domingo, 13 de outubro de 2019

BALTAZAR, O AUTORITÁRIO



Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”, obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado, “Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
BALTAZAR, O AUTORITÁRIO (gravura do google)

E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas aos abrunhenses, aqui evocados!

O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses, era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar, representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em duas ou três voltas, no ataque.  

O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho, encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que nem um perdido.

O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter que levar com o “cornudo” Baltazar.

Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”, (durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a caminhada para casa.

Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”, tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência, no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”. Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três tinto para O Carlos que não era “Fadista”. 

Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.

Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar, ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”, trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o chão com as quatro patas.    

Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.

Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos” se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.

À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”. Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê, nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!

Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado” para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário, resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.

— Baltazaaaaaar!!!

Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”, sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura” da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”, tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas” e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava naquele instante.

Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.

O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos” para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista” e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas e ia embora.
………………………………………….

Meio-século depois, a discriminação social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância, por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma dessas vítimas.

Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio)
O nosso Chafariz, obra da autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu — Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e, especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande abraço!

Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

PELAS ESTRADAS DE SINTRA, FUI


Pelas "Estradas" de Sintra, fui, como outras tantas vezes. "Mistérios", que procuro, nada!  

Mas, muitas evidências! 

As gruas e guindastes na paisagem de Sintra (Foto minha)
As "Escadinhas", viraram "escadonas". Muito mais me custam a subir, do que quando as subia com a minha Mãe. Pareciam muito compridas, embora de subida fácil, mas agora… mesmo assim, já voltei a conseguir subi-las, ultrapassada que está, aquela longa travessia do… dilatado perímetro abdominal.   

Nas “Escadinhas”, descendo, não muito longe do princípio, à direita, nunca se esquecia de me dizer; “foi ali, naquela casa, que a Mãe nasceu”. Agora… olho, olho e não sei qual delas, é!

Elas, as “Escadinhas”, eram do hospital, mas agora… porque virou “monstro sagrado” (a capela) ao abandono ou, pelo menos, vazio de tudo o que foi e deu… sim, deu vidas pela cura e pelo nascimento, porque muitos também viram a primeira luz deste mundo, dentro daquelas paredes.

A descê-las e quando se chega cá abaixo, se virarmos à esquerda e continuarmos a subir a ladeira, temos logo ali “à mão de semear”, o que foi mercado de muitas vendas. Com a minha Mãe, lá fui duas ou três vezes. Uma ou outra vendedeira, das mais velhas, ainda conheciam a Augusta dos “Ferras”. Fechando os olhos e com a mão em concha por detrás da orelha, ainda se podiam imaginar os pregões. E a minha Mãe sabia o das Camélias e das Hortênsias.

Agora, o mercado, em boa hora aproveitado porque de abandono sofreu, passou a ser, “Museu de História Natural” com o decisivo contributo do escritor Miguel Barbosa que, valorizando a sua tendência paleontológica, lá colocou a sua valiosa coleção. Soube ontem que faleceu nestes dias. Que descanse em paz. Do Miguel Barbosa conheço bem a “vagabundagem” do “Palheiro”, escrito por ele. No GITU-Grupo de Intervenção Teatral da URCA (Abrunheira), pelos idos de 1979/80, dei voz ao descrente e revolucionário, “Segundo Vagabundo”. O “Grande” Gil Matias nos ensinou e encenou para estrearmos no, ainda novíssimo, pavilhão da URCA, e, depois do sucesso, por aí andamos Concelho de Sintra afora.   

Nesses anos, a Abrunheira e os abrunhenses ou abrunheirenses, tinham sede de cultura, e agora têm sede de quê?

Voltando aos “mistérios”, aliás, evidências de Sintra e indo pela direita, no “Rio”, que também já era “do-Porto”, na ponta de água que a minha Mãe também usou, cruza-se a entrada para o “paradeiro-caça-níqueis” dos motorizados que, muito pertinho ficam do nosso “Palácio”.    

Começando a subir à direita em direção à Câmara, está um pequeno edifício de arquitetura atraente, mas muito mal-amado; era o “Dispensário”. Agora, porque os “tempos” estão “avariados”, o “Dispensário” da assistência aos tuberculosos, foi dispensado das tarefas que lhe estavam destinadas e permanece de janelas e portas entijoladas.

