sexta-feira, 27 de maio de 2011

UMA QUARTA DE MANTEIGA…

Muito longe do manual de adivinhação perdido em qualquer pobre prateleira de livros, do poder “hipnótico” do Rui, da visão perspicaz e penetrante do Caravaca, da “elétrica” inteligência do Fernando Pedroso, da singular engenhoquice do Zé Fernando, das certezas e pontarias do Zé Augusto, do magnetismo enigmático do Julinho … e, mais alguns, que a minha prodigiosa (já agora) memória não consegue creditar, muito longe… dizia, que duma só estalada, e uns quase cinquenta de tempo em anos contados, abrissem quase trezentas lojas mesmo aqui às portas da Abrunheira. O sonho de qualquer esposa ou Mãe consumidora passava pela taberna ou mercearia do Ti Álvaro, da Menina Emília e do Ramos, materializada num restrito cabaz que incluía: Uma quarta de manteiga, uma quarta de café de cevada, uma quarta de sal, meio – quilo de arroz do mais barato, meio – quilo de açúcar amarelo, meio – quilo de massa cotovelo, duas postas de bacalhau da parte do rabo que pesa menos e meio – quilo de atum de barrica. Na hora do pagamento; «É para “assentar” se faz favor».


E o dinheiro?
Será que todas essas lojas vão ter livro de “assentar”?
O “sonho” só ia comandar a vida lá muito mais para a frente.


Nessa época, em que o Francisco “Frouxo” e o Ti Sabino ainda vestiam camisas aos quadradinhos, calças com o cós subido por cima da barriga de cor cinzenta, colete com fio do relógio de bolso pendurado, botas cardadas com polainas, barrete preto bem enterrado na cabeça e acompanhavam com o respetivo pau, em que o João de Leião passava bem sentado no seu carro, geringonça quase única na Abrunheira mais o carocha do Peixoto lá para o Caracol, quando o Silvestre” Velho” ainda pagava “jorna” para lavrar, desterruar, gradar, semear, mondar e ceifar, quando a Ferreira de Castro era “Curronquinho” e a “Arroteia” dava a melhor cevada, nos “Quatro-Donos” a ceara de trigo sempre se deixava dominar pelo verde, quando os “Celões” mostravam a sua grandeza nas várias colorações e inclinações ao sabor do vento, quando a Beloura era o Casal da Beloura do Chico da Beloura, quando a Escola era na futura Rua da Escola, quando a Ti Natália corrigia a tendência vitivinícola do Ti Hilário, do Zé e do João todos ditos – da Natália, quando o Coutinho que era Bernardino abria as valas da água canalizada que aí vinha a correr cheia de pressa porque já era tarde, quando ainda se comemorava a chegada da eletricidade, ainda uma criança com dois ou três anos, com festanças largas e foguetório até ser noite no sítio que era largo em frente à Quinta do Olival, quando eu já começava a conseguir ler as crónicas da Guerra do Vietname no jornal “O Século” naquela grande mesa de mármore da taberna do Ti Álvaro, quando os camions começaram a trazer os tijolos, o cimento, o ferro para armar e pôr de pé a que viria ser a “Lixa”, quando os gansos do Ti Veríssimo e do “Tavinho”, imitando bem nos gestos e na vontade os atuais A320, faziam do largo do Chafariz, no sentido descendente, a grande pista de descolagem, quando os putos com botas cardadas calçadas, praticando aquela coisa que, no reinado da Angela Merkel estará em desuso e que se chama solidariedade, se descalçavam para estarem iguais aos que não tinham botas nem chinelos, quando, aí em tempo doze ou treze a contar em anos de distância, eu perguntava: Mãe, quando for grande ainda há guerra? Se ainda houver Guerra eu tenho de ir? Os putos da Abrunheira, depois Homens, também foram à Guerra. Eu já não fui! Foram muitos e o meu litígio permanente com a lembradura dos nomes não me aconselha a arriscar. Mas, quando lia e escrevia os “aerogramas” do meu primo Chico, e o “Pézinhos”? e o Fernando? Os Putos da Abrunheira também lá estiveram ..., nessa época, quem havia de imaginar que a negra para Lisboa ia ter três faixas para cada lado com entrada direta para a Abrunheira com destaque na sinalética principal? E que mesmo com tanta faixa, a certas horas todas entupiam de andantes nos dois sentidos? Nenhum destes prosados da Abrunheira daquele tempo, acreditariam que os andantes da negra numa ida até Lisboa, iriam consumir em gasolina mais dinheiro do que quatro semanas de “jorna”.


