sábado, 25 de abril de 2015

JÁ NÃO VOU PARA A GUERRA!

Do terceiro andar, daquela janela, eu conseguia ver, mesmo sem “Google Earth”, tudo o que acontecia na “hora”, tinha acontecido, ou, que imaginava viesse a acontecer.

Dali, via, navegando pela “estrada” do Tejo, algumas poucas “faluas” e “fragatas” de velas “à banda” empurradas pelo vento da barra que lhes facilitava a corrida e a faina do pescado e do pequeno transporte.

Pela janela, à altura das “águas-furtadas” do prédio mais perto do “duque”, conseguia perceber, se a grande doca-seca da “Lisnave” estava recebedora, ou não, do grande petroleiro que, impávido e sereno, esperava, fundeado no Mar da Palha, de proa à maré.

Mesmo entre a escuridão do vinte-e-quatro, conseguia espreitar lá de cima, da janela do terceiro andar, os sorrateiros e cínicos bufos dum lado, e, do outro, os reservistas de lápis azul, que, riscando, os gastavam sempre “a bem da nação!”.

No rescaldo das “Caldas”, via-me, de mancebo a magala em fardamento a verde feito, e de “canhota” a jeito, no meio de terra, que minha não era, com lógica de estúpida guerra que pelas colónias fervia.

Antes, lá teria passado pelo cais da “Rocha Conde D’Óbidos” marchando para entremeada formatura antes de subir à amurada do “Príncipe Perfeito”, “Vera Cruz”, Niassa”, “Infante D. Henrique” ou de qualquer outro “paquete” servidor do império. A vinte e quatro, o parapeito daquela janela do terceiro andar, era o interior da murada dum destes e, de lá, via um “mar”, com o tamanho do que iria atravessar, de lenços brancos num adeus de mães, esposas, namoradas e filhos. 

Na entrada dezassete, com o Manel abençoando o “botas” e a fazer figas para que a “primavera-marcelista” ficasse, de vez, outonal ou mesmo invernosa, porque, nos seus atrofiados neurónios, só assim se conseguia ganhar a guerra em Angola.

Atormentava-me, sim! Tinha medo, sim! Mesmo com a segurança que a janela do terceiro andar me dava, vendo de lá o que muito bem queria imaginar, não conseguia desviar a certeza que me desenhavam para o futuro a curto prazo; “Assento-de-Praça”, recruta, especialidade e, ala que se faz tarde, para África. 

De piso era terceiro mas, contando pela entrada da do Alecrim, era segundo sendo que, por ser tão alto, quase adivinhava o que se ia passar na quinta-feira, a vinte-e-cinco; desde o Terreiro do Paço, Ribeira das Naus, Arsenal, Corpo Santo e Bernardino Costa. Cheirava a qualquer coisa…

E, na manhã de quinta-feira, em abril e a vinte-e-cinco, ouvi o Luís Filipe Costa:

 (…) Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas (…)

Silvestre Félix

25 de abril de 2015 

terça-feira, 7 de abril de 2015

Largo do Chafariz: DESTE LADO DA SERRA

Largo do Chafariz: DESTE LADO DA SERRA: Deste lado da Serra, perdemos quase tudo! Foi o Centro de Saúde, o Centro Social, a ligação direta à Capa Rota, a Junta de Freguesia, o...

DESTE LADO DA SERRA

Deste lado da Serra, perdemos quase tudo!

Foi o Centro de Saúde, o Centro Social, a ligação direta à Capa Rota, a Junta de Freguesia, o quartel da GNR, a Escola Secundária, os equipamentos desportivos, como o multiusos, a piscina e o campo de futebol, etc., etc.

Perdemos líderes carismáticos e honestos que se “batam” pelos interesses e necessidades das populações deste lado, onde o SOL toca primeiro. Eu cá, desconfio que, mais cedo ou mais tarde, tentarão mudá-lo de sítio (ao SOL) para que, primeiro, apareça do lado de lá…