A meio da rampa, também do lado direito, se calçavam as “parelhas”. Era o ferreiro que ainda “bem-me-lembro”, de, por lá, o ver e ouvir aquele timmm! timmm! do martelo dando na bigorna moldando a ferradura que, em brasa ficava, depois de acamada na forja bem quente pelo “ventoso” fole. Por lá, sempre estavam parelhas aguardando “sapatolas” novas.

Os Toc! Toc! dos mesmos cavalos “ferrados” no “Rio-do-Porto”, puxando as charretes que pelo tempo do Eça andavam e passavam, viraram Tuck! Tuck’s! de barulheira infernal e cheirete a petróleo.

Os passeantes, bem vestidinhos e cheirosos a perfumes carotes, viraram turistas dos quatro, cinco ou seis cantos do mundo, de pouca vestimenta e simples, despejados aos milhares dos comboios da CP, ou dos autocarros que enchem todas as ruas e passeios do lado de cá da Serra, ou seja, do lado contrário de onde foram promovidos e feitos, grandes parques de estacionamento.   

Muitas vezes entrei, com a minha Mãe, na mercearia que havia na Alfredo da Costa, a chegar à Câmara, praticamente em frente à escola Conde Ferreira, agora Espaço do Cidadão que, salvo erro e eventual esquecimento, se chamava “Barata”. Na ida para a Serra, a minha Mãe comprava lá, para levar, um cartucho de café. Não sei a quantidade, mas era um cartucho, daqueles cinzentos às riscas encarnadas e que se fechavam em cima fazendo uma ou duas dobras e, depois, puxando e dobrando dos dois lados para o meio as duas pontas, como se fossem duas orelhas. Agora, são esplanadas até quase aos frangos.

Na mesma rua, no sentido da Estefânia, a sapataria Teixeira, mais ou menos a meio. Eram caros os sapatos. Para nós, quando os houve, só na Bramonte de São Pedro apontado no livrinho das cobranças a prestações. Veio-me à lembrança, por causa da Bramonte, o falecido Zé Carvalho com quem convivi bastante, com gosto, na Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim que, também já era, e que muito pouca vontade política existe, para que volte a ser. Foi nos mandatos do Conde de Saborosa e do João Alberto Peniche.

Lá mais para a frente, na Alameda dos Heróis da Grande Guerra que para os sintrenses sempre será “a correnteza”, conseguimos vislumbrar dos mais bonitos panoramas da “Vila de Sintra”. Como em outras circunstâncias, também aqui borraram o bonito “quadro” com salpicos de grandes gruas e guindastes que desfeiam, e de que maneira, toda a paisagem.

A bica, há mais de 50 anos (do Google)
Guardando para outras caçadas aos “mistérios” das estradas de Sintra, resta-me lembrar que a ida a Sintra não fica completa sem a indispensável passagem pelo Cyntia. Já não está lá o Ti Rodolfo que, por uma bica, muitos serões, me aturou, até que a “Boa Viagem” da “Meia-Noite” viesse, para me levar e a outros de volta à Abrunheira, depois das lições na Escola do Cacém. O Ti João, que com um sócio lhe sucedeu, manteve a bondade e a paciência a que estávamos habituados. Hoje, está lá o filho Ricardo que herdou do pai tudo de bom, acompanhado pelo Artur mais conhecido de Sintra e arredores. Agora, quando lá entro, até parece que estou num qualquer outro sítio, no estrangeiro. Raramente se fala a língua de Camões como, aliás, acontece em todos os lugares de Sintra.

Silvestre Brandão Félix
11 outubro de 2019



sábado, 27 de julho de 2019

À DISTÂNCIA DE MEIO SÉCULO


Há meio século, tudo tinha outra “cor-embaciada”.

No dia seguinte, a Ti Augusta completava mais um ano de vida. Ia nos cinquenta e cinco. “Essa vida”, cheia de trabalho e sofrimento, mas também de muitas alegrias, como fazia sempre questão de dizer. O incentivo da minha Mãe foi decisivo para aceitar a “proposta” do Chico.

