xeira”.
O Ti João, tinha aqui na Abrunheira a sua morada e entreposto, mas vendia em Mem Martins. Todos os dias, com o seu inseparável cigarro e bigodinho à maneira, lá ia na motoreta e atrelado com o seu peixinho fresco para Mem Martins.
Nestes dias de “marca-crise” económica, financeira e também de valores, não podemos comer peixe fresco da Lota de Cascais porque, como outras coisas, acabou. Há 20 ou 25 anos atrás, tivemos políticos que acharam ser melhor para nós, e também para os Abrunhenses, receber dinheiro da antiga CEE para deixar de cultivar, de pescar, de transformar metais, de fazer comboios, de reparar grandes petroleiros, de construir navios, bacalhoeiros e barcos de pesca, etc., etc..
Pois bem, há 25 anos, o peixe que a Ti Aurélia P’xeira vendia na Abrunheira, era pescado por pescadores portugueses com barcos construídos nos nossos estaleiros e revendido na Lota de Cascais todos os dias normais de trabalho. O peixe era fresco e de boa qualidade. Em todos os portos de pesca era assim. Hoje, o peixe consumido na nossa Abrunheira e em todas as outras Terras pelo País fora, é quase todo importado do estrangeiro, pesa muito no deficit da balança de pagamentos é menos fresco e, muitas vezes de qualidade duvidosa.
Já há alguns modernos dicionários onde não consta o substantivo “peixeira (o)”.
Dos Abrunhenses se fez e faz a nossa história. A Ti Aurélia P’xeira lá tem o seu lugar de destaque.
Silvestre Félix
27 de Abril de 2011
(Extraído dos textos "Abrunheira, Terra com História" de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue "Aldeia Viva" durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)