Há quem já tenha dito e escrito, que até perdemos o direito a “presidências abertas” [abertas]. Parece que são mais p’ró “fechadas”. Eles, não sabem, nem “sonham”, como ir “por esses caminhos acima”. Pudera, se soubessem, não tinham deixado que os perdêssemos. Já era (ou foi), a ligação a Ranholas pela Rua da Abrunheira que, por aí acima, a Ti Augusta me levava pela mão até ao mercado ou, muitas outras vezes, até ao miolo da Serra, à Casa da Tapada que também era e ainda é, “Do Roma”, juntinho ao Palácio dos Milhões que a minha Mãe nunca se esquecia, da “estória” me contar; o caminho, por aí a cima, aos “Celões” até ao Linhó com pedras mil vezes pisadas pelos cascos da Marcina, da Bonita, da Estrela e da burra (salvo-seja) Carocha, ainda antes, desapareceu engolido pelo condomínio que, do Casal da Beloura com caminho também feito e serventia para os rebanhos do Ti Zé da Beloura, só o nome ficou.

É só a perder…

Até o Rio das Sesmarias foi despromovido para “ribeira” e, ainda-por-cima, de Colaride. Na mesma onda perdedora, lá foram “à vida” as cigarras e os grilos e com eles levaram as suas cantorias que, por esta altura, começavam a inundar os nossos campos.

Deste lado da Serra perdemos quase tudo…

Fica a dignidade!

Silvestre Félix
7 de abril de 2015 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

COMO É QUE SE CHAMA ESTA FRUTA?

A perícia com que escolhia as cebolas e as dispunha por tamanhos, qual calibrador moderno e automático; o cuidado a tirar as “cascas” velhas, cortar “direitinho” os tufos de raízes e folhas inúteis da planta; a arte, precisa, com que entrançava as folhas secas ao centro, e fazia com que as cebolas ficassem agarradas, umas, a seguir às outras e, assim, em pouco tempo, construía a obra perfeita denominada—“réstia”.

Peça única, incluindo a dose certa de “marketing” acoplado, traduzido na beleza que irradiava, aos olhos dos potenciais consumidores ou, eventualmente, compradores – sim, porque, tendo o meu saudoso Pai, partido desta vida, vai para trinta e nove de tempo contado em anos, quando se dedicava com esmero e profissionalismo à arte de hortelão e agricultor, não carecia de emitir fatura eletrónica, para poder trocar o excedente.

Não preciso de “pretextos” para falar do meu Pai, mas, esta descrição da “construção” de uma réstia de cebola é, demonstrativa, de como o “Zé Silvestre” lidava com a sua arte. Eu, muito miúdo, ficava horas a vê-lo, sentado no chão em cima duma sarapilheira, numa qualquer tarde de março (marçagão, de manhã inverno e à tarde verão), dando as voltas todas às cebolas ou alhos, até concluir o produto final que, eu, “puto”, achava do mais prefeito, e era!

Há uns dias, numa “catedral” de consumismo aqui perto, onde eu também vou, perguntava um miúdo para a mãe que, com o desespero da falta de tempo e cuidado, ao escolher umas cebolas numa “piscina” delas, a granel, deixou cair duas pelo chão que, rebolando, pareciam ganhar velocidade em excesso, correndo, até, o risco de serem multadas por algum “polícia” escondido atrás dos outros caixotes que, por ali, estão estacionados.

— Oh mãe, como é que se chama esta “fruta”?
— Chama-se cebola, filho!

A mãe, com vinte e poucos anos de idade, respondeu duma maneira muito crente. Não hesitou, e achou que falou certo. O filho não tinha mais do que cinco anos e, como é normal, voltou à “carga”.

— Oh mãe, como é que se chama a árvore que dá a cebola?

Mais uma vez, a mãe, “certíssima” do que estava a dizer, respondeu:

— Nunca vi nenhuma, mas acho que é “Ceboleira”!

Já não se fazem réstias de cebolas…

E o meu Pai preparava o canteiro, muito direitinho, bem estrumado e deitava-lhe a semente. Alguns dias, e os pontinhos verdes do “cebolo” começavam a despontar e, rapidamente subiam até um palmo. Por essa altura, começava a arrancar as pequenas plantas e separava-as em “centos” (cem unidades), atados com umas folhas muito compridas duma planta do nosso Rio das Sesmarias. As primeiras, quase sempre, eram as que ele precisava para plantar e, mais tarde, colher cebolas. Os restantes “cebolinhos” distribuía por algumas pessoas e, se ainda sobrassem, o próximo mercado de São Pedro tratava de os absorver. 