E, querendo, era para o dia seguinte, porque naquele 10 de junho de 1969, como era tradição, estava o Terreiro do Paço cheio com uma gigantesca parada de militares, comemorando o “célebre-dia-da-raça”.

Muitos — a propósito dos quais o Almirante e o “Professor da oportunidade perdida” e da primavera chamada “esperança”, espetaram medalhas no peito dos pais, das mães, das viúvas ou dos filhos e filhas — não puderam responder à chamada, porque os desígnios do império os transformaram em heróis depois de os levarem desta terrena vida. Quase todos os que responderam de viva voz para receberem a medalha, os heróis vivos, foi, porque transportaram no corpo o resultado das balas ou dos estilhaços que os haviam atingido.

Parece-me, agora, que tudo se passou noutra “encarnação”. O “Botas”, demente terminal, ainda vivia. Só se “apagaria”, um ano depois, também num 27 de julho.

A hora da despedida - Ida para a Guerra - Imagem RTP
Aquela Guerra Colonial, que ao tempo se chamava (baixinho porque algum “bufo” podia ouvir) “Guerra do Ultramar”, estava ativa em todas as frentes e, do Cais da Rocha Conde d’Óbidos e de Alcântara, continuavam a zarpar “paquetes” das companhias: Colonial de Navegação e Nacional de Navegação, carregados de tropa para combater os movimentos de libertação nas franjas do império. As despedidas, comportavam o cais cheio de lenços brancos acenando aos seus, até que o mastro mais alto desaparecesse no horizonte. De todos os que partiam, e porque iam para a guerra, nem todos regressariam.    
    
Ainda não tinha feito os quinze, mas lembro-me bem que por aqueles primeiros dias de trabalho na STAR, no 10 da Rua do Alecrim, que por ali ia no seguimento da boleia na lambreta do Chico até Oeiras, o comboio esteve parado alguns minutos à frente do “Cais da Rocha”, e assisti, embasbacado, a um daqueles tristes espetáculos. Naquele momento, impressionado, pareceu-me não faltar muito tempo para eu próprio, poder ser protagonista de cena idêntica.  

O meu primo Chico, depois de se ter safado das cheias do “Cacheu” e dos tiros nas emboscadas dos guerrilheiros do PAIGC, e ter tido a sorte de desembarcar em Alcântara, na volta, voltou para a marcenaria onde já trabalhava antes de “assentar-praça”.

Um dos clientes habituais onde ele se deslocava muitas vezes, era a STAR. Numa dessas idas, o Sá Rodrigues, homem da contabilidade e pessoal (ainda não tinham inventado a expressão-recursos humanos) da STAR na Rua do Alecrim, seu bem conhecido, aceitou que ele, o Chico, levasse lá o primo de catorze anos para preencher a vaga de “paquete” na secção dele. O primo de 14 anos era eu e assim lá fui! Naquele 11 de junho de 1969 e depois das perguntas e respostas, fiquei aprovado e comecei nesse mesmo dia a trabalhar e a ver o mundo pela “janela do terceiro andar”.

Tenho uma relação péssima com datas, mas, “mil anos que viva”, não me esquecerei daquele dia. Fez cinquenta de tempo contado em anos. O mesmo tempo, assim contado, do primeiro salto na Lua.

Como um simples comentário ou recado pode ser tão importante na vida duma pessoa. Se o Sá Rodrigues não se tivesse cruzado com o Chico naquele dia, o meu percurso de vida teria, certamente, sido diferente.

Desde aqueles dias e pelos outros dias, semanas, meses e anos seguintes, com o “trago” da dose de cafeína emborcada no Cyntiaantes bem medida e tirada pelo Ti Rodolfo e mais tarde pelo Ti João — e depois embalado no comboio até ao Rossio, lá ia à procura da experiência e do conhecimento que me transformaram em homem, fosse na carruagem da “sueca” e “bisca-lambida”, das “gordas do Diário de Notícias” ou de leitura em livro censurado  e “forrado” por causa dos “mirones”, ou na de bancos castanhos com os engravatados e “flausinas” com  as bochechas cheirosas e “empoadas”.

