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sábado, 29 de janeiro de 2011

O CONTADOR DE CENAS

Ficam contadas em duas, as vezes que, depois de publicada esta no “Largo do Chafariz”, eu aqui falo da personagem mais inspiradora que nalgum tempo eu conheci na Abrunheira, que é uma Terra com História e cheia de Histórias.

Pois então aqui deito uma das prosas inspiradas no sapateiro e contador de cenas, cegadas, bailes, arraiais e outros que tais, de nome Joaquim mas dito e conhecido por: J’quim Cagachuva agarrado pelas leis do matrimónio à Margarida Cagachuva que de tudo o que se passava na Abrunheira e arredores sabia, como de profissão exercesse equiparada a uma boa repórter ou enviada especial nestes anos, em tempo contado vão onze do século vinte e um. Que de vocação pouca tenho, aqui lhe traço rimado o perfil: De namoricos e cornaduras/Era o jeito e especialidade/Mas de intrigas e benzeduras/E alguma dose de maldade/Se fazia de ternuras/Velha gaiteira daquela idade. À alcunha, não lhe conheço confirmação absoluta, mas com tão óbvia oralidade, e se bem usado o Português-Língua-Mãe-de-Camões, com ou sem acordo ortográfico que aqui não colhe, bem fácil fica adivinhar porque tal apelido lhe acrescentaram.

Sapateiro é Arte de quem faz ou arranja sapatos, de onde lhe pariu o nome, mas também botas, polainas, sandálias, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés. Agora, neste tempo de shopping’s e outros parecidos, já não sei se há Sapateiros e não há Arte ou se não há Sapateiros nem há Arte para fazer sapatos, botas, polainas, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés, porque Sapateiros que fazem chaves, carimbos e cartões de visita e dizem que concertam calçado, tudo ao mesmo tempo, não podem ser Artistas de Sapateiro.

O “J’quim Cagachuva” era universalmente conhecido. O “universalmente” está bem metido porque, quando era mais novo, este Artista ainda desgarrado e liberto da faladeira “Margarida Cagachuva”, andava de terra em terra porque naquele tempo não era o sapato ou bota que ia ter com o Artista Sapateiro, mas sim o Artista Sapateiro que ia ao encontro das botas, polainas, sapatos, chinelos, sandálias e outras coisas onde se metem os pés. É verdade, O Ti J’quim, mesmo coxeando da perna nascida desigual da outra, metia-se ao caminho desde o Linhó, que acho era onde tinha morada fixa em solteiro, e direitinho às Casas Grandes dos lavradores para aplicar a sua Arte no calçado dos patrões e dos trabalhadores. E então, lá ia o Ti J’quim pela Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Alcoitão, Bicesse , Amoreira, Manique de Baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira, etc, etc. Por todas estas andanças, muitas histórias foram acontecendo a este Contador de Cenas.

E das histórias gostava eu, que quando lá ia ter com ele, não me levava a preocupação de engraxar os sapatos. “Bom dia Ti J’quim, então como é que vai isso?? Vai bem…,” dizia ele e nunca se esquecia de… “Há por ai um cigarrito??” E então começava o ritual. Punha o cigarro nos lábios grossos e babados, pedia lume e, depois do cigarro aceso e daquela conversa em jeito de introdução, … vai chover… não vai chover…. Tá um calor dos diabos… tá bom pás batatas… tá bom pós nabos…., lá vinha, a propósito de um destes temas, lá vinha dizia eu, a invariável expressão; “’m’ocasião…” e pronto, estava dado o mote para mais uma história aí com 40 anos ou mais, e passada numa das Terras por onde o “Ti J’quim” andava; Alcoitão, Bicesse, Manique, etc, o local de ação era sempre a sociedade lá do sítio e a cena era de diversão, nunca de trabalho. A ocasião era o bailarico, e acabava em sessão de porrada e “jogo do pau” com história de mulher pelo meio.

As histórias eram intermináveis, porque este Artista Sapateiro e Contador de Cenas, fazia jus a esta última vertente, e, se fosse preciso, ligava uma à outra e nunca mais acabava, e o cigarro ardia, ardia… e o “Ti J’quim” contava, contava, até que o cigarro se apagava e ficava como se dali fizesse parte.

Ele, O Contador de Cenas e Histórias, porque tinha necessidade de falar recordando o tempo passado contado em anos que nem Ele muitas das vezes já sabia, e eu, porque as imaginava à minha maneira como se fossem de quadradinhos, e por ali ficava tempo passado em horas, porque quando ia lá visitar o “Ti J’quim” não me levava a preocupação de engraxar ou arranjar os sapatos.