Já não se fazem réstias de cebolas… e muitas outras coisas. Mudam tudo. “Pelo andar da carruagem”, as tardes soalheiras serão transformadas em permanente “lusco-fusco” de modo a que, nem de uma réstia de sol, a “gente” possa beneficiar. 

Silvestre Félix

14 de janeiro de 2015 
(Foto: Google)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

IGREJA DE SANTO ANTÓNIO DA ABRUNHEIRA

Muitas pessoas assistiram à inauguração da Capela polivalente e Capela da Ressurreição, correspondendo à primeira fase de construção da Igreja de Santo António da Abrunheira, neste domingo, dia 7 de dezembro.

Num maravilhoso dia de sol, os convidados e a população em geral, assistiram ao descerramento da placa que deixa registado o momento, na parede do edifício, para a posterioridade.

Presentes nesta cerimónia: Senhor Bispo Dom Joaquim Mendes; Presidente da Assembleia Municipal de Sintra e, também, em representação do Presidente da Câmara Municipal, Dr. Domingos Quintas; Eduardo Casinhas, Presidente da União das Freguesias de Sintra e a Vogal Paula Bento Santos; Fernando Pereira, Presidente da Assembleia de Freguesia da União das Freguesias de Sintra e, muita gente, que encheu completamente o espaço das duas Capelas, mais as que não conseguiram entrar, para assistir à Eucaristia presidida pelo Senhor Bispo.  

Para finalizar o dia de festa, esteve à disposição de todos, um delicioso lanche composto por tudo o que a população anónima e alguns comerciantes ofereceram. Paralelamente foram rececionados outros donativos no âmbito da angariação de fundos, que tem vindo a ser promovida.

A Abrunheira fica, assim, mais rica. Não só pela vertente religiosa, com a realização de missa semanal e local para desenvolver todas as atividades inerentes ao serviço de paróquia mas, também, por toda a população passar a dispor dum local para velar os seus mortos, independentemente da sua religiosidade, em vez de o ter de fazer longe das suas moradas.

No final, já escuro e muito frio, era bem visível a satisfação nos rostos de todos os membros da “Comissão Pró-Construção da Igreja da Abrunheira” e, principalmente do Pároco Padre Armindo que, em conjunto com a “Comissão” e com o Vigário Padre Jorge, foi decisivo para o arranque, andamento e conclusão desta (1ª fase) obra.



Silvestre Félix

8 de dezembro de 2014    

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

NORTE DA ABRUNHEIRA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA AO PÉ DE CASA.

— Desnorteado estou eu, com a ventania que por aí anda! Diz que não, diz que não te tira o sono e depois queixa-te!
— Oh Coutinho, mas então, o que me interessa a mim, o que vai acontecer daqui a cinquenta ou sessenta anos?
— Ai não te interessa, não?
— A mim, não! Nessa altura já sou tijolo bem ressequido.
— Pois a mim interessa-me, e muito. Estão a meter-se com o nosso amigo Rio-das-Sesmarias. Eu cá, já estou habituado às “trocas e baldrocas”; tanto me chamam Bernardino que não sou Coutinho, como Coutinho que sou Bernardino e outros nomes e alcunhas que agora não vem ao caso, mas, com o Rio-das-Sesmarias, “fia mais fino”. Nortadas à parte, não posso “levar à paciência” que lhe troquem o nome.
— Concordo contigo mas …
— Mas o quê??!! Não me digas que não te importas que, passando muito tempo lá para a frente; contado em anos pr’aí uns cinquenta ou sessenta, venham uns gajos de gravata dizer que não eras Artista-Sapateiro, que ignoravas a “geografia-ao-pé-de casa”, que não usavas boné, que te chamavas Manel e que cagavas ao sol em vez de o fazeres à chuva?
— Tens razão, Coutinho! Mesmo já não andando por cá, sabendo duma aldrabice dessas, não ficava nada satisfeito. Estou disposto, contigo e com quem mais tu achares de valia, a lutar pela verdade, eliminando, com quantas cajadadas for preciso, a ignorância e o desnorte que por aí abunda.