Praça Duque da Terceira (Cais do Sodré) - Google
Da “janela do terceiro andar”, via o bem e o mal. Com a “janela” aberta à minha frente, escolhia o caminho. Umas vezes bem, outras nem por isso, mas ouvia sempre um sopro atrás da orelha que me punha no certo. O Cais do Sodré ensinava tudo. Mesmo que não quisesse, aprendia sempre alguma coisa. Dos bitoques e imperiais do “Califórnia”, dos bás-bás do “Caneças”, dos pastéis de nata da “Zarzuela”, das bicas do “Recife” ou da “Brasília”, dos digestivos do “Brithis Bar”, das fresquinhas do “Atlântico, da loiça partida do “Grego”, das vieirinhas do “Porto de Abrigo”, do frango no espeto do “Rio Grande”, das sardinhas do “Carvoeiro”, das cabeças de peixe da “Tasca da Ribeira”, das bifanas do “Escondidinho”, do SG gigante da “Inglesa” e dos livros do Eduardo Olímpio.

Enfim! Sendo o ponto de partida do lado de cá da Serra, nas bordas do “Das Sesmarias” e Abrunheira dita “Brasil” por lembrança do voo escaqueirado protagonizado pelo Coutinho que era Bernardino e pelo Sacadura que era Borrego, mais tinha era de aprender.   

Desde a “janela do terceiro andar” via, ouvia e sentia tudo. Dos amores nados e desfeitos, até às debandadas à frente da Pide/DGS e seu “exército” de “bufos”, passando pelas angústias e ansiedades com a tropa e uma ida certa e obrigada para a Guerra.

Como é que, alguns, ainda podem querer dar “colorido” aquele tempo de há meio século?

Silvestre Brandão Félix
27 julho de 2019



sexta-feira, 21 de junho de 2019

SOLTE-SE A FESTA. AI! AI! SÃO PEDRO!


SOLTE-SE A FESTA. AI! AI! SÃO PEDRO!
Solte-se a festa, que já se faz tarde!

Que ribombem os bombos, os tambores, as pandeiretas, que toquem as trombetas, os pífaros, as flautas, que discursem os “inteligentes”, os distintos convidados e os comprometidos, mas surpreendentes, feiticeiros!

A banda vem aí e o “povinho”, no seu canto, a vê-la passar!

O habitual cortejo das celebridades não se detém, nem um bocadinho, nos recados e mensagens que enviados são, através de desenvolvida telepatia.

As consciências abanam, mas não caiem!

O São Pedro, que é de Penaferrim, bem guardado tem o “ferrolho” para que não lhe entrem pelo “céu” adentro sem mais nem menos. Ele, que deste lado da Serra sempre nos protegeu, fazendo jus ao facto de ser “Apóstolo Primeiro” e “Maior”, está atento e pronto para resistir a todas as tentativas mal-intencionadas.

(…) Sempre gostávamos de espreitar a montra da “Bramonte” onde se compravam as modernices. Podia ser um par de sapatos, umas calças, um fogão a lenha ou um fogareiro a petróleo. Um pouco de tudo se encontrava na “Bramonte” e os irmãos, estavam sempre prontos para fazer mais uma venda, mas o que íamos mesmo fazer a São Pedro, estava do outro lado, nas traseiras. O mercado que, naquele dia 29 de junho de há quase sessenta de tempo contado em anos, era a “Feira-anual-de-São Pedro”.

Desde o Ramalhão, junto ao campo do 1º Dezembro e contornando a campa dos “Dois Irmãos” que, ao tempo, ali estava, daquele lado, já era difícil andar sem encontrões e desvios até ao alcatrão. Tal era o circular de gente, naqueles domingos de mercado antes das dez da manhã, altura do dia que a minha mãe escolhia.

Saíamos da Abrunheira antes das nove, metíamos por esses caminhos acima que, no caso, era o caminho até Ranholas, sem cortes, porque ainda não havia autoestrada nem se adivinhava tal empecilho, subíamos as escadinhas da sociedade e, depois, passando a Quinta do Ramalhete sempre juntinho à parede até ao Ramalhão.