A Abrunheira é uma Terra com história e estes são os seus personagens.
«««««»»»»»

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
29 de Janeiro de 2011

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

OS CAMINHOS

Vai um cigarrito Ti “Joquim” ?
Vai vai, e já agora, dá lá um bocadinho do teu lume.
Diz-me cá, será que ele caiu da cadeira sozinho, ou alguém deu uma ajudinha? É que “um’ocasião” ….
Oh “Ti Joquim”, eu não sei, mas duma maneira ou doutra, o certo é que caiu, já passou um mês e o homem não voltou à outra cadeira de S. Bento e, pelo que parece, nunca mais lá vai voltar. No próximo dia 27 deste mês de Setembro de1968, três meses de tempo depois do Maio de 68 de França, e seis anos e quatro meses antes da revolução dos cravos, o Salazar vai ser substituído pelo Professor Marcelo Caetano, e começará aquilo que se vai chamar “a primavera marcelista”.

“Om’essa”?! Bem sei que estamos a falar do que vai acontecer no futuro, mas como é que tu sabes desses pormenores todos?
Se é o “botas” que manda, como é que vai substituir-se a ele próprio?
Vai daí, ainda me vais dizer que a Abrunheira vai ficar cercada de estradas novas, grandes prédios com lojas lá dentro, automóveis por tudo quanto é sítio e que têm que dar a volta aqueles jardins redondos que vão plantar por todo o lado, que o João de Leião vai casar outra vez, que o rio das sesmarias vai deixar de ser limpo, que as enguias vão desaparecer, que o pomar que o teu Pai leva, vai ser arrancado pela raiz e “era uma vez” aqueles saborosos pêssegos-rosa, que os fornos de cal vão ser deitados abaixo, que o carrascal vai ficar cheio de casas, que as pedreiras do Ti Miguel vão ser tapadas, que o Chico da Beloura vai ter que ir à vida com o rebanho, que da Beloura só irão falar os mânfios da “massa”, que na Lavi, nos eucaliptos e na Charneca vão ficar grandes lojas e armazéns para toda a gente comprar tudo e mais alguma coisa, que nunca mais vai vir a debulhadora à Abrunheira, que vai deixar de se ouvir os grilos e as cigarras a cantar… e por aí fora!

Oh Ti “Joquim”, é isso mesmo, tudo o que está a dizer vai acontecer e muito mais coisas, e os pormenores sei-os todos.

É verdade Ti “Joquim”, o tempo vai correr muito depressa e, falando em estradas, a preta para Lisboa vai passar a chamar-se IC 19 e vai afunilar-se de carros todos os dias, da frente da Adreta dos Plásticos, vai sair outra que lhe vão chamar variante a passar por cima do campo da bola de Albarraque, rasgando a quinta da Boa Esperança e por cima do chafariz e das hortas, sempre a correr, a correr até à entrada da Tabaqueira na esguelha do Casal de Varge Mondar que depois já não é Casal porque no sentido das costas de Albarraque vão aparecer muitas moradias e muitos prédios altos. Ao cimo da “Charneca” e do chafariz da D. Maria II e antes de Ranholas do Pocinhas, para o lado de Mafra por Pero Pinheiro, seguirá o IC 30 e, virando á direita, ao lado da reta da Granja do Marquês em direção a Belas o A16, e para o outro lado em direção a Alcabideche, será também o A16 com casinhas para cobrar bilhetes e, sempre a direito sem cruzamentos, abaixo da Quinta do “Anjinho”, da Colónia, pelos “Celões”, que nessa altura será a Beloura, e até ao pé do Quartel de Alcabideche que já era e que depois é o Hospital de Cascais.

Eu sei que aquele tempo que tu contas em anos, vai correr depressa e muito mais que eu com esta perna mais curta, mas diz-me lá outra coisa;
Com essas “pretas” todas, como é que se vai andar por esses caminhos acima?
Como é que eu vou até ao Linhó?
Como vou por Ranholas para seguir a Sintra à “ajuntadeira”?
Vão cortar os caminhos ou vão passar por cima?

Pois é Ti “Joquim”, por essa altura, os “passarões” que estão no poder, vão ligar muito pouco ou nada a esses caminhos por aí acima, e pelo que já descobri, o caminho de Ranholas, que se vai chamar rua da Abrunheira por aí acima, vai ficar cortado pelo tal A16.

O quê? Não pode ser! Então como é os Abrunhenses vão para Ranholas e para o mercado? “um’ocasião”…

Ti “Joquim”, não há dúvida, que mesmo daqui a quarenta e tal anos contados em tempo duro de roer, os caminhos públicos por aí acima utilizados pelas populações, devem ser mantidos ou, se em consequência de novas urbanizações for necessário alguma mudança, os acessos e serventias devem ser garantidos, por isso, os do poder, devem preocupar-se em salvaguardar os interesses de quem os elege.

Quarenta e tal anos depois, no final deste 2010, se por maldade, o Ti Joaquim (Cagachuva), viesse cá, decerto ficaria indignado com muita coisa. O Ti Joaquim era um dos sapateiros da Abrunheira e um contador de histórias dos melhores. Passava muitas horas a ouvi-lo!

Silvestre Félix

(Texto corrigido do inicial publicado no desaparecido Blogue “Aldeia Viva” em 8 de Setembro de 2008)