E os dois “Abrunhenses” lá foram andando, do “Lugar de Baixo”, a sul, para o “Lugar de Cima”, a norte. Passaram o Santo António, o “Espanhol”, o “Silvestre-Velho” que, como comandante à proa do navio, do alto da varanda, olhava os trabalhos a decorrer nas terras abaixo da Colónia e até ao Linhó, pela esquerda e, à direita, até aos “barros” — sessenta, contados em anos de tempo para a frente, os “inteligentes”, chamar-lhe-ão: Norte da Abrunheira-Norte — mesmo à beirinha da estrada, do lado de cá da “chancuda” que, para além da nascente, ainda recebia muita água da regueira, desde o “penedo”, rentinha ao fundo do “Casal-Novo”. Tão absorvido estava que nem respondeu à saudação dos dois passantes. Aproveitando bem o tempo solarengo, em conluio com o São Martinho, o “Silvestre-Velho” mobilizava as suas duas juntas-de-bois e todo o pessoal disponível, acelerando o amanho para que, antes do Natal, grande parte das sementes estivessem na terra. Da varanda, e como se todos o ouvissem e vissem, bracejava e gritava os impropérios do costume — Ah, “almas do diabo”; “raios-os-partam”; “filhos duma égua”; etc., etc.,.

Caminhavam pela “principal”, com o amigo Rio-das-Sesmarias à esquerda, correndo no sentido inverso ao deles; de norte para sul. Podiam ter metido pela “Azinhaga do Rio”, à esquerda, a seguir ao quintal do Rafael Coxo e junto à escolha da fruta do “Pechincha”, mas não o fizeram. Sob o olhar e cumprimento do Ti Mendes, que muito fumo pelas beiças e ventas deitava, por cada forte puxada no bocal do cachimbo de cana feito, rumaram na direção do Chafariz e o destino era a taberna da “Menina Emília”. O Coutinho que era Bernardino estava com ganas de emborcar uma “charrete” e, o “Artista-Sapateiro”, também.

Ambos sabiam que “o norte” era o caminho daquele dia e daquele tempo. Por aquela que, vinte, mais tarde, contados em anos, seria a “Travessa do Norte”, e a desembocar na “Rua das Sesmarias” filha adotiva do nosso RIO que, pelo menos, lá pelos tempos de D. Fernando “o primeiro”; se passou a chamar, aqui, na Abrunheira; “Rio-das-Sesmarias”. Que não se contem os anos, desde o princípio do último quartel do século XIV, que são muitos e tempo suficiente para que, para lá da profecia; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, não se admita tamanha ofensa ao nosso RIO; chamar-lhe “Caparide” e, ainda-por-cima, “ribeira”??!!

Vagarosos, como se queria naquele verão emprestado de novembro, lá foram, com a “charrete” da Menina Emília e mais — porque assim que meteram ao “Cipriano”, viraram no beco para a adega do Pena — duas ou três canecas da melhor água-pé deste planeta e de todos os outros que o universo tenha, em direção à passagem de pé-posto, do nosso querido Rio-das-Sesmarias. Ele estava no seu sítio, corria bem direitinho, de norte para sul e sem solavancos, que o chovido não era assim tanto mas, muito acabrunhado.

Chegou primeiro o Coutinho, pois a perna aleijada do “Artista-Sapateiro” — e mais o que lhe passou pela goela, a caminho dum estômago bem atestado de acidez e ávido de matéria para desfazer, e mandar rapidamente para o “delgado”, ganhando velocidade no trânsito, mesmo sem mesinhas e outras artimanhas, para que não estacione muito tempo no “grosso” — fizeram com que viesse mais atrás. 
 
— Então, amigo Rio-das-Sesmarias? Como vais correndo?
— Vou levando a minha água, dando passagem de ida e volta, com direito a recreio, às enguias do poço da nora, na horta e pomar dos pêssegos-rosa que o “Zé Silvestre”, trás. Levo água para que os “girinos” nasçam, cresçam e, lá para março, despontem lindas e coloridas rãs, que coaxam sem parar; para que os animais dos Abrunhenses se satisfaçam do líquido precioso; para que os agriões que crescem nas minhas margens, completem saborosas saladas verdes, enfim; da encosta de Ouressa, engrossando com o “fio” nascido no Penedo, irmanado com a da Chancuda, que pelos “Barros” vêm a mim: “Rio-das-Sesmarias”, antes e depois da Abrunheira até à “Azenha” do Ti Sebastião, na Capa-Rota. Depois, já não me importo, porque pelos “Bernardos” vou tomando outros nomes que, de mim, só a água levam. E vocês? Como vão encarando as notícias que, do norte, nos trazem?