O Mercado de São Pedro ou, neste caso, a Feira-anual, era um mundo. Havia de tudo. Junto à parede da Quinta de S. Pedro, era uma correnteza de “barracas” de fatos clássicos e tecidos para os fazer, por medida. No miolo, roupa de toda a maneira e feitio. O calçado, muitas bancas junto aos restaurantes. Na ponta da subida para Santa Eufémia, o sítio do gado. Havia: Vacas, vitelas e vitelos, ovelhas, borregos, cabras, bodes e cabritos, burros e burras e até cavalos. Antes também havia a “criação”. Todo o tipo de galinhas, frangos, franganotes e pintos. Toda a qualidade de alfaias agrícolas e todo o tipo de bugigangas se podia encontrar no mercado. No lado de cima, tudo o que se podia comer. Leitão de Negrais, pão saloio e de Mafra, fruta da época, réstias de cebola, batatas e todos os hortícolas, bolos secos, molhados e as famosas queijadas (…)

Durante as minhas “lides” autárquicas, ainda na década de setenta/oitenta, pela época dum único canal de televisão a preto e branco, dizia-se que a Junta de Freguesia de São Pedro de Penaferrim — que deixou de ser e eu, muitos outros e até alguns arrependidos, desejamos que volte a ser — era “rica” porque tinha o mercado de São Pedro. Na verdade, para as necessidades daquele tempo, na Junta não havia problemas de dinheiro, e, a situação desafogada, devia-se exatamente à receita do mercado quinzenal.

Neste dia, abrem os festejos de São Pedro no “Largo da Feira” (D. Fernando II), muito diferentes dos de há sessenta, cinquenta ou quarenta anos. Que, pelo menos os “Festejos” se mantenham, porque o Mercado quinzenal está “moribundo”. Precisam-se “mandatários” corajosos para darem a volta ao “texto”! Não me digam que está, o mercado, fora de moda. É que em freguesias vizinhas estão prósperos e em crescimento.  

Silvestre Brandão Félix
21 junho de 2019
Foto: Chafariz de São Pedro de Penaferrim (Google)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

AS HORAS DO LUÍS, RELÓGIOS E OS NOSSOS BOMBEIROS


Com as tripas à mostra estava, acabadinho de ser esventrado, pelo habilidoso jeito ao canivete, dado pelo Luís, para que assim pudesse desfrutar das miudezas, com atraso, pela velhice, mas todas a mexer, não fosse o aparelho, um Tissot, com quase quarenta anos.

Explicava-me o Luís, possuído duma tal fascinação que, até a mim, puto de nove ou dez anos — sem nada perceber de rodas de balanço, cordas assim e assado, dentadas d’aqui, dentadas d’acolá — me entusiasmava para ver como é que a coisa chegava ao fim, quer dizer; o arranjo! Sim! Porque se estava na mão do Luís, era sinal que estava avariado. Pois, porque aquela máquina espetacular, tinha chegado ao Luís, porque se estava a atrasar meia-hora por dia e o dono até já queria substitui-lo por um mais moderno, de pulso. O Luís tratou de o convencer que não, que o velhinho, ainda ia durar muitos anos no bolso dele, bastava que se limpasse e ajustasse o que havia para ajustar. Ele se encarregava de o fazer!

Eu gostava de o ver destripar os relógios e a arranjá-los com aquelas ferramentas muito pequeninas. Naquele dia, explicou-me tudo à medida que ia mexendo no velho Tissot de bolso. O que é certo, é que no dia seguinte estava certinho. Foi todo limpinho e uma “dentada”, que ele me tinha mostrado, foi ajustada na justa e necessária medida.

Pelas duas janelas se via, ao longe, o cimo da torre da Pena e a Cruz Alta. Mais na encosta, Santa Eufémia que, de lá, com certeza também nos observava e, se fosse caso disso, nos corrigia o caminho porque, se ela falasse, muita história contaria. Algumas, consumadas a todos os primeiros dias de maio, olharia bem para os lados antes de o fazer, porque a bufaria por todo o lado andava escutando.

Mais perto, quase a nossos pés, o Rio das Sesmarias e a saudosa horta. É como se estivesse a olhar agora; o Rio tinha água que corria… corria… na horta os pêssegos rosa estavam quase maduros.

Era dali, das janelas ou da varanda, que o Silvestre Velho, antes, via o mesmo e as searas até à beira da Colónia, desde o Cerrado da Fonte até aos Celões.    