E o dinheiro?
Onde iam ganhar dinheiro que chagasse para toda a gasolina?
E como iam conseguir construir as negras?


Quando o Julinho se atirava à lata de sebo do pai, o Zé da Natália, e esfregava com jeito único a ponta da melhor cana que escolheu no canal da Horta do Manel da Colónia, acompanhando a função com emissão de sons e assobios assim como se fosse uma folha de serrote a abanar (iong! iong! iong!) criando aquele ambiente de mistério para interiorizar a superior capacidade de atrair os morcegos à ponta da cana, não lhe passava pela cabeça nem aos outros que, alguma vez, os “putos” não precisassem mais de atrair morcegos por brincadeira, nem de construir os carrinhos de arame na “oficina” do Zé Fernando, nem de fazer telefones inventados pelo Fernando Pedroso com tampas das caixas de graxa dos sapatos…, pois teriam milhares de brinquedos à distância dum cartão de plástico que serve de dinheiro nas dezenas de lojas existentes à volta da Abrunheira.


E o dinheiro?
Como iam ter dinheiro para todas essas coisas?
E os Putos? Como iam aprender a fazer os brinquedos?


Mesmo que em vez de cinquenta sejam mais ou menos quarenta contados em anos, muito longe continuávamos de imaginar, considerando mesmo a sabedoria das barbas do Zé, a capacidade inventiva do Zé Alentejano ou o imparável drible do “Pele-e-Osso”, a indefensável “cagadinha” do Rui nos matraquilhos que, para assistirmos, olhando para uma tela de cinema, às pantominices dum qualquer “Trinitá” que era um “Cowboy” insolente, ou uma lição de história gastando a tarde de Domingo soalheiro para ver os “Canhões de Navarone” ou o “Ben-Hur” ou até o moderno musical “Jesus Cristo Superstar”, depois de muito penar até conseguir poupar o suficiente para comprar o bilhete, e em vez de calcorrearmos deste a Abrunheira até ao “Cinema Chaby” em Mem Martins ou até ao “Carlos Manuel” em Sintra, caminhos que no ano da Troika e dos troikados se iriam fazer, de cajado na mão, por prazer e a conselho médico para promover o gasto das gorduranças e o desentupimento das artérias com vista a um transporte adequado e sem constrangimentos do nosso precioso sangue, em vez disso dizia …, bastaria estacionarmos o indispensável carro no parque subterrâneo de quase dois mil lugares, esticar o pé que logo a escada rolante ou o elevador nos leva até sete ou oito salas com outras tantas “fitas” a correr. É só escolher… e se calhar até acabamos por ver o que não queremos.


E o dinheiro?
Como vai ser possível poupar dinheiro para os carros e para os cinemas?
Será só para os ricos?


No universo da Abrunheira daquele tempo muitas perguntas se fizeram e muitas continuam sem resposta. O sonho continua a ter o mesmo significado, raramente passou a “comandar a vida” como se chegou a acreditar.