Cada pé em sua pedra, com a anuência do “acabrunhado” RIO, passaram, como sempre faziam, para o lado da pedreira que, do Ti Miguel, ainda seria, por muito tempo contado em anos. O Bernardino, que Coutinho não era, tomou como assento a, que dizia sua; pedra. Pegou no bornal, que se quedava no ombro esquerdo, e posou-o no chão, com muito cuidado. Num dos alforges, trazia ferramentas de trabalhar a pedra, como se fossem tubos de ensaio do mais moderno laboratório. A “Ciência-da-Pedra”, que era a sua, só podia ser “manobrada” pelos mais delicados instrumentos. No segundo alforge, que balançava à frente, o Coutinho que era Bernardino, trazia o seu farnel que a Ti Mariana Soleta lhe tinha preparado antes de sair de casa, ao mesmo tempo que lhe recomendava — Ai “Be’nardine filhe, nã me vás pa’taberne embo’car vinhe” (aqui não entra a ”história” do Coutinho, por razões óbvias. Se, para quem lê, não for assim tão óbvio, espere por outro escrito ou vá ver os antigos) e que tinha; Uma “cigana” cheínha, um quarto de pão-escuro e um bom naco de toucinho-entremeado que, logo chegado à pedreira, lhes daria o devido tratamento que, mesmo correndo o risco do “Artista” me acusar de desvio do tema ou matéria, como lá muito para a frente, no longínquo século XXI (se, a dois mil passarem) os políticos velhos e os aprendizes, vão gostar de dizer muitas vezes; não resisto a “mostrar”, por antecipação, aquele que, sempre era, um laudo banquete!  

Na principal bancada do seu “laboratório”; a pedra que servia de mesa para comer e poiso para as ferramentas, Bernardino que não era Coutinho, tira do bornal o papel-pardo do costume, estende-o na “mesa”, e coloca-lhe em cima; o pão-escuro, o naco de toucinho e a “ciganita”. Como comer e beber, ritual sempre foi e será, respeitando o cerimonial, saca do bolso a sua indispensável navalha-curva (de enxertar), com jeito e delicadeza que só mãos e dedos habituados a “tocarem” a ciência, mesmo que, de pedra seja, abre-a e, com um gesto certeiro de tantas vezes repetido, passa os dois lados da lâmina da navalha, pela ganga das calças da perna direita, logo acima do joelho, e inicia o corte preciso dum bocado de pão. Findo este, idêntico manuseamento faz ao toucinho e, juntando os dois pedaços, mete-os na boca, iniciando uma função de mastigação que, só viria a ser completa, com um trago de vinho emborcado diretamente da “cigana”.

Noutra, bem ao feitio e tamanho da “padaria” do Artista-Sapateiro, lá se sentou ele, segurando, num repente, a beata presa ao beiço de baixo, que lhe ia caindo. O único dente que despontava da “cavidade” bocal, bem espetado na gengiva de baixo, não era suficiente para lhe prender, bem, o cigarrito. E, como que reagindo ao tropeço, meteu “estopa” e iniciou faladura sapiente sobre viagens há muito empreendidas; Não fosse, ele, Artista-Sapateiro, dos bons, contador de histórias e cenas que ele sabia e repetia. Muito ele calcorreou, perseguindo clientela de meias-solas para patrões das quintas e jornaleiros, desde a(s) Malveira(s) (dos bois e da Serra) até aos “Estoris”, passando pelas Azenhas e Janas, subindo para Almoçageme, Penedo, Eugaria até ao outro lado em Paço-de-Arcos, Quinta da Estribeira, Leião até Belas, pelo outro lado em Odrinhas, São-João-das-Lampas, Linhó ou Parede, Caparide, Murtal, etc., etc.. O Artista-Sapateiro conhece o percurso do nosso Rio-das-Sesmarias, até à foz, na Costa-do-Sol entre São João e São Pedro do Estoril. Por acaso até passa junto a Caparide, a mais-ou-menos três quilómetros da foz e quinze da Abrunheira mas, chamarem ao nosso amigo Rio-das-Sesmarias, “ribeira de Caparide”, não lembra a ninguém que saiba um pouquinho de “geografia”.