O Luís, para além de conhecer por dentro e por fora, as máquinas que dão horas, também sabia e sabe tudo sobre os bombeiros do concelho, principalmente dos de Sintra e, ainda duma forma muito especial, dos de São Pedro, não fosse de lá, que veio.

Quando me apanhava a jeito, tinha sempre novidades dos bombeiros. Que eu saiba, nunca foi bombeiro, mas sabia (e ainda saberá) a história das associações e, de São Pedro, até dos fundadores; do Tibúrcio e do Alfredo Esteves que não era Esteves.

Neste tempo, em que tudo pode girar à volta dum telemóvel na mão, mas mesmo tudo — podemos ter a nossa vida completa numa coisa destas que, por acaso, também serve de telefone — como é que ainda temos capacidade para recordar (os mais velhos), como era importante sentirmos um relógio preso por uma corrente à casa de um botão do colete que, por sua vez, se colocava no bolsinho, quase sempre do lado esquerdo?

São as “passadas” do tempo ou,

   Faz bem que tenhamos sempre presente a importância relativa das nossas coisas ou, daquelas, de que nos servimos. Para o Luís, naquela altura, era muito importante saber dos relógios e de tudo o que se passava nos bombeiros da nossa terra. É claro que as prioridades dele hoje são outras, mas, ainda assim, continuará a avaliar, quanto importante era a “bomba-braçal” que o Tibúrcio e o Alfredo Esteves (que não era Esteves) conseguiram adquirir para o Corpo de Bombeiros de São Pedro, naqueles idos do princípio do século XX, ainda em regime monárquico da Casa de Bragança —

são as nossas “passadas” pelo tempo?

Silvestre Brandão Félix
12 dezembro de 2018
Foto: Relógio de Sol (Google)

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

DE OLHOS FECHADOS


O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde estavam.

À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”, sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico.  Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.

E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.

O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido, certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e, fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.

Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.

E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.

Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à “Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …

Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”, para chegar à hora do chefe?

O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.

Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CHUVA, RIO DAS SESMARIAS E AS BRUXAS


— Finalmente, sinto que estou a dar uso à minha capacidade de corrente e, a aplicar as minhas competências nos limites das margens. Como me sinto “cheio” com esta abençoada água. Que chova! Que chova!

Desabafa assim o nosso amigo Rio-das-Sesmarias que, ansioso andava, pela pouca chuva caída até este último dia de outubro.

Recuando meio século, ou mais, durante este dia, já por lá teriam passado alguns dos seus amigos e parceiros.

O Artista-Sapateiro seria o primeiro porque, perna mais comprida, assente fora da enxerga e aí, que lá vai também a mais curta, depois as duas e rapidamente direitinhas à margem nas traseiras da casa, para aliviar o resultado do trabalho noturno, da máquina digestiva. Era uma visita diária obrigatória, embora “malcheirosa”, mas ainda assim, necessária ao começo de mais um dia, a maior parte do tempo sentado no tripé rústico que, num dia já distante, contado em, para mais de 30 anos, ele tinha resolvido construir. Foi há tanto tempo que a “maria-faladeira”, parceira de casa e de pouco mais, ainda não era velha.

 Já de dia, também passaria por ele, o nosso amigo e conhecido Coutinho que era Bernardino. A primeira vez ainda iria leve, pois, as sopas de cavalo-cansado que a Caracoleta lhe facultou ao levanto, não lhe pesavam assim tanto. Ao contrário do Caga-à-Chuva, que empurrado era, pela desesperada vontade de “obrar”, o Cientista-da-Pedra ia ter com os seus companheiros de vida e de ciência. Era uma motivação diferente. É claro que, com o correr do dia, a leveza da manhã, ia-se transformando no habitual “so-li-dó”, de idas à menina Emília, ao Faial ou Ramos, emborcar “ciganas” ou “charretes”, conforme a hora.

O Rio das Sesmarias tinha sempre água corrente com fartura, mas agora, o sítio do Rio está lá, mas água é que… nem por isso. Ontem e hoje correu alguma, a medo, mas se não chover mais, amanhã praticamente já não haverá água.

Será bruxedo?

Silvestre Brandão Félix
31 outubro de 2018
Gravura: Google