Silvestre Félix

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA - CAPÍTULO II

…Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados. Nos que ficaram e nos que foram. Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega ainda mandam, e o Zé não consegue reverter a situação.
Olha lá “Caladinho”, o que estás para aí a dizer que eu bem ouvi mas não percebi patavina?
Eh pá! Nem te senti chegar Coutinho que és Bernardino. Estava a falar com os meus botões…
Botões? Então soldados, navios, Angola, botas, pide, isso é lá conversa de botões? Antes de mais nada, e para ver se te entendo, vou pedir uma charrete. Oh Ramos!
Já vai! (Grita o Ramos)
Chega lá uma charrete, não, não! É melhor só um de “três-tinto”, depois logo se vê como é que fica a secura.
Oh Caladinho, não está aqui mais ninguém, explica-me o que é essa coisa dos botões e soldados e botas e pide.
O Caladinho, olhando sempre à volta e para a porta, lá foi dizendo:
O Chico era um deles. Não sei se o vou voltar a ver. A minha Irmã criou aquele menino com tanto amor, tanto carinho, e agora o “botas” manda-o para a guerra e ainda por cima no dia 19 de Julho que é quando faz anos. O que tem ele a ver com a guerra? Bem que ele queria ir era para a França, a salto, em vez de ir para Angola. O Delgado é que devia ter posto mãos a isto. O “botas” ia logo tratar da horta para Stª Comba Dão e a Gertrudes não tinha chegado a ter um marido Contra-Almirante e Presidente da República.
Reforçando a intervenção do narrador e em jeito de “bucha” – não do pedaço de pau, metal ou outro material para vedar qualquer buraco ou um bocado de pão para tapar a fome, mas aquela palavra ou frase imprevista que se encaixa numa fala de espetáculo de teatro – é importante dar a ideia do tempo que passa porque na verdade ele passa mesmo, não pára, e também lembrar que o “Caladinho” é personagem intemporal e um de muitos gémeos, mas mesmo muitos, assim como se fossem clones metidos numa conversa em dois mil e onze, ano primeiro do protocolo com a Troika que nos “troikou” a todos. Posta a bucha, voltamos à conversa daquele… tempo.
Os dias lá correm e cada vez há menos sementeira nos campos à volta da Abrunheira. Alguns vão dizendo e outros vão ouvindo, sempre com muito cuidado porque “bufos”, os há, em todo o lado, mesmo aqui à beira do Rio das Sesmarias. É subversivo reconhecer e, ainda mais, dizer, que o grémio paga o trigo barato. É “bufado” como “conspiração” perigosa, e passível de boleia até à António Maria Cardoso (Rua), uma conversa a três ou mais, em que o primeiro, muito baixinho em surdina, diz que o trigo é barato, o segundo, colocando a mão em forma de funil atrás da orelha, ouve, e o terceiro, porque entendeu que um disse e o outro ouviu, gesticula a cabeça na vertical em sinal de concordância.
No meio de 1962, a caminho do segundo ano de tiros em Angola e sete ou oito meses depois do indiano Nehru ter feito o “manguito” ao Salazar e, da noite para o dia, ter invadido Goa Damão e Diu, o Coutinho que era Bernardino, ouvia com toda a atenção o Caladinho. Desta vez lia um aerograma que tinha acabado de receber do Chico. Depois de se certificar que estava sozinho com o Cabouqueiro, começou a leitura;