— Oh Coutinho, tive agora uma ideia de “estalo”; vamos teletransportar lá para a frente, cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, uma “Petição pública” para reposição da verdade e recuperar os nossos valores históricos, exigindo que, no âmbito dos estudos e planos “nortenhos” para a Abrunheira, se chamem as coisas pelos nomes, como é o caso do Rio-das-Sesmarias.
— Oh Artista-Sapateiro, essa de “teletransportar” não é no gozo comigo, não?
— Não! Estou mesmo a falar a sério, Coutinho! Não tem nada a ver com a tua tentativa de travessia do Oceano Atlântico até ao Brasil com o Sacadura que era Borrego.
  
E o Rio-das-Sesmarias lá corre com toda a lisura, mas acabrunhado.

Só quer a verdade!

Silvestre Félix
4 de Dezembro de 2014


terça-feira, 19 de agosto de 2014

MALDITA CORVINA!

Jardim do Bairro da Colónia - Silvestre - 1973
Em tempo passado, corrido e contado em anos, irão, pelo menos, uns quarenta e um. É verdade, ainda vivíamos no regime do “botas” que já não era, embora, na fase final duma “primavera” que nunca chegou a ser. Mil novecentos e setenta e três, derradeiros anos do terceiro quartel do já longínquo século vinte. No ano anterior – setenta e dois – tinham acontecido os Olímpicos de Munique e, por isso, por esses caminhos acima até ao “novoBairro da Colónia, levei o meu rádio, gravador e leitor de cassetes pirata e sem serem, dentro do saquinho branco com o símbolo olímpico e escrito “Munique “72”.

Quem vai por esses caminhos acima também vem por esses caminhos abaixo. Realmente vim, mas depois de muita “praga” ter atirado à corvina. Sim, corvina! Aquele peixe muito bom que, nos últimos tempos, anda fugido das nossas peixarias. Em setenta e três do século passado – ano do III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro que a PIDE-DGS desavergonhadamente invadiu – penso que por volta de Abril, o Caravaca-PaiGuarda prisional dos antigos – desafiou alguns amigos do Caravaca-filho para se fazer a “folha” a uma cabeçorra de corvina cozida. E então lá fui por aí acima com os do costume, estrear a casa nova do Caravaca que, até aí, morava, como muitos outros guardas prisionais da Colónia, na Abrunheira, junto ao Chico Cobeca, no início da Travessa do Norte.

Maldita corvina!” Então, não é que, com o que lhe juntei de bebida, talvez vinho branco ou verde-branco fresco, armou um sarilho alcoólico-intestinal que me ia desfazendo todo em vómito e diarreia como nunca antes nem depois experimentara. “Maldita corvina” foi o que mais repeti cambaleando no bonito jardim e boca d’água do “Novo bairro da Colónia” de mil novecentos e setenta e três quando, ainda, a dois passos do Chiado, a PIDE-DGS torturava o operário, a doméstica ou o intelectual, só porque a linha de pensamento divergia e eu, duma “janela dum terceiro andar” que, com o Tejo como espelho, conseguia ver todo o mundo pelo lado dos dezoito anos que nunca mais voltaram. 

Desde essa época, em anos o tempo conta quarenta e um e, pelo menos, durante metade, quando pelos caminhos acima ou abaixo, vamos ou vimos pela Colónia – sempre com muito cuidado como a minha querida Mãe dizia quando, em tempo contado para trás em anos seriam dez, onze ou doze e me deixava conduzir pela burra Carocha, pela ternurenta vaca Bonita, pela Marcina, pela Estrela e por outras que os nomes voltavam por passarem de mães leiteiras e parideiras para vitelas filhas e criadas com tanto amor pela Ti Augusta, que muita tristeza se abatia lá por casa quando o destino se cumpria e o Fachadas ou outro qualquer comprador se abeirava e carregava o animal – revolve-me o estomago mas não por causa da “corvina” nem do branco maduro ou verde fresco. O “Bairro da Colónia” está velho e abandonado de manutenção e arranjos básicos. As velhas moradias, por exemplo a do “guardaVicente, há muito que “desistiram” e telhados ou paredes se deixaram cair, os prédios – como o do Caravaca – de mil novecentos e setenta e dois e setenta e três, vão pelo mesmo caminho se não lhe puserem “a mão” rapidamente.

O antes “novo” e agora “velhoBairro da Colónia, está como este País, a cair aos bocados no meio duma revolta estomacal só que, agora, a culpa não é da “maldita corvina”, mas sim, da

“Maldita corja!”


Silvestre Félix