«O meu plantão foi até às duas da manhã. Esteve tudo calmo, não aconteceu nada. Quando fui rendido no posto cinco, que dá para nascente, já se notava o céu menos escuro e não tardava a claridade da madrugada. A G3 hoje pesava aí uns cinquenta quilos e eu estava muito cansado. Adormeci rapidamente. Não teria passado um quarto de hora, abri os olhos sobressaltado, e vi clarões como se fosse o fogo-de-artifício lá da aldeia. Não era na aldeia, era no norte de Angola, numa terra que não era minha. O quartel estava mais uma vez a ser atacado e, como de costume, ao romper a madrugada. Os de Angola não querem que eu cá esteja. Até estamos de acordo, eu também não quero cá estar. Os de Angola, usam como podem as suas armas para correrem connosco e o “botas” continua a dizer que “Angola é nossa!”.»
Pois é Coutinho que és Bernardino, o meu sobrinho sofre lá (na Guerra em Angola) e nós sofremos cá com a ausência dele, mas quem tem a culpa deste sofrimento todo, são os que mandam, mas ainda as vão pagar todas juntas. O tempo vai passar e voltar-se a nosso favor, já estou a ver o que vai acontecer…
Oh Caladinho, não me digas que também és bruxo? Como é que sabes o que vai acontecer lá p’ra diante?
Meu amigo Coutinho que és Bernardino (olhando na direcção do balcão e da porta e falando ainda mais baixinho), podemos continuar a conversa mas não aqui, é que as paredes têm ouvidos…
O quê, as paredes ouvem?
É isso mesmo… faz de conta, mas às vezes parece mesmo verdade.
Tá bem Caladinho, vens comigo até à pedreira do Ti Miguel, e contas tudo o que sabes para mim, e para os meus amigos que são de confiança.
Saindo pela esquerda, muito juntinhos à regueira da curva e de passo apressado porque, pelo barulho, lá vinha do lado da charneca, um andante com motor a botar fumo por tudo quanto é sítio, e, já no começo da rua para o olival, o Caladinho pára e espera pelo andante. O Caladinho era pessoa informada, sabia o passado e adivinhava tudo lá para o futuro (diz o narrador) e, por isso, era natural que quisesse ver o veículo motorizado.
Oh Caladinho, deixa lá o andante… já se faz tarde e os meus amigos devem estar admirados com a minha demora, na certa, contarão que chegue com um grão na asa ou, sei lá, com uma saca de grão às costas… ah! ah! ah! (rindo)
Espera Coutinho que és Bernardino. Passam tão poucos carros, que é uma pena a gente não os ver.
O barulho foi aumentando e, ao cimo do quintal do Rafael Miranda, já se via o andante.
Estás a ver Coutinho que és Bernardino, uma “arrastadeira” de duas portas preta… Olha, afinal são dois, e o outro também é preto e é um Ford. Ummm! Estes dois pretos e a estas horas? Não cheira a boa coisa…
E os carros lá continuaram em direcção a Albarraque.



(Continua qualquer dia)
(Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)



19 de Maio de 2011
Silvestre Félix

sábado, 14 de maio de 2011

INAUGURAÇÃO DO NOVO QUARTEL DOS BOMBEIROS DE SÃO PEDRO

Muitos sonharam!
Neste caso, o sonho tornou-se realidade. Os Bombeiros de São Pedro têm um novo Quartel. Neste dia 15 de Maio é a inauguração oficial.


A Associação e os Bombeiros estão gratos a todos que, duma forma ou doutra, colaboraram nesta grande aventura.
Os cidadãos de toda a Freguesia de São Pedro de Penaferrim e do Concelho de Sintra, também agradecem aos Bombeiros de São Pedro todo o empenho e dedicação na sua missão humanitária.


Silvestre Félix


(Imagem: Do site dos Bombeiros de São Pedro)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PREÇO DO VINHO

Mesmo debaixo dos cobertores dava para ouvir o barulho do vento e, assim que pôs a cabeça fora da porta, levou com o sopro do lado de Manique e confirmou o canavial da horta em frente toda dobrada para o lado da serra. Ainda era escuro e alguma claridade já se via lá do lado do Alto Forte mas, o céu estava escuro, não se via uma estrela e era certo e sabido que ia dar chuva. Lá vinham as preocupações do costume, estava o caldo entornado para a Ti Mariana Soleta e dia de festa para o filho.
O Coutinho que era Bernardino tinha acabado de sair de casa para pegar na picareta e continuar a entrar pelas entranhas da terra até chegar à água, que deverá encher até acima, e que logo se vai chamar poço. É esta a sina do Coutinho que era Bernardino. Cabouqueiro era assim que se chamava a arte do homem que tinha “a Ciência da Pedra”. Na verdade, tinha saído de casa como de costume, mas, o destino daquele dia estava traçado, o tempo tinha virado e o trabalho da arte do Cabouqueiro não se dá quando ele, o tempo, entende deitar chuva, até parece que é de propósito, porque já se passaram uns dias que o Coutinho que era Bernardino, não metia umas “charretes” na taberna da “Menina Emília”, e, como o hábito faz o Monge, era bom que de vez em quando o tempo virasse de Manique e deitasse água de chuva, para que o Coutinho que era Bernardino pudesse também deitar vinho pela goela abaixo. E assim foi, neste dia de Janeiro de há muitos anos passados, mais dos que eu já contei nesta vida.
O personagem principal da prosa, Coutinho que era Bernardino ou Bernardino que não era Coutinho, não carece de apresentação, porque por aqui já mereceu essa deferência. Nesta altura da vida do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”, embora ainda solteiro, já tinha dado à estampa da “gazeta” do “boca-a-boca” e do “diz-que-disse” dos Abrunhenses, aquela cena de, em parceria com o Francisco Borrego, quererem imitar o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral voando até ao Brasil num aeroplano construído em cima de um zambujeiro. Por essa e por outras, muitos achaques a Ti Mariana Soleta sofria e rezava terços e mais terços para que lhe calhasse em sorte uma mulher que lhe pusesse tanto juízo na cabeça, como tonéis de vinho ele bebia.
A Ti Mariana Soleta continua na história porque o Coutinho que era Bernardino já casou tarde, e, nesta altura, ainda era a Mãe que tomava conta dele naquilo que naquela época estava destinado às mulheres. Como acontecia noutros sítios, também na Abrunheira, a mulher nunca podia ir chamar o marido à taberna, mas se fosse a Mãe, havia uma certa tolerância e era isso que acontecia com o Coutinho que era Bernardino. Os caminhos das tabernas da Abrunheira eram tão percorridos pelo filho, que por lá enchia o “bandulho”, como pela Mãe que pelos mesmos caminhos se arrastava para o levar de volta a casa a cair de bêbado.
Tal como já acontecera tantas outras vezes, também neste dia, já lusco-fusco, o Coutinho que era Bernardino, nada de chegar a casa. A Ti Mariana Soleta, mete uma saca vazia à cabeça, que ainda chuviscava, e lá vai para o circuito do costume. Começa pelo Osvaldo/Faial, espreita com jeito, e Coutinho que era Bernardino nem vê-lo, vem descendo e chega à “Menina Emília”. Ainda estava a meia dúzia de passos e já ouvia a voz arrastada pelas “charretes” e ”ciganas”, que o Coutinho que era Bernardino tinha metido no “bucho” durante toda a tarde. A Ti Mariana Soleta, espreita à porta e começa com as pragas do costume que, o Coutinho que era Bernardino, mesmo empaturrado de tintol, já as sabia de cor e respondia com a sapiência do Cabouqueiro que tinha a “Ciência da Pedra”.


(Dizia a Ti Mariana); “Ai filhe! Quizera Deus que o vinhe acabe…”
“Oh Mãe…… Eu faço o possível., mas o quer…, sou sozinho!”
(
E lá continuava a Ti Mariana Soleta); “Ai valha-me Deus... Porque é que o vinhe nã aumenta para um conte de réis o litre?”
(
Responde o Coutinho que era Bernardino); “ Oh Mãe, até que eu não me importava…”
(
E a Mãe); “ Nã te importavas Filhe?”
Eu cá não… desde que o litro fosse do tamanho da água da Lagoa Azul!”


Este dia de Janeiro de há muito tempo contado em anos, nesta Abrunheira; Que de superfícies ditas comerciais tinha, com muita honra e prestação social, as suas tabernas e mercearias, que de luz, só a petróleo, água só do chafariz, do Santo António e de outros poços, fogão ou forno só a lenha, estrada só de pedregulhos, bosta de vaca e caganitas de ovelha, notícias só do jornal “O século” e visado pela comissão de censura e trabalho/emprego só na agricultura e sazonal… Como dizia, este dia, como tantos outros, “passou à História” porque por cá passaram e vão continuar a passar personagens Abrunhenses como a que foi o Coutinho que era Bernardino, o homem que tinha a “Ciência da Pedra”.


Silvestre Félix
11 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

EU, O PATO E O JOÃO BARRIGA

Por artes mágicas com pozinhos perlim-pim-pim e tudo, o que antes se chamava “Vale de Porcas” ou “Vale Porcas” sem “de”, virou “Vale Flores”. A origem do primeiro nome tem a ver com a existência de muitas cortes suínas de que até a realeza se recorria para abastecer as despensas e as salgadeiras dos Palácios da Vila e da Pena e, também, o de Queluz, desde a época dos desvarios de Carlota Joaquina que consorte rainha se tornou quando o regente D. João foi Rei com o número VI.


Este “Vale”, agora “Flores” e antes “Porcas”, corresponde à parte antiga com entrada por Ranholas ou Chão de Meninos, na banda de cima do A 16. Do lado de Mem Martins, fica então a parte nova de “Vale Flores” que nunca chegou a ser “Vale Porcas” e, antes, “Chancuda” e “Casal da Charneca” do Ti Zé da Charneca e mulher, pais da Lucinda, viúva do Ramos com o café dos quatro onde nasceu a antiga mercearia que me estreou no trabalho fora de casa, armado em ajudante do Ti Ramos. A Lucinda tem uma irmã que no Casal da Charneca também nasceu, esposa do Comandante Gaspar dos Bombeiros de São Pedro. Ainda de mercearia falando. Arrumado no sítio certo ainda tenho a lembrança duma tarde do Verão de 1966. Não tinha costume, mas, naquela tarde, o Ti Ramos ligou a telefonia quando os “magriços” já perdiam por dois a zero. De alegrias carenciados com tal resultado e, com o fôlego ainda meio entupido, os coreanos do norte marcam mais um, encolhendo rapidamente a esperança de virarmos o resultado. Na pele de marçano ajudante, muito contente fiquei, com os cinco espetados à Coreia do Norte.


Deixando a mercearia e o futebol, matérias intrometidas na sequência do escrito que de “Vales” e seus limites falava, esta dualidade na designação do “Vale” diz respeito ao que quero contar. Agora é “Flores” mas a época que vou reportar era “Porcas” de forma que, para o escrito, vai ser Vale Porcas” e ponto final.


Depois de eu ter nascido mesmo em frente do Rio das Sesmarias, decerto de seco leito que o estio já ia forte, a família decidiu ir tratar da vida para outras paragens e eu, que comer e sujar fraldas mais não faria nem entendia, lá fui. E para onde? Para “Vale Porcas”. Os meus pais tomaram de renda o “Casal Novo” que de fruta e horta não pedia meças. A estadia por lá muitas histórias tem que alguma vez poderão ser contadas mas, o fio do meu escrito vai direitinho para o nosso regresso à Abrunheira passados 4 anos e meio.


Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959 e o dia a acabar, quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Ainda meio atordoado com a viagem que me pareceu maior que o costume e porque com os balanços da carroçaria me embalaram para mais um sono…ouvi atrás de mim:


Olha o “pato bravo”!


Gritou o João Barriga quando se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Minha Mãe ou com a minha irmã Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. Mas, o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? E o que era isso de pato e ainda por cima bravo??


A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a vermelho e verde, com as pegas atadas para o animal não fugir. Eu, a Minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.


Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssimaResiquímica, ou, naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem a minha família e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.


O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, não me lembro de ver aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver alguns cães em cerâmica que, decerto, a sua mulher lá colocou para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.


Pois nós tínhamos vindo do dito “Casal Novo” em “Vale Porcas”. Enquanto a casa para onde nós íamos morar esteve indisponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi aí que chegamos de carroça cheia. Outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da Minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.


Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e, o João Barriga, está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."


Silvestre Félix
